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A comunicação como meio para o ‘eu’ se fazer compreensível ao ‘outro’

CAPÍTULO 2 A FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE – UMA RELAÇÃO ENTRE O

2.1. A comunicação como meio para o ‘eu’ se fazer compreensível ao ‘outro’

Ciampa (1996) e Berger e Luckmann (2013) exprimem a ideia da linguagem como constituinte na formação identitária do indivíduo. O conhecimento transmitido através da linguagem tende a se objetivar no mundo social, construindo e constituindo, num contínuo processo, uma identidade. Tal conhecimento, historicamente construído, assenta-se fortemente no senso comum, ou seja, em um conhecimento comum à todos, sendo aprendido e apreendido no devir de uma vida e no decorrer de um processo relacional entre indivíduos.

Esse conhecimento transmitido de geração para geração, ao consolidar-se num movimento condicionante, pode vir a cristalizar esses saberes e transformá-los em uma fórmula a ser repetida numa contínua dinâmica institucionalizadora,

definindo os papeis de cada indivíduo no processo de socialização. Dessa maneira, a identidade se fortalece e se estrutura dentre as intersubjetividades que se formam nesse processo. Vai-se assim, construindo, uma biografia, uma história de vida, que se concretiza pela interação e na projeção da subjetividade no mundo.

Estaríamos assumindo uma postura um tanto ingênua, ao reconhecermos que a construção da identidade pode vir a ser realizada de maneira estanque e determinista, onde o simples fato de se estar exposto em um determinado meio ou pertencer a um determinado grupo, possa vir a se tornar condição necessária para definir as singularidades do indivíduo e assim determinar quem ele é.

Compreendemos que a identidade se constrói num permanente devir. Ela se define na existência de uma permanente relação entre o indivíduo e os outros indivíduos que, inseridos em um determinado contexto social, econômico e político muito ou pouco complexo, no que diz respeito aos seus aspectos organizacionais, comporão um mundo objetivo concretizando suas intersubjetividades.

Para Berger e Luckmann (2013, p. 84), “O mundo institucional é a atividade humana objetivada”, portanto, em uma sociedade organizada pelo mote capitalista e posta como uma sociedade global, é muito provável que os elementos constituintes da identidade, que são singulares ao indivíduo, se tornem cada vez mais complexos devido as relações que esses elementos se processam ao interagirem com a estrutura social, econômica e política e suas constantes modificações e ajustes. Ainda segundo os autores, o “homem é um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social” (p. 85).

Para fins de análise, consideramos nesse estudo, que a identidade de um indivíduo se constrói na relação com os outros indivíduos. Sendo na relação do ‘eu’ com o ‘outro’ que a identidade do ‘eu’ toma forma. Porém, o ‘eu’ e o ‘outro’ não estão isolados do contexto social. Logo, para compreendermos a formação da identidade profissional do professor coordenador é preciso considerarmos sua relação com os outros indivíduos e a escola, repleta de normas, comunicados, leis, decretos, resoluções e outros, onde serão estabelecidas as interações entre os indivíduos e o meio. Assim, a identidade segue transformando e sendo transformada, através

dessa interação cortada pelas relações que são inerentes a escola e sua organização.

Segundo Ciampa (1996, p. 241-242) a:

[...] identidade é identidade de pensar e ser [...]. O conteúdo que surgirá dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razão e decorrer da interpretação que façamos do que merece ser vivido. Isso é busca de significado, é invenção de sentido. É autoprodução do homem. É vida.

Ao considerarmos a alteridade, ou seja, o ‘outro’ como peça chave no processo de constituição e construção da identidade do ‘eu’, percebemos quão intenso e complexo é esse processo de formação e (re)formação identitária que ocorre num constante movimento dialético no qual o indivíduo está inserido, sendo parte constituinte dele. O ‘outro’, nesse processo, pode vir a ser uma pessoa ou um grupo de pessoas. Pode vir a ser uma instituição ou uma organização que, através de sua estrutura burocrática, intenta se objetivar no ‘eu’ através da linguagem (informes, reuniões, treinamentos, comunicados, etc.), empenhando-se na manipulação e na formatação da subjetividade do ‘eu’. Como também pode vir a ser o ‘eu’, na tentativa de compreender a si mesmo na possibilidade de ser um ‘outro’.

