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2.1 Os âmbitos da argumentação

2.1.2 O conceito de auditório

A concepção de auditório é uma das noções mais importantes no pensamento retórico de Perelman. Muitas vezes é o bastante relatar experiências, mencionar fatos ou enunciar algumas verdades para suscitar no ouvinte o devido interesse no que lhe dito. Nesse sentido, é necessário que o ouvinte preste atenção ao orador, pois esse contato não diz respeito unicamente às condições prévias da argumentação, mas também ao seu desenvolvimento. Sendo assim, eis o conceito de auditório definido pelo filósofo:

É por essa razão que, em matéria de retórica, parece- nos preferível estabelecer o auditório como o conjunto daqueles que o discursador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador raciocina, de uma maneira mais ou menos consciente, nos que procura convencer e que formam o auditório ao qual se dirigem seus discursos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 22).

Com base nessa citação, verifica-se que o auditório é algo estabelecido pelo orador, de modo que o conhecimento daqueles de quem se busca o assentimento

torna-se requisito prévio a qualquer tentativa de argumentação. É a partir da definição clássica de Aristóteles que Perelman concebe sua concepção de auditório e acrescenta ao seu pensamento um conceito original: o de auditório universal.

Considerando o princípio de que é a partir dos ouvintes que toda argumentação desenvolve-se, assinala o auditório universal como “formado por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996, p. 33). Fica subentendido que, quanto mais se conhece de seu auditório, menos trabalhoso torna- se o exercício da argumentação, pois este “é composto por cada qual a partir do que conhece de seus semelhantes, de maneira a superar as poucas oposições de que tem consciência” (PERELMAN, 1996, p. 37).

No entanto, quando da idealização de um auditório universal, os argumentos do orador devem objetivar um discurso, que resultará na criação da imagem de um auditório que envolva todos os seres. Como afirma Reboul (2004, p. 93),

o orador sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumentação.

O auditório universal apresenta-se como uma finalidade a ser atingida, mas, mesmo sendo indispensável, admite-se certa imprecisão com relação a esse conceito, considerando que cada cultura ou cada indivíduo pode concebê-lo de forma diversificada.

Sobre o conceito de auditório perelmiano, salienta Atienza (2000, p. 63, grifo do autor):

Uma das funções que esse conceito desempenha na obra de Perelman é a de permitir distinguir (embora se trate de uma distinção imprecisa, como ocorre também com a distinção entre os diversos auditórios) entre persuadir e convencer. Uma argumentação persuasiva, para Perelman, é aquela que só vale para um auditório particular, ao passo que uma argumentação convincente é a que se pretende válida para todo ser dotado de razão.

A partir disso, nota-se que o objeto de discussão aqui apresentado – o auditório universal –, além de promover a referência ideal de visualização da direção do discurso, permite ao orador com pouca experiência escolher entre duas estratégias argumentativas: persuadir ou convencer, as quais, por também serem fontes de conceitos imprecisos, são intensamente criticadas por outros autores.

Atienza (2000, p. 81) continua:

Alexy, por seu lado, parece aceitar o caráter ideal da noção, mas entende que em, Perelman, encontra-se dois sentidos diferentes de auditório universal. Por um lado, o auditório universal seria uma construção do orador (daí seu caráter ideal) dependendo, portanto, das ideias de indivíduos particulares e de diferentes culturas. Mas nesse caso um auditório só é um auditório universal, para quem o reconhece como tal, com o que o papel normativo da noção é seriamente limitado (ATIENZA, 2003, p. 81).

Analisando o pensamento de Perelman, Atienza (2000) considera tanto aspectos positivos quanto negativos. Com relação ao aspecto positivo, concorda com Robert Alexy e sua caracterização ideal à concepção de auditório universal, ao passo que, como aspecto negativo, se observa uma noção um pouco confusa. Alexy, num olhar mais apurado acerca dessa ligação, afirma que a aparência de auditório universal associa-se com a

condição ideal de Habermas. “O que em Perelman é o acordo do auditório universal, é em Habermas o consenso obtido sob condições ideais” (ALEXY, 2005, p. 170).

