• Nenhum resultado encontrado

2.1 Os âmbitos da argumentação

2.1.1 A comunidade dos espíritos

Na obra Tratado da argumentação: a nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), Perelman atribui à argumentação a tarefa de provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas. O sentido do estudo da argumentação é superado quando é exposto o conceito de formação de uma comunidade a quem ela se destina. O filósofo, então, informa as condições para a formação de uma comunidade efetiva dos espíritos, demonstrando que:

três elementos tornam-se fundamentais: primeiro que haja uma linguagem de uso comum entre discursador e auditório; segundo, que haja apreço por parte do orador pela adesão do auditório e, terceiro, a disposição para ouvir de quem se destina a argumentação. Contudo, chegar a esses três fatores é um procedimento complexo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 17).

Na comunidade dos espíritos, para que a argumentação de fato aconteça, necessita-se que seus membros compartilhem de uma linguagem comum, apresentando-se como um princípio indispensável ao

procedimento argumentativo, ou seja, uma técnica que permite a comunicação. Destaca-se que somente dispor da apreciação do auditório não significa partilhar da mesma linguagem e do mesmo princípio de crenças de todos os membros ou preparar algo interessante para falar e que o orador julga ser do mesmo interesse do auditório. A sintonia na linguagem é necessária, porém mais importante ainda é entrar em contato com os espíritos para que se constitua a formação da comunidade, possibilitando posteriormente o início de um diálogo. Nesse sentido, Perelman observa que, na sociedade em que estamos inseridos, a existência de regras e hierarquias estabelecidas a partir de acordos prévios resultantes do convívio social garantiria as condições necessárias para uma conversa ser desenvolvida, mas sem garantias de que os integrantes do auditório estarão dispostos a ouvir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

É possível perceber a necessidade de sintonia na linguagem e contato com os espíritos na passagem em que Perelman utiliza a estória de Alice para explicitar a importância da disposição dos ouvintes para se entabular um diálogo. Quando Alice por acidente visita o País das Maravilhas, domina a mesma linguagem dos seus habitantes, dispõe de vontade de conversar, mas para seus interlocutores não existem pretextos para conversarem, devido à inexistência de regras, hierarquias ou quaisquer costumes que façam com que alguém deva responder ao ser interpelado. Assim, observa-se que não há o desejo de ouvir Alice ou de interrogá-la, de modo que ela incorpora o orador sem público, por ser uma coisa desinteressante ao ouvinte e, mais ainda, por não possuir prestígio junto àquelas pessoas com quem busca interagir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). O filósofo, com isso, assinala outro componente importante para que aconteça a formação da comunidade. Trata-se da importância dada pelo interlocutor ao ouvinte: “Com efeito,

para argumentar, é preciso ter consideração pela aderência do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação intelectual” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2005, p. 18).

Existe outro fator na teoria de Perelman que se ratifica numa divisão de categorias de seres a quem o orador manifesta ou não a sua estima, como segue: a categoria dos seres que o orador deseja influenciar, a categoria dos seres com quem não se importa em dirigir a palavra, aqueles com quem não tem o interesse em debater e aqueles que o orador busca ordenar. Examinando a primeira categoria, nota-se que a argumentação implica um contato intelectual entre orador e os membros do auditório, induzindo-o a uma atitude de preocupação pelo envolvimento do ouvinte, pelo seu consentimento, pela sua aderência (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

Para o filósofo, relacionar-se e conviver estando inserido numa dada sociedade é uma forma de fazer parte de uma sociedade igualitária e de associar-se à categoria de pessoas que alguém poderá se interessar em persuadir. “Participar de um mesmo círculo, conviver, manter afinidades sociais, tudo isso facilita a realização das condições prévias para o contato dos espíritos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 19). A partir da condição da inserção em um mesmo meio, verifica-se a necessidade da comunicação, isto é, o orador e as pessoas integrantes do auditório precisam ter em comum o domínio de uma linguagem para que seja estabelecida a ação comunicativa, existindo também a necessidade de ambos demonstrarem interesse um pelo outro para que ela aconteça com efetividade.

Segundo Perelman, falar ou escrever não é o bastante ao se tratar de argumentação, ou seja, tomar a palavra e ser ouvido requer mais do que aptidão linguística; o conteúdo da argumentação deve ser algo de interesse dos interlocutores ou, ainda, estar autorizado

pelo grupo, como, por exemplo, sendo o orador seu porta- voz (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Nesse sentido, escrever e ser lido vão muito além do reconhecimento como escritor, implicando, da mesma forma que na utilização da oratória, versar sobre algo admitido como importante e interessante por aquele a quem se destina a obra.

No último item do conjunto de relações, estar disponível a ouvir alguém ou negar essa oportunidade da fala subentende uma caracterização de disposição ou negação em aceitar possíveis pontos de vista. Sobre isso, o autor disserta:

Quando Churchill proibiu os diplomatas ingleses até de ouvirem as propostas de paz que os emissários alemães poderiam transmitir-lhes, ou quando um partido político avisa estar disposto a escutar as propostas que lhe poderia apresentar um formador de ministério, essas duas atitudes são significativas, porque impedem o estabelecimento ou reconhecem a existência das condições prévias para uma eventual argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 19).