Em cada momento da minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como filho; nunca compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel, mas como uma personagem (chamada por um nome, Fulano, ou por papel, o Papai, etc), como uma totalidade... parcial. O mesmo pode ser dito de meu filho e de meu pai. (Ciampa, 1996, p. 170)

Mediante as relações sociais se estabelecem certos rótulos com os quais somos reconhecidos e nos reconhecemos através deles. Podemos colocar como exemplo o nome de um indivíduo, que se constitui, juntamente com outros rótulos, o início do processo da formação identitária do indivíduo dada pelo ‘outro’.

Ainda no ventre materno, o bebê é reconhecido socialmente como o bebê de determinados pais ou de determinada família. Muitas vezes um nome é dado ao bebê quando ainda se encontra no ventre materno. Podemos considerar o nome como a primeira predicação concedida ao indivíduo pelo ‘outro’. Sendo que esse novo ‘eu’ cresce e desenvolve-se com o nome que lhe é atribuído, no qual define ‘o que’ ou ‘quem’ ele é. Ou mesmo ‘o que’ ele pode vir a ser, pelos desejos, pelos

anseios e pelas expectativas postas pelo ‘outro’, convergendo e divergindo com os desejos, com os anseios e com as expectativas do ‘eu’.

Dessa maneira o indivíduo tende a identificar-se e é identificado pelos atributos que lhe são conferidos pelo ‘outro’. Segundo Ciampa (1996, p. 131) “interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso”. Sendo assim, os predicados atribuídos ao indivíduo fundem-se a ele, designando-lhe um papel no qual deverá assumir, construir e reconstruir conforme as circunstâncias na qual ele está inserido.

Contudo, é preciso considerar as condições que circunscrevem o processo no qual tais predicados são atribuídos ao indivíduo. As resistências e as abdicações que podem surgir durante ou em decorrência desse processo. Lembrando que o ‘eu’ também se assume como ‘outro’ nas relações interpessoais.

Ainda assim, comumente no cotidiano das relações sociais, comumente são atribuídos predicados ao ‘outro’. Ele se reconhece e é reconhecido, tal qual o papel que lhe é dado a assumir e a representar na sociedade sob o olhar do ‘eu’ e do ‘outro’. Através de uma determinada atividade que se realiza, comumente é possível declarar quem o ‘outro’ é.

Raro, quando se relaciona o indivíduo a uma atividade: o fulano ensina matemática. Comumente tende-se a atribuir uma atividade ao indivíduo: o fulano é professor de matemática. Dessa maneira, o indivíduo tende a interiorizar as determinações do que é ser um professor de matemática, identificando-se e sendo identificado pela posição que lhe é posta pela sociedade. Ou seja, com certa frequência o reconhecimento não se faz somente mediante ao conhecimento que lhe é próprio por sua formação, mas ele se constrói na complexidade das atribuições dadas pelo ‘outro’ sobre o que é ser um professor de matemática (disciplina chata, professor chato; arrogante; metódico; frio; etc.). “O indivíduo não mais é algo: ele é o que faz” (Ciampa, 1996, p. 135).

Em contrapartida aos desejos e anseios do ‘outro’, o ‘eu’ possui seus próprios desejos, anseios e expectativas. O conhecimento e o reconhecimento do ‘eu’ pelo ‘outro’ repercute no mundo através da realização de uma determinada ação. Ao se

fazer algo que se concretize no mundo, que venha a tornar externo a sua subjetividade, o ‘eu’ e o ‘outro’ se formam e se reformam em suas percepções, logo, entendemos que uma identidade se forma nesse jogo dinâmico, complexo e interativo entre o ‘eu’, o ‘outro’ e o ‘meio’ no qual, historicamente, vivem.

Isto posto, entendemos a existência de um forte movimento dialético no processo de formação de uma identidade. Ao desejar ser, tal qual o outro anseia, um jogo de interesses e circunstâncias se promove na medida em que diferentes desejos e expectativas se projetam no mundo.

