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2.3 O Acordo na argumentação

2.3.1 Os tipos de objeto de acordo:

Destacou-se, anteriormente, a importância de um acordo prévio entre discursador e auditório para que a argumentação realize-se de modo efetivo. Esse acordo baseia-se inicialmente sobre fatos, verdades e presunções, que são pontos de partida da argumentação; assim sendo, tratam da realidade e não equivalem, num primeiro momento, a um julgamento.

O conceito de fato, tratando-se do ato argumentativo, manifesta-se como uma espécie de acordo, por ser considerado algo inerente ao pensamento de vários indivíduos, cuja aceitação é uma reação pessoal e que se estabelece para a maioria. Ressalta-se que sua função na argumentação é se referir a uma realidade objetiva, em que todos partilham da mesma crença. Ele se reveste de uma certeza tão aprofundada que se torna desnecessária a justificação da sua importância.

Os fatos são subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a intensidade de adesão não tem nenhuma necessidade de justificação. A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 75).

Portanto, o fato encontra-se à margem da argumentação, representando apenas um apoio, uma premissa que não é problematizada e que é acolhida, constituindo a realidade objetiva.

Os fatos são subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a intensidade de adesão não tem de ser aumentada, nem de ser generalizada, e que essa adesão não tem nenhuma necessidade de justificação. A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 75).

O conceito de verdade é um princípio complexo e relativo, que se refere a acordos entre fatos religiosos, filosóficos, científicos ou que ultrapassam a experimentação.

Entende[-se] a verdade de forma parecida ao fato, com a diferença de que a verdade se refere a um princípio mais difícil, com alvo mais universal, ou seja, uma mistura de ligações entre fatos, e que pode se expressar em concepções filosóficas, religiosas e mesmo em teorias científicas (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2005, p. 92).

As verdades diferem dos fatos por sua abrangência, servindo estes, na maioria das vezes, para indicar objetos precisos, restritos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Fatos e verdades são

premissas válidas sob o ponto de vista prático. Seus regulamentos naturalmente já se encontram internalizados pelos ouvintes; portanto, no lugar em que se encontram, não é necessário que o discursador reforce a aderência. No entanto, destaca-se que verdades e fatos, quando contestados pelo auditório, podem perder sua identificação como premissas. Isso acontece quando de seu uso na condição de objetos de dúvidas ou quando não são considerados premissas apropriadas para determinada realidade, por ampla quantidade de pessoas no auditório.

A presunção é um conceito ligado ao verossímil ou normal, porém seu poder de persuasão é limitado. O ato de presumir sempre é sopesado partindo de determinados grupos, mostrando-se passível de variações de ponto de vista, o que não ocorre com o probabilismo. Constata-se ainda que, na tentativa de explicar uma presunção, existe a possibilidade de intensificá-la, mas, quando comparada às verdades e fatos, pode ocorrer a diminuição do seu poder de convencimento. Sobre isso, ressalta Reboul (2004, p. 165):

As presunções têm função capital, pois constituem o que chamamos de ‘verossímil’, ou seja, o que todos admitem até prova em contrário. Por exemplo, não está provado que todos os juízes são honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se alguém desmente tal ou tal caso, cabe-lhe o ônus da prova. O verossímil é a confiança presumida.

É notável, portanto, que, mesmo tendo pontos de divergência em seus fundamentos com relação aos fatos e verdades, as presunções aceitam constituir um ato persuasivo que pode ser provável ou razoável.

Nessa linha de raciocínio, Perelman explica as presunções de uso comum:

Citaremos algumas presunções de uso corrente: a presunção de que a qualidade de um ato manifesta a da

pessoa que o praticou; a presunção da credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro o que nos dizem e que é admitida enquanto e na medida em que não tivermos motivo para desconfiar; a presunção de interesse, segundo a qual concluímos que todo enunciado levado ao nosso conhecimento supostamente nos interessa; a presunção referente ao caráter sensato de toda ação humana (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 79).

