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Os deuses, à Deusa: sacrifício e oferendas

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 131-134)

Dedicatória

7. Os deuses, à Deusa: sacrifício e oferendas

ronda numa dedicação sem objeto, lá ia ele ladeira abaixo, distribuindo laivos do olhar de enfermeiro. [...] Pontífice da periferia. Empedrado na sua benção secular. A sombra que ele lançava parecia o perfil de um agonizante vendo o que ninguém mais via... (MMC, p. 474).

Estas leituras feitas pela “dialética do olhar” sintetiza m o princípio do visível e do invisível, da presença e da ausência nesta obra. Essa metodologia pode ser sintetizada nas seguintes palavras: o homem tem o poder de contemplação; as coisas o mundo são contempladas por esse homem petrificado tal como estão coisas e o influenciam que este olhar já se encontra saturado na contemporaneidade. O homem rompe o limite da visão (esta é uma síntese do que Noll chama o “sistema” do mundo, cuja ordem reticente, está em MMC). E, “sim, vinha ficando cego, o que se diga, não o incomodava tanto. Sentia, um manancial de trabalho aí: um homem rompendo o limite da visão” (MMC, p. 450).

Enfim, Arcos de ascese impõe ao leitor transpor a experiência do olhar, exige que a experiência de mundo volte-se para a leitura e esta seja ampliada para captar esse homem à beira do abismo e resgatá-lo desse precipício. Esse livro em “relâmpagos” pode ser caracterizado em sua origem pela figura de “uma mandala de acumulações (im)perfeitas”, ou seja, não somente por ele apresentar “a aberração”, a imperfeição do mundo escrita em pequenos “instantes ficcionais”, mas por trazer o corpo estilhaçado como mancha informe e o fragmento para dentro da frase, a palavra composta por pedaços de outras palavras.

Na verdade, o que o autor aqui faz é uma função de “catador de estilhaços de espelhos quebrados pela própria história do mundo que cria ”. É um colecionador de imagens em ruínas: catador de palavras, de estilhaços de ideias, de frases, de conhecimentos de outros saberes, para compor esse tecido escrito na contemporaneidade. Por exemplo: da Bíblia e do verbo (traz a gênese, bipartição do homem que o levou ao pecado mortal); da História, (traz as guerras e invasões); da Cultura (as colunas derrubadas e as cidades em ruínas); da Psicanálise (a escrita vinda do inconsciente e o corpo

supliciado); da Biologia (o corpo doente); da Física (a ótica do olhar para as coisas carcomidas); da Química (as fusões e as metamorfoses); da Geografia (o mundo em erosão); da Filosofia (uma outra verdade sobre o homem); da Literatura (o poema desfigurado na prosa e a narrativa fragmentada); da Crítica literária (a ideia ruminando); da Teoria Literária (aforismos e o fazer poético); da Música (a melodia como um mantra); da Matemática (os números decompostos em mínimos, múltiplos, comuns); do Teatro (o palco como cenário); do Cinema (a luz em nesga, penumbra a compor o mosaico), do Budismo (o princípio da vacuidade), do Hinduísmo (reverencia a Deusa da ausência) e da Astronomia (o instante). Tudo isso integra uma engenharia que corrobora com a dificuldade do não-sentido de tantos temas e labirintos a serem absorvidos pelo sentido e compreensão dessa escrita plenamente contemporânea, criativa e muito inteligente.

Assim, vencer o “tecido penumbroso” de Mínimos, múltiplos, comuns – a arqueologia e o sentido desse mundo – e chegar a descrição de uma alegoria é a certeza de que todos os “instantes ficcionais” foram iluminados até serem exauridos e mortificados e deles renascerem os “arcos de ascese”, um novo livro escrito, agora, pelo leitor.

3.3.1 Surdas dissidências em sete curtas rondas

1. O mundo da escrita: tecido penumbroso e áspero

ronda para descrever o mundo em que busca respirar na contravida ou para que ninguém notasse que ele era pura suposição de nada (MMC, p. 29; 31).

O mundo descrito em Mínimos, múltiplos comuns é esse tecido felpudo, áspero, sombrio em que as coisas andam estouvadas de tanto sofrerem pelo olhar. É um mundo cíclico que inicia em gênese, caracteriza sua criatura e retorna ao seu fundamento, depois de O retorno. A expressão “tecido penumbroso”, que também se aproxima da teia tecida pela linguagem, reporta-se ao homem e ao seu corpo movente neste espaço e, sobretudo a própria escrita avessa do autor. Mundo, corpo e escrita perfazem uma só forma triangular. É a obra. São tripés em que está fincada. Sendo o próprio mundo o lugar em que o autor mira-se para trazer o conteúdo inóspito para sua obra e o corpo e a escrita como vértices fundamentais de apoio para a construção desse mundo.