Ao considerarmos que o ‘eu’ é condicionado ao mesmo tempo em que condiciona o ‘outro’, promovendo um círculo relacional que vai configurando os modos de ser, de pensar e de agir. Ou seja, aquele que condiciona o comportamento dos outros, torna-se condicionado pelo próprio movimento de condicionar. O indivíduo acaba por ser condicionado pelo próprio ato, pela sua ação, por aquilo que pensa, por seus sentimentos, pelo contexto histórico em que vive, pela sua cultura, pelos seus amigos, pela sua família, pelo seu trabalho, enfim, por tudo aquilo que adentrar a sua vida de forma natural ou por esforço humano.

Esse contínuo processo que condiciona e que cria hábitos, “que representa a pessoa e a engendra” (Ciampa, 1996, p. 243), nos permite, mediante sua manifestação pela linguagem, compreender, em certa medida, sobre a identidade desse indivíduo.

A identidade do indivíduo metamorfoseia-se ao longo da sua história de vida conforme suas inter-relações se desenvolvem com o meio social e com o momento histórico no qual está exposto. Portanto, ao expressar-se, ele se percebe e expressa a noção que tem de si mesmo através de um complexo movimento relacional existente com o ‘outro’ e com o ‘meio’. Ou seja, o indivíduo se compreende e é compreendido através dos atributos que o ‘outro’ lhe designa e de sua relação com essa percepção, ora passiva, ora de confronto. Mas é no exprimir-se, no falar de si mesmo, no expressar sua percepção de mundo, que o indivíduo se materializa na realidade.

Concordamos que o processo de formação da identidade profissional é caracterizado pelas interações desenvolvidas no ambiente de trabalho e que “uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais” (Berger e Luckmann, 2013, p. 221). Logo, mediante a realização de seu trabalho, ser um bom ou um mau profissional pode vir a não ser uma premissa do trabalhador, mas daqueles que atribuem tal valor a ele.

Contudo, dado os diferentes desejos e expectativas da organização e dos indivíduos que fazem parte dela, esses se localizam em um contínuo processo de convergência e de divergência.

Berger e Luckmann (2013, p. 221), afirmam que:

Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a.

Os estudos de Ciampa (1996) e Berger e Luckmann (2013) vêm corroborar com nossa postura investigativa ao perceberem o indivíduo como produto dos processos sociais no qual está exposto e ao mesmo tempo produtor de tal contexto. Entendemos que a identidade profissional pode vir a se concretizar pela compreensão que o trabalhador tem de si mesmo mediante o ‘outro’, em uma complexa relação entre o ‘eu’, o ‘outro’ e o ‘meio’.

Isto posto, uma questão nos é válida: como o professor coordenador compreende as convergências e divergências inerentes à escola e ao seu trabalho?

Ao exprimirem seus entendimentos sobre essa questão, os professores coordenadores entrevistados demonstraram compreender as divergências, em

eu

meio outro

nosso pensar, de forma um pouco autoritária. Caracterizando-a como um impedimento ao seu trabalho e não como uma ação que existe naturalmente nas relações sociais. Ou seja, interpretam que as divergências são barreiras postas por aqueles que “são do contra” e que é preciso destruir essa barreira. Não compreendem as diferenças em decorrência das várias motivações que possam existir e coexistir entre os indivíduos. Quanto às convergências, essas se resumem ao aceite irrestrito das intervenções e proposições postas por eles aos docentes.

A partir de suas análises, Ciampa (1996) nos revela que a materialidade das relações sociais no mundo surge a partir das singularidades que cada indivíduo projeta em ‘si’ e no ‘outro’. Como afirma o autor, isto ocorre por que:

Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. [...] Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade, assim, deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente acadêmica: é sobretudo uma questão social, uma questão política. (p. 127)

Em nossas entrevistas, os professores coordenadores expressaram em suas falas que a percepção que eles têm da forma como as outras pessoas os enxergam é de que eles são vigias que monitoram o trabalho docente. Todavia, compreendem que “estão lá para ajudar” o docente em seu trabalho.