Acredita-se que é a partir do acordo obtido por parte do auditório universal que surge o parâmetro de racionalidade e objetividade argumentativo, levando em conta que esse auditório só é persuadido por meio de argumentos racionais. Nisso funda-se o caráter objetivo, estendendo essa legalidade a todo ser racional, a partir do cultivo de utilização de argumentos racionais, ao analisar que “cada homem crê num grupo de fatos, de veracidades, que todo homem ‘normal’ precisa, segundo ele, acolher, porque são adequados para todo ser racional” (PERELMAN, 1996, p. 31).

Para obter o assentimento do auditório, o orador deve persuadi-lo. Nessa ocasião, Perelman faz um questionamento: como idealizar os auditórios aos quais é conferido o papel normativo que permite decidir a natureza convincente de uma argumentação? (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Um rumo para essa pergunta encontra-se na fundamentação de dois tipos de auditório: o particular e o universal. Dar-se-á atenção, neste momento, ao auditório particular, em contraponto ao auditório universal.

Pode-se entender como auditório particular aquele que se situa no tempo e no espaço, formado por um grupo reservado e com certo grau de limitações. Ao se adaptar a esse tipo de auditório, o discursador prepara sua tese, que, ao menos a princípio, pode diferir ou mesmo contrapor-se a teses acolhidas por outros auditórios. Nesse contexto, o que é aceito por um auditório particular é válido somente quando se refere a ele mesmo, visto que o que convenceu determinado auditório pode não satisfazer outro. Como ponto de partida de sua argumentação, o discursador pode utilizar crenças específicas, divididas apenas pelos elementos daquele grupo, ao direcionar a sua argumentação a um auditório específico. Assim, a

argumentação acolhida por esse auditório não vai além do que sua limitação permite.

Para demonstrar os limites de adesão de um auditório particular, imagine-se um argumento conduzido a um grupo de operários, que tivesse como ponto de partida a tese de que eles deveriam ter os seus salários aumentados, pois assim poderiam viver melhor, tendo suas necessidades básicas supridas. Um representante de sindicato poderia perfeitamente, em seu discurso, tomar tal tese como ponto de partida de sua argumentação, uma vez que todos os integrantes operários concordariam com ela, mas, se esse mesmo representante se dirigisse a um empresário, por exemplo, visando à sua adesão, ele deveria refazer seu ponto de partida, pois, almejando se dirigir a todos os seres racionais, deveria buscar pontos de partida universais.

Cumpre alertar para a diferença existente entre auditório concreto e auditório ideal. O primeiro é aquele formado de pessoas verdadeiramente reais, ou seja, um auditório fisicamente localizado, já o segundo apresenta- se como uma irrealidade, um simples arranjo do orador. Ressalta-se que, a partir das várias combinações de auditório, constitui-se outra diversidade de argumentações. Nessa linha, supõe-se que o auditório particular concreto é formado por pessoas reais e com limitações, porém o auditório particular ideal é aquele almejado por uma argumentação, que, mesmo envolto por valores exclusivos compartilhados pelo grupo, põe como regra a racionalização dos argumentos, para então ocorrer a conversação.

Com relação ao auditório universal concreto, este se compõe de toda humanidade viva, ou seja, as pessoas capazes de utilizar a racionalidade num determinado local e época; por sua vez, o auditório universal ideal é aquele constituído por todos os indivíduos racionais, mas não está exposto a nenhuma limitação, seja temporal ou espacial. O auditório universal pode ser entendido de várias formas

em razão da abundância de informações contidas em sua definição. Entretanto, podem-se apontar quatro caminhos entre as possíveis interpretações da noção de auditório universal: demonstrativa, psicológica, sociológica e filosófica.