Quando o orador coloca-se à disposição para ouvir alguém, isso implica também estar disposto a aceitar os argumentos da outra parte, ao passo que negar a oportunidade da fala leva ao impedimento de qualquer tentativa de conversação, como no caso de Alice e os seres do País das Maravilhas.

Em outro momento, a qualificação para falar e ser ouvido dependerá de uma regulamentação ou de que se exerça uma função dentro do grupo ao qual se fala ou do auditório universal que lhe dê tal autorização, como é o caso de um político que fará um discurso. Em suma, a condição de ser lido e ouvido é ponto fundamental na visão de Perelman, pois é a partir dela que se estabelecem as bases para a realização de um diálogo. Ter a atenção de alguém, de uma audiência, ser admitido a fazer uso da

palavra, revela certa admiração e respeito dos membros do auditório em relação à sua imagem.

Não há ao certo uma maneira segura de certificar- se de que o que o orador irá proferir corresponderá ao que o auditório deseja ouvir; portanto, isso deve ser presumido. Somente ao considerar essa identificação com o outro há condições para a formação da comunidade dos espíritos. Perelman (2004, p. 370), em sua obra Retóricas, expõe essa concepção de interesse mútuo:

A pessoa intervém a cada passo; com sua estabilidade, mas também com sua faculdade de escolha, com sua liberdade criadora, com os imprevistos do seu comportamento, com a precariedade de seus compromissos. A adesão da pessoa às teses que se lhe apresentam não é simples registro dos resultados conseguidos pela argumentação: as teses adotadas podem ser remanejadas, modificadas, a fim de ser harmonizadas com outras crenças; podem ser realizadas novas estruturações para permitir a adesão plena ao que é proposto.

Existe uma reciprocidade entre o orador e o ouvinte numa argumentação, a qual induz à aceitação de uma tese, pois o objetivo é atingir os três pontos que possibilitam as condições para a ocorrência do diálogo, ou seja, onde o orador e os membros do auditório formam a comunidade dos espíritos, a saber: a linguagem comum entre discursador e auditório, o apreço por parte do orador pelo auditório e a disposição para ouvir o destinatário do discurso. A partir da condição de que para haver argumentação é necessária a existência da comunidade, verifica-se que é dentro dos limites desta que acontece o contato com o outro, pois “todo ato argumentativo busca a adesão dos espíritos e, por isso mesmo, implica a existência de um contato intelectual” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 16).

O contato intelectual de que trata Perelman traduz- se nas condições de igualdade de participação e interesse dos sujeitos em agir na conversação, sendo estabelecidas relações de espíritos letrados, cultos, com as mesmas condições de compreensão. Não existindo esse contato, evidenciado pela participação dos sujeitos, ou sem a constituição da comunidade, a argumentação não tem efeito algum, tornando-se nula.

Na visão do filósofo, na ausência de um auditório e uma comunidade, não há diálogo; a existência unicamente de um lado do pêndulo não tem validade, havendo unicamente discursador, por exemplo. A argumentação é idealizada como uma ação: a de um orador sobre um ouvinte. Se, ao contrário, a ação ocorresse do ouvinte sobre o orador, a conversação não existiria, pois, não havendo ouvinte, não haveria espíritos dos quais o orador buscaria o assentimento, porque é sempre em função de um auditório que uma argumentação desenvolve-se e sem auditório não se concebe a comunidade.

Percebe-se, na teoria perelmiana, que é no campo da comunidade dos espíritos que as ações do orador e ouvintes/leitores são legitimadas; como decorrência, esse modelo ideal regula as demais comunidades, as crenças e valores presentes na obra de Perelman. No entanto, a comunidade dos espíritos decorre diretamente do auditório universal, ao passo que ela o legitima e, em consequência disso, representa toda e qualquer comunidade particular perelmiana, pois, nesse sentido, envolve uma situação ideal.

A importância de entender o conceito de “comunidade dos espíritos” justifica-se pelo fato de, em Perelman, a argumentação não ser apenas a descrição de um fato, mas se tornar prescritiva no sentido de as pessoas agirem tendo como referência o que foi estabelecido em comum acordo dentro do grupo, elevando, assim, a argumentação a uma instância também de consequências, que tem seu ponto central no consenso aceito pelos

integrantes do auditório universal, validado no âmbito dessa comunidade.

Perelman entende a teoria da argumentação como uma técnica capaz de substituir a violência, ou seja, o que a violência pretende obter pela coerção, a argumentação pretende fazer pela adesão. Portanto, o recurso à argumentação requer o estabelecimento de uma comunidade de espíritos que, pelo mecanismo interno de sua própria constituição, exclua a violência. Isso porque, em uma comunidade baseada em princípios igualitários, as próprias instituições regulam as discussões (MONTEIRO, 2006).