As presunções estão vinculadas, em cada caso particular, ao normal e ao verossímil (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). O “normal” é o que ocorrerá ou ocorreu, ou melhor, é uma base com a qual podemos contar em nossos raciocínios; assim, o que é “normal” está ligado a alguma coisa idêntica, que já existe. As presunções estão relacionadas, desse modo, a essas perspectivas. “Presume-se, até prova em contrário, que o normal é um embasamento com o qual podemos considerar em nossos raciocínios” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.80), o que não significa uma representação definível em termos de distribuição estatística, devendo-se frisar que uma presunção difere da probabilidade calculada. O que se espera das pessoas maldosas é que cometam más ações e das bondosas, ações boas, da mesma forma que se presume que as mentirosas falem mentiras e que as confiáveis falem com veracidade.

2.3.2 Os tipos de objeto de acordo: o acordo sobre o preferível

Convém ressaltar que, enquanto a verdade e a presunção propõem um dizer real no sentido de que são falas relacionadas a fatos, os valores, as hierarquias e os lugares do preferível expõem uma ligação aos pontos de início do processo argumentativo, vinculados ao que é

preferível, buscando a adesão específica de alguns grupos.

O valor serve de base para várias concepções, sobretudo no que se refere às ciências humanas; não obstante, pode interferir no desenvolvimento, como, por exemplo, em matéria de direito, filosofia etc. Existem valores concretos e abstratos. Os valores concretos dizem respeito aos seres vivos, grupo específico, ou seja, um elemento particular avaliado a partir do fator exclusivo. Esses valores geralmente são identificados como elementos conservadores, ao passo que os valores abstratos são elementos que servem para motivar as transformações.

Perelman classifica a adesão a um valor da seguinte forma:

Estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, que se pode alegar numa argumentação, sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos. A existência dos valores, como objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir, é vinculada à ideia de multiplicidade dos grupos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 84).

Se a caridade é, para mim, um valor, isso designa uma atitude perante certo tipo de organização social, mesmo que eventualmente ela não faça diretamente parte do meu real. Em outras palavras, um auditório pode estar de acordo sobre um valor como a caridade, definindo, assim, uma atitude perante o real, sem que considere o seu acordo sobre a caridade um fato, particularmente, naquela situação.

Perelman ainda comenta que os valores, em certo momento, interferem em todas as argumentações, ou seja, em campo, como em raciocínios de nível científico, ao se pretender a construção de um valor de verdade, os valores

restringem-se geralmente à origem da formação de regras e conceitos constituintes de um dado sistema (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

As hierarquias são princípios de classificação relativos aos valores concretos e abstratos, como, por exemplo, raça humana acima da raça dos animais ou o justo sendo mais significante que o útil. A existência e utilização de valores pressupõem uma constituição de hierarquias produzidas por esses mesmos valores. Por exemplo: ao valorizar o ser humano, institui-se uma hierarquia que, consequentemente, o coloca acima de todas as outras criaturas habitantes no mundo; da mesma forma, uma valorização do lucro sobre a “justiça social” coloca no cume da hierarquia os valores da competitividade e concorrência, sobre os valores do conforto, da comodidade, da alegria etc. Assim, as hierarquias podem, por vezes, ser consideradas mais convenientes que os próprios valores, porque representam as vontades do auditório particular, referindo-se aos fundamentos que classificam e constituem os valores.

Selecionar valores a ser aceitos por um auditório é menos difícil que conseguir estipular de que forma serão verdadeiramente hierarquizados, comparados. Isso porque a argumentação não se ampara somente nos valores abstratos e concretos, competindo também ressaltar a importância das hierarquias.

Um dos princípios hierarquizantes mais usuais é a quantidade maior ou menor de alguma coisa. Assim é que teremos, ao lado das hierarquias de valores baseadas na preferência concedida a um desses valores, hierarquias propriamente ditas baseadas na quantidade de um mesmo valor: o grau superior é caracterizado por uma quantidade de certo caráter (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 91).

Entretanto,

as hierarquias de valores são, de certa forma, mais significante com relação à composição de uma argumentação, do que os próprios valores. Com efeito, a maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 92).

Assim, a aderência de certos auditórios aos valores acontece como maior ou menor força, sendo sua hierarquia determinada pelo grau de intensidade de adesão que ocorre com uma ou outra pessoa.

Além dos vários tipos de acordo, tanto no campo do real quanto no campo do preferível, outra questão determinante para a argumentação diz respeito aos “lugares” utilizados como recursos à argumentação.