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A comunicação ligada à cultura: mediações para entender a televisão

3. O GÊNERO COMO CATEGORIA CULTURAL: PISTAS PARA ENTENDER A

3.1 A comunicação ligada à cultura: mediações para entender a televisão

Para compreender os gêneros para além de uma categoria textual, precisamos entender sua vinculação com a cultura. Para Martín-Barbero o gênero está ligado às mediações, lugares onde acontecem processos de negociação entre a produção e a recepção. O conceito de gênero aparece no seu livro Dos meios às mediações, para explicar como atuam na dinâmica da televisão articulando narrativamente os produtos televisivos e mediando entre o sistema produtivo e o consumo (MARTÍN-BARBERO, 1987).

O autor está preocupado com uma ideia da comunicação ligada à cultura, que permita analisar matrizes históricas, temporalidades sociais e especificidades políticas. Esse pensamento surge do desejo de superar os limites de um modelo hegemônico com o qual se tinha entendido a comunicação até 1980.

O autor explica que, na América Latina as concepções instrumentalistas com que se olhava à mídia nos anos sessenta, impediram a compreensão de seu papel na cultura. Entendida somente como ferramenta de ação ideológica, a única analise possível era sobre os traços que deixava o aparato dominador, desconsiderando os processos de recepção, as diferentes leituras e usos, e os conflitos e resistências.

Como portadores de um poder onipotente, entendia-se que “apenas analisando os objetivos econômicos e ideológicos dos meios de comunicação de massa, era possível saber as necessidades que geravam e como eles submetiam aos consumidores” (MARTIN- BARBERO, 1987, p. 221- 222, tradução nossa50). Uma ideia da comunicação baseada em um esquema de emissores dominantes e receptores dominados, regida pela passividade e a alienação do consumo.

Nos anos setenta, tentou-se olhar para a comunicação a partir de uma visão cientificista e positivista. Aplicando teorias da engenharia como a de a transmissão de informação, a comunicação achou um marco de conceitos que, com respaldo na matemática e na cibernética, ofereceram um modelo para delimitar o campo da comunicação e ordenar seus objetos (MARTÍN-BARBERO, 1987). No entanto, esta nova maneira de entender a comunicação deixava de lado a questão do sentido e do poder, assim como os conflitos e os interesses que se apresentam no controle da informação e os problemas derivados da desinformação.

50 Solo con analizar los objetivos económicos e ideológicos de los medios masivos podía saberse que

Nessa perspectiva, as contradições e disputas só representam falhas no sistema, resíduos de ambiguidade. Acaba-se apagando o político dos processos comunicativos, “porque o político é justamente a assunção da opacidade do social como realidade conflitiva e cambiante, assunção que se realiza através do aumento da rede de mediações e da luta pela construção do sentido da convivência social” (MARTIN-BARBERO, 1987, p. 224, tradução nossa51).

Ainda que diferentes, tanto as visões instrumentalistas quanto as cientificistas entendiam a comunicação como um circuito simétrico e vertical em que a mensagem viaja entre dois pontos homólogos, emissor e receptor, desconsiderando as complexidades dos encontros entre destinadores e destinatários e supondo que “o máximo de comunicação funciona sobre o máximo de informação e este sobre a univocidade do discurso” (MARTÍN- BARBERO, 1987, p. 223. tradução nossa52). De igual forma, as duas ideias estão baseadas em uma fragmentação do processo de comunicação que o relaciona com um esquema de transmissão de informação.

Na Colômbia esta concepção instrumental da comunicação se evidenciou na maneira com os governos utilizavam os meios como plataformas de divulgação da cultura e a educação, na tentativa de modernização do país. Sob o controle do Estado, os meios eram considerados mecanismos de difusão e promoção de uma ideia hegemônica de cultura, originada por uma minoria letrada e orientada a uma maioria inculta. “Tal como se entendia, aquela massa moldável representada pelo povo receberia os conteúdos como tal, passivamente, e quase sem perceber acordaria de sua ignorância sendo já um povo moderno” (URIBE, 2004, p. 49, tradução nossa53). Nesse sentido, promoveu-se uma programação entendida como culta, desenvolveu-se uma ampla rede de televisão educativa e se adotaram medidas para que, ainda com a participação do comercial, se produzisse uma televisão que atendesse às necessidades da nação, segundo a interpretação do Estado.