É um mundo caracterizado pela ausência e lamento. O primeiro sinal de “ausência” denominada de “lacuna essencial” está no homem no pórtico inicial da obra. “Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo como um quase- nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as

inscrições carcomidas” (MMC, p. 29). Não é morte, porque segundo o autor, “pode-se respirar também na contravida”: quase morte, avesso da vida.

Na verdade, o autor neste portal diz tudo o que o leitor curioso terá de buscar explicar na trajetória da obra. Esse avesso da vida é o homem em estágio “sonolento” de hoje, desmemoriado, sem passado, presente, nem concepção de futuro. Tem o olhar voltado para as coisas, mas descreve o seu avesso, o corpo já em pleno desfazimento e entregue à saturação midiática, vivendo na fluidez dos tempos em que tudo é movente e não fixa marcas nem identidade: um novo ritmo na instantaneidade dos tempos líquidos.

Um homem que sequer reconhece a si mesmo nesse mundo de sombras e esperas, embora não saiba o quê espera nem para quê espera e nem por quê espera. Mas também é “um mundo que vive para dentro, cegando-se ao sol do sonho ”. Ultrapassada a trajetória pesada desse corpo textual, quase ao final, a obra faz retorno aos temas iniciais e, depara-se com esse “tecido” ainda composto de uma “textura íngreme”, mas descrito de forma mais sensível, especificamente focado e desnudado a partir do tato desse homem, que apesar de viver em sombras, pensa, e traz a sensibilidade do artista para dentro da obra. Vale à pena descrever esse fragmento:

Ele toca com cuidado. A mão sente, devagar. Primeiro uma saliência calosa, como se fosse a beira de uma cratera. Os dedos descem, parece que em direção à arena. Pedras pontiagudas, logo um terreno arenoso. Os dedos avançam. Procuram um centro, a esfera nuclear. A mão suada para, descansa um pouco, sente a textura ainda íngreme, sempre pedregosa. Coberta de sinais prematuros para um sujeito ainda forte como ele, recebe em cheio a luz daquela hora. Um homem sem chapéu, camisa, todo áspero de vento. Seus dedos ciscando ali, na terra, sonham às vezes com outra consistência... O que ele faz em pleno meio-dia, cego de sol? Prepara as primeiras filmagens. Para amanhã cedo. Por isso seu tato se aproxima do centro da cratera . De onde tudo deverá partir [grifo nosso] (MMC, Os palcos, o foco, p. 375).

As percepções sensitivas e corporais são prioritárias em Mínimos, múltiplos, comuns, em que o próprio narrador-escritor a caracteriza como algo áspero. Importa, no entanto, ressaltar a condição desse homem que, apesar de vislumbrar esse mundo “às vezes ainda sonha com outra consistência”, deixa sua utopia ao querer preservar a palavra “resguardo”, em sua “viciada missão” (MMC, p. 442; 46).

O conceito de mundo sempre incorre em que a Terra foi criada a partir de uma determinada matéria primordial. Este mundo encerra uma teologia, mas traz também cenas para esse palco – do “teatro da aberração”, que nada mais é do que representar a condição deformada e descentralizada do homem impotente ante a realidade atual. Ressalte-se que esta obra nada tem de enfoque religioso. Teologia e religião, apesar da relação, não são idênticas. A religião é uma prática e a teologia uma teoria, ligada à filosofia.

Aqui o autor inicia com “gênese”. O fato é que Noll só utiliza esse recurso para montar a história de um outro mundo, tal e qual aquele que descreve o livro sagrado, isto facilita para a interpretação e identificação do leitor com a obra. MMC reserva para esse homem um princípio essencial: caçar sua exata substância (MMC, p.413). Conta uma origem dessa criação também em “Nadas” e “Ninguéns ”. Na verdade, é por meio da palavra – como no livro do mundo da criação: o Verbo – que tudo ocorre.

O mundo descrito em Mínimos, múltiplos, comuns, é um mundo plural (o “s” é letra recorrente), o autor vai também escrever sua marca pelo avesso. Noll deixa claro, através de uma multiplicidade de imagens que o homem vago tem uma ferida existencial profunda. É um mundo em que praticamente já não existem escolhas para aqueles acometidos pelo “surto de exclusão”. Um mundo inferior ou submerso ao humano, uma vez que o que define o humano é além de sua essência, a capacidade de escolher. Mas deixa, também, a certeza de que ainda há em que acreditar. A certeza de que sempre “há o que plantar”.

Por isso também escreve sua arte, mas deixa que o leitor busque essa comunhão com o texto e penetre profundamente neste mundo até ser acometido com um choque diante do sentido das inúmeras imagens que o olhar transparente desse homem deixam sobre si mesmo e seus iguais, sobre as coisas e sobre os acontecimentos. Aqui, a definição de tempo, do “instante” deixada no prefácio é importante, pois “denota a qualidade exponencial, visível, quase óbvia, do relato isolado: a maravilha do engenho que ergue sua construção minúscula com a complexidade estrutural intrínseca das catedrais” (p. 20).

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 131-134)