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4. O GÊNERO DE FICÇÃO TELEVISIVA COLOMBIANA NA MEMÓRIA DE

4.3 A memória que exalta o gênero

Como foi dito no começo deste capítulo, nosso interesse principal de análise, estava nas falas dos personagens, mas entendemos que os produtos onde aparecem, contribuem à organização de um relato sobre a ficção nacional, e por tanto, suas características devem também ser consideradas. Inclusive, compreendemos que, mais que uma reconstrução, os personagens entrevistados estavam relatando sua experiência na televisão e, nesse sentido, apresentaram-nos um ponto de vista de muitos possíveis.

Rousso (2002) menciona que lembrar implica sempre, em maior ou menor medida, esquecer algo, posicionar-se em uma mirada retrospectiva e compor desde ali o passado. O processo de formação da memória é complexo e nele se articulam lembranças e esquecimentos. Aquilo que é lembrado ou esquecido tem consequências no relato de passado construído.

Nessa lógica, compreendemos que os produtos não nos oferecem uma reconstrução da realidade, nem uma versão mentirosa dela, mas uma visão da história da televisão acionada por uma intenção evocativa. Com esse objetivo, o documentário, a web série e o livro buscaram abordar uma temporalidade ampla, apoiados em características, produções e épocas.

Assim, por exemplo, o documentário baseia seu discurso nas tendências que reconhece na televisão colombiana. O humor, a representação das mulheres e as temáticas narco, são os tópicos em que organiza as falas dos personagens, construindo um relato alternativo ao dos entrevistados. O documentário apresenta aos personagens como figuras autorizadas para falar da televisão pelo seu trabalho no meio, mas também, busca uma ligação coma memória do público, incluindo experiências dos personagens como telespectadores.

A web série organiza suas entrevistas em torno de produções que distingue como representativas. As conversações no sofá do Estudio 5 reconstroem momentos da televisão colombiana, em um ambiente que gera proximidade com o público.

Já o livro de entrevistas, sem ser expressamente comemorativo, também constrói uma versão da história da ficção televisiva, a partir da organização cronológica em que se apresentam os entrevistados, na lista de obras que aparecem na biografia dos personagens, e propriamente nas entrevistas, nas perguntas que indagam sobre produções de diferentes momentos.

Pretendendo recriar sua história, os produtos tendem à exaltação da televisão nacional, reconhecendo nela particularidades frente à de outros países e destacando o lugar que ocupou no país. No geral, se lhe atribui qualidade, a partir de ligações com contextos nacionais,

especialmente nos formatos de ficção. Destaca-se a televisão como uma representação do país, ou como expressa Carlos Muñoz “um reflexo do que somos” (in CARACOL, 2014, tradução nossa270).

Nas falas dos personagens parece existir um imaginário de duas televisões, uma de “antes”, na que se reconhecem elementos de originalidade, dados principalmente, por relatos alusivos a realidades do país; e uma de “agora”, caracterizada pela industrialização e pela perda de relação com as histórias de nação. Podemos inferir que a distinção temporal corresponde aos períodos de sistema misto e do privado. Observamos que os entrevistados descrevem com nostalgia o esquema misto, e de tal maneira, enaltecem-no frente ao sistema privado, ainda vigente.

Isso porque, embora o esquema misto continue existindo, como reconhecem Rey (2002) e Rincón (2013), no imaginário dos entrevistados o sistema de televisão desenvolvido em conjunto por produtoras e o Estado, deixou de existir com o nascimento dos canais privados. Em seu lugar se instalou um sistema antagônico, que privilegia o aspecto comercial sobre a variedade de relatos nacionais.

Nas três peças, a ficção aparece como elemento principal, pela quantidade de tempo ou espaço dedicado, em comparação com o destinado a outras expressões televisivas. Da mesma forma que os personagens reconhecem a existência de duas televisões nacionais, aparecem também dois tipos de ficção televisiva que se descrevem, quase sempre, como opostas.

A maioria dos personagens tende a exaltar o esquema misto e por tanto, à ficção produzida nele, atribuindo-lhe pluralidade, tendências de representação do país e traços autorais. Em contraste, se descreve um sistema privado industrializado e comercial, características que se assumem negativas.

É comum o uso de adjetivos superlativos com referência a um formato, época ou personagem específico. Isso acontece com mais frequência para produções da televisão mista onde se exaltam elementos que se consideram originais da televisão colombiana. Observamos isso, por exemplo, nas referências às telenovelas costumbristas, reconhecidas como um estilo de melodrama nacional que combina relatos das regiões com elementos de humor, ou na distinção da originalidade com que a ficção nacional tem representado o feminino, tomando distância “dos tristes estereótipos, estilo mexicano, da mulher perseguindo o amor” (Alejandra Borrero in CARACOL, 2014, tradução nossa271).

270Un reflejo de lo que somos

Inclusive falando dos aspectos desfavoráveis da televisão privada, os personagens ressaltam a originalidade da produção nacional, porque, segundo eles, são nas aproximações com outras indústrias que a televisão colombiana perde sua qualidade característica: “Há um modelo padrão que foi copiado do México, melhorado aqui, mas o México nos atropelou, tomou-nos e nos engoliu [...] e é isso que estamos fazendo agora, lamentavelmente” (Vicky Hernandez in RTVC, 2017, tradução nossa272).

As peças apresentam uma menor quantidade de referências de produções na televisão privada. No geral descrevem-se uma série de controvérsias pelas temáticas desenvolvidas e pelos modos de produção do esquema. Especialmente ao redor dos narco seriados se apresentam debates sobre seu valor como documento histórico e seus efeitos na população. As alusões a características das produções ficcionais da televisão privada estão, quase sempre, nas falas de seus roteiristas, em contraste com as da televisão mista, em que diferentes entrevistados, tendo participado ou não das produções, comentam sobre as mesmas.

Existe nos personagens o imaginário de uma televisão que se transforma a partir de rupturas nos modos de produção, dadas pela mudança ao modelo privado. Esse panorama reflete a ideia de que é o país mesmo que se transforma, com um progressivo enfraquecimento do público e do projeto cultural, que uma vez foi liderado pelo Estado.

A referência quase nostálgica dos personagens não alude unicamente ao sistema misto, mas a uma ideia de nação que estava em construção e que se dilui pela dinâmica do mercado. A ficção televisiva que se colocava como foco de resistência na televisão mista, com relatos

costumbristas alternativos às histórias de violência e narcotráfico, acaba cedendo no modelo

privado, restringindo, não somente os tipos de relatos ficcionais, mas a imagem do país à realidade do narco.

272 Hay un modelo estándar que se copió de México, mejorado aquí, pero México nos atropelló, nos cogió y nos