Inclusive, a relação da política com a televisão se estabeleceu sob a crença de que os meios serviriam de plataforma para a difusão de pensamentos políticos, primeiro, segundo os interesses do regime militar e depois, a favor dos partidos políticos tradicionais.

Nos anos oitenta, as transformações da globalização trouxeram consigo novas maneiras de interpretação do mundo e converteram os limites que apresenta o conceito de

51 Pues lo político es justamente la asunción de la opacidad de lo social en cuanto realidad conflictiva y

cambiante, asunción que se realiza a través del incremento de la red de mediaciones y de la lucha por la construcción del sentido de la convivencia social.

52

El máximo de comunicación funciona sobre el máximo de información y éste sobre la univocidad del discurso.

53 Tal como se venía entendiendo, esa masa moldeable que representaba el pueblo recibiría los contenidos tal

nação em foco de conflitos. Outras formas de luta contra a dependência e novas maneiras de conformação de identidades em um cenário de fronteiras difusas começaram a surgir. Por um lado, a globalização tende à individualização, fragmentação ou homogeneização das sociedades e culturas, promovendo uma grande identidade global que beneficia a quem ostenta o poder, mas na perspectiva oposta, a globalização possibilita aos atores tradicionalmente menos privilegiados a apropriação de recursos midiáticos, econômicos, simbólicos ou tecnológicos, para difundir discursos contra hegemônicos ou reivindicar novas maneiras de identificação.

Nesse panorama, acontece um redescobrimento da cultura ligada ao popular, às articulações e mediações da sociedade civil e ao reconhecimento de experiências coletivas que não se enquadram dentro das formas dominantes. Na redefinição do cultural é chave a compreensão da sua natureza comunicativa, “seu caráter de processo produtor de significações e não somente de circulação de informações e, portanto, no que o receptor não é meramente um decodificador do que o emissor coloca na mensagem, mas um produtor também” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 228, tradução nossa54

).

Martín-Barbero considera pensar a comunicação desde a cultura. A partir daí propõe um novo mapa de problemas em que estejam incluídos os sujeitos e as temporalidades sociais, ou seja, “a trama da modernidade, descontinuidades e transformações do sensorium sobre os que gravitam os processos de constituição dos discursos e os gêneros em que se faz a comunicação coletiva” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 211, tradução nossa55).

A ideia de olhar os processos comunicativos desde a cultura não troca as indagações, que continuam sendo pela dominação, a produção e o trabalho, mas muda o lugar das perguntas, desde as brechas, o consumo e o prazer (MARTÍN-BARBERO, 1987). A proposta é uma nova maneira de olhar para a comunicação que de conta de abarcar a totalidade do processo comunicativo, uma mirada que não esteja centrada somente na produção ou na recepção, mas onde acontecem suas negociações e enfrentamentos: o campo das mediações.

A proposta das mediações é considerada pelo autor para compreender, especialmente, o funcionamento social e cultural da televisão. Em Dos meios às mediações, apresenta-se um

mapa noturno para explorar o campo das mediações, lugares que delimitam e configuram a

materialidade social e a expressividade cultural da televisão (MARTÍN-BARBERO, 1987),

54 Su carácter de proceso productor de significaciones y no de mera circulación de informaciones y por tanto, en

el que el receptor no es un mero decodificador de que en el mensaje puso el emisor, sino un productor también.

55 La trama de modernidad, discontinuidades y transformaciones del sensorium que gravitan sobre los procesos

propondo três lugares de mediação: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural.

