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2 APROFUNDANDO CONCEITOS

2.3 EDUCAÇÃO DO SURDO

2.3.4 A comunicação do aluno surdo com seus colegas ouvintes

Em um estudo que buscava conhecer as experiências de inclusão de alunos surdos, Lacerda (2007) realizou entrevista com duas alunas ouvintes e constatou que apesar dos alunos ouvintes mostrarem-se interessados em aprender a se comunicar com o colega surdo, o conhecimento que tinham da Libras era precário, o que dificultava a manutenção de diálogos estruturados e aprofundados entre surdo e ouvintes. Durante a pesquisa, a autora percebeu que o aluno surdo não tinha a possibilidade de conversar com seus colegas ouvintes sobre seus desejos e dúvidas, nem podia fazer comentários irônicos e maliciosos, próprio da faixa etária pesquisada (5ª série). As relações observadas entre os alunos pareciam infantilizadas e pouco elaboradas devido às restrições linguísticas vivenciadas.

Outro estudo que apresenta informações sobre como a Libras tem estado presente no contexto escolar inclusivo é desenvolvido por Teruggi (2003 apud LACERDA, 2007). O autor relata que na escola pesquisada, apesar dos alunos ouvintes terem frequentado duas horas semanais de aulas de língua de sinais, ministradas por um professor surdo fluente, suas produções em Libras não poderiam ser consideradas satisfatórias. Encontravam-se apoiadas nos esquemas da língua oral, sendo a datilologia frequentemente utilizada para expressar os significados dos sinais não conhecidos.

Contribuindo para o entendimento dessa questão, Góes (2000, p. 41-42), numa pesquisa com interlocutores ouvintes adultos, constatou que eles: “[...] constroem, nos seus diálogos, formas híbridas de linguagem, compostas de elementos de duas línguas, em enunciados subordinados às regras de construção

da língua majoritária [...]”. Uma questão que, para a autora, dilui os sinais e interfere no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem por parte do surdo.

Dessa forma, por qual meio se dará o aprendizado da Libras pelas crianças ouvintes? Serão oferecidos cursos como apresentado na pesquisa de Teruggi (2003 apud LACERDA, 2007)? Mas esses cursos e o aprendizado da Libras pelos alunos ouvintes se dará num tempo hábil para que tenham um conhecimento suficiente para interagirem com seus colegas surdos da mesma forma que interagem com seus colegas ouvintes?

Visto que a proposta da política inclusiva é oferecer condições de aprendizagem iguais a todos os alunos, as crianças surdas ficarão privadas do contato com seus colegas, o qual é extremamente importante para o processo de desenvolvimento infantil?

É preciso acreditar que não. É preciso acreditar que uma política nacional que se propõe a melhorar a educação das crianças surdas, não queira que elas abdiquem de suas relações com seus pares. Deve-se garantir relações eficientes e justas, não relações precárias.

Pensar nos malefícios de uma ineficaz relação entre os colegas de sala de aula extrapola questões relacionadas à socialização e identidade, relaciona-se, também, a problemas na esfera pedagógica, cognitiva e linguística.

Nas relações entre colegas, conforme Coll e Colomina (1996), uns podem exercer influências educativas sobre outros, podendo as crianças desempenharem o papel de mediadores que, em princípio, parecia reservado com exclusividade ao professor. Atividades cooperativas, competitivas e tutoriais podem beneficiar o processo de aprendizagem dos alunos.

Davis, Silva e Espósito (1989) apresentam uma situação em que as relações entre pares são propícias para o processo de aprendizagem. Sempre que não for possível se alcançar, em isolado, a solução para um dado problema, a solução em conjunto pode ser conquistada caso os alunos compartilhem e participem juntos do processo de construção do conhecimento. No entanto, os autores salientam que esse processo apenas ocorrerá caso haja conexão entre objetivos (conhecimentos a serem construídos) e o universo vivido pelos participantes.

Desse modo, questionamos: Como essa sintonia poderá ser encontrada caso ouvintes e surdos não compartilhem a mesma língua de forma eficiente?

Ao apresentarem um projeto de escolarização à pessoas surdas desenvolvido no modelo educacional inclusivo em duas escolas municipais (uma de educação infantil e outra de ensino fundamental – primeira etapa), Lacerda e Lodi (2007) relatam as dificuldades enfrentadas para se efetivar um ensino de qualidade. As autoras em suas discussões colocam o modelo da educação inclusiva atualmente implementada em cheque, apresentando pontos do modelo que precisam ser transformados. Dentre esses pontos, problematizam a questão das crianças surdas serem incluídas em salas regulares de ensino, nas quais a língua de instrução oficial é o português.

Em quatro anos de desenvolvimento desse projeto de escolarização implementado pelas autoras, várias ações foram realizadas no intuito de atender as especificidades linguísticas das crianças surdas (presença de intérprete Libras/Língua portuguesa na sala de aula, oficinas de Libras no contraturno para os alunos surdos e curso de Libras para todos os profissionais da escola). No entanto, tais ações não foram suficientes, pois as crianças surdas continuaram a se desenvolver linguisticamente aquém do esperado, vindo a indicar que o programa necessitaria ser transformado. Fato que levou as autoras a constatarem que as salas de educação infantil e de ensino fundamental (primeira etapa) frequentadas por crianças surdas precisariam ter a Libras como língua de instrução.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, que em julho de 2008 ganhou valor de ementa constitucional no Brasil, orienta em seu artigo 24 que os estados devem tomar medidas apropriadas para:

Assegurar que a educação das pessoas, especialmente das crianças que são cegas, surdas e cego-surdas sejam realizadas [...] em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social (BRASIL, 2007a).

Diante de tudo o que foi exposto, qual será o ambiente que maximizará o desenvolvimento acadêmico e social do aluno surdo, principalmente nos primeiros anos escolares? Será a escola em que o português é a língua de instrução e que o intérprete ou o professor bilíngue terão que mediar as relações do surdo? Ou a escola em que a Libras será a língua de instrução e o surdo poderá estabelecer suas relações independentemente? Será a escola em que o aluno surdo não tem colegas que saibam sua língua, ou a escola em que ele tem a possibilidade de interagir linguísticamente com todos os seus colegas?

Ao trazermos essa discussão, nosso objetivo não é militar pela ideia de que surdo tem que estar, apenas, com surdo, mas sim, trazer à tona um importante ponto que tem sido deixado de lado durante as discussões sobre a inclusão do surdo. Tão importante quanto as relações do aluno com o professor, temos as relações do aluno com seus colegas.

Nas ações da PNEE-08 é previsto professor bilíngue, intérprete de português/Libras e aulas de Libras para alunos ouvintes. Contudo, como podemos ver acima, pesquisas têm demonstrado que os cursos de Libras para os alunos ouvintes não têm sido suficientes para garantir que o aluno surdo tenha colegas que possam estabelecer comunicações eficientes em Libras. Acreditamos que tais cursos são importantes para que o aluno ouvinte comece a conhecer a Libras e a realidade surda, podendo desmistificar possíveis crenças adquiridas e estimular a comunicação entre surdos e ouvintes. Mas, para os primeiros anos escolares, quando as interações entre colegas são importantes para a aquisição da linguagem, julgamos que as relações do aluno surdo com colegas ouvintes que estão aprendendo a Libras como L2 não são o bastante para uma criança que precisa de diversas e ricas oportunidades de comunicação em Libras.

Sendo assim, o objetivo desse subtópico foi problematizar sobre essa questão, pois entendemos que a qualidade das relações do surdo com seus colegas de classe precisa ser mais discutida.