A cotidianidade familiar se refere tanto aos processos de leitura e interpretação que se estabelecem desde a família, quanto às marcas que deixa o espaço familiar na constituição dos discursos televisivos. A mediação da cotidianidade familiar se expressa a partir da simulação

do contato e a retórica do direto. A simulação do contato tem a ver com aos mecanismos

mediante os quais a televisão especifica seu modo de comunicação, considerando a dispersão da atenção com que se assistem os conteúdos televisivos, “mas atende, sobretudo, à necessidade de facilitar o aporte do mundo da ficção e do espetáculo ao espaço da cotidianidade e a rotina” (GOMES, 2011, p. 115). A retórica do direto se refere à forma como a televisão organiza os espaços para criar uma ideia de proximidade com seus espectadores “interpelando-os a partir dos dispositivos que dão forma à própria cotidianidade, como o imediatismo, a simplicidade, a clareza e a economia narrativa” (GOMES, 2011, p. 115).

A segunda mediação, a temporalidade social, refere-se à organização do tempo da televisão, feito de fragmentos e repetições, seguindo a lógica do tempo cotidiano, “enquanto em nossa sociedade o tempo produtivo, o valorizado pelo capital, é o tempo que “corre” e que se mede, o outro, do qual é feita a vida cotidiana, é um tempo repetitivo, que começa e termina para recomeçar, um tempo não feito de unidades contáveis, mas de fragmentos” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 236, tradução nossa56).

A partir do ritual e as rotinas a televisão inscreve a cotidianidade no mercado, a repetição se relaciona com o tempo cotidiano e a serialização com o tempo produtivo, o tempo da estandardização:

O tempo com que organiza sua programação a televisão contém a forma da rentabilidade e do palimpsesto, um emaranhado de gêneros e de tempos. Cada programa, ou melhor, cada texto televisivo remete seu sentido ao cruzamento de gêneros e tempos. Enquanto gênero pertence a uma família de textos que se replicam e se reenviam uns aos outros nos diferentes horários do dia e da semana. Enquanto tempo “ocupado”, cada texto remete à sequência horária daquilo que o antecede e daquilo que o segue, ou àquilo que aparece no palimpsesto nos outros dias, no mesmo horário (MARTÍN- BARBERO, 1987, p. 236. Grifo do autor, tradução nossa57).

56 Mientras en nuestra sociedad el tiempo productivo, el valorado por el capital, es el tiempo que "corre" y que se

mide, el otro, del que está hecha la cotidianidad, es un tiempo repetitivo, que comienza y acaba para recomenzar, un tiempo no hecho de unidades contables, sino de fragmentos.

57 El tiempo en que organiza su programación la televisión contiene la forma de la rentabilidad y del palinsesto,

de un entramado de géneros. Cada programa o, mejor, cada texto televisivo, remite su sentido al cruce de los géneros y los tiempos. En cuanto género pertenece a una familia de textos que se replican y reenvían unos a otros desde los diversos horarios del día y la semana. En cuanto tiempo "ocupado", cada texto remite a la secuencia horaria de lo que le antecede y le sigue o a lo que aparece en el palinsesto otros días a la misma hora.

Por fim, a mediação da competência cultural tem a ver com a dupla relação que estabelece a televisão com a cultura e o com o massivo. Para o autor, na televisão mais que em qualquer outro lugar, se faz explicito o caráter do massivo que, ao mesmo tempo em que apaga as diferenças sociais em uma tentativa de integração ideológica, está permeado por matrizes culturais do popular. A televisão é então um assunto de cultura tanto quanto de comunicação. Essa dinâmica atua através dos gêneros, que são evidências da mistura entre as rotinas de produção e as demandas sociais. Ligados às mediações da temporalidade social e da competência cultural, os gêneros se reconhecem como mediadores entre o tempo do capital e o tempo da cotidianidade e entre a dinâmica cultural e a massiva.