A interpretação demonstrativa utiliza-se dos princípios da lógica, acreditando que, com o processo demonstrativo, possivelmente pode-se ocorrer uma maior qualidade argumentativa com relação ao auditório universal. Perelman, em determinado momento, parece recomendar que, no extremo, as regras de inferência válidas da lógica formal deveriam ser respeitadas para que a argumentação ocorresse com eficácia. “Uma argumentação conduzida a um auditório universal deve persuadir o leitor, da característica coerciva das razões oferecidas, de sua evidência, de sua legitimidade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2005, p. 41).

É notável em seus escritos que Perelman utiliza os termos ‘evidência’ e ‘prova lógica’ para indicar o caráter das explicações relacionadas ao auditório universal. Analisando tais passagens de forma individual, elas levam a crer que a eficácia da argumentação direcionada ao auditório universal é proporcionada pela própria lógica, pois há conexão entre ambas. No entanto, o filósofo visivelmente rejeita essa forma de interpretação, demonstrando a todo momento o caráter difícil do auditório universal.

Sobre o termo ‘evidência’, isso é explicável devido a uma falta de precisão terminológica, pois se verifica, em outras passagens, que o autor teve a atenção de apresentar tal expressão entre parênteses, explicando que não se poderia utilizar com precisão naquele caso. Não pensar a argumentação de forma evidente dificulta a possibilidade de sua adaptação por meio da lógica, “pois este é realizado de uma forma essencialmente mecânica,

ao passo que a argumentação apresenta-se de forma justificatória conduzida ao livre assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 35).

Afirmar que o auditório universal pode ser interpretado psicologicamente é reduzi-lo a algo simplesmente psíquico, pois essa interpretação entende o receptor da mensagem como algo criado apenas na imaginação do discursador. A partir do conceito de auditório universal, é possível enumerar algumas noções que levam a esse entendimento: primeiramente, pela razão de ele ser ideal ao se opor ao auditório concreto; depois, por ser simplesmente uma edificação do orador e sua adesão ser somente uma mera aspiração do discursador; por último, pelo fato de ser uma suposição, ou seja, dependendo do orador, pode variar também o auditório.

Verifica-se que o auditório universal é, dessa forma, alguma coisa idealizada pelo orador e depende apenas de suas percepções individuais. Num primeiro momento, Perelman demonstra concordar com essa forma interpretativa: “[...] é óbvio que esse auditório universal, ao qual se dirige cada pensador racional, é apenas uma criação de sua mente: ele depende deste último, de sua informação, da concepção que ele tem dos valores que chamamos universais [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2005, p. 120).

A interpretação sociológica busca seu sentido no fato de o auditório universal ser estabelecido no tempo e espaço, como também transformado a partir da influência que a cultura exerce sobre ele. Vale salientar que, na medida em que se modifica a cultura, varia o tipo de auditório; aliás, em vários momentos Perelman salienta essa noção. O grande impasse nesse tipo de interpretação não se encontra na dificuldade de compreensão do auditório universal, tampouco na aceitação de interpretações precipitadas de alguns fragmentos do filósofo em que parece demonstrar certa concordância

com relação ao aspecto sociológico. Como defensor dessa visão, cita-se o professor de direito e jurisprudência na Universidade de Bruxelas, Wintgens (1993, p. 346), “que buscou no modelo sociológico de racionalidade, um modo unilateral de ver o auditório universal”.

A princípio, parece ser uma interpretação apropriada, porém o equívoco está em querer admiti-la como a única interpretação provável, visto que o auditório universal não pode ser assumido como concepção única de uma sociedade. Em consequência disso, uma singela interpretação sociológica do auditório não permite elucidar exatamente a característica universal ligada à noção de auditório universal.

A interpretação filosófica é a que mais se adapta ao auditório universal de todas apresentadas anteriormente, pois, encarnando a própria razão, satisfaz o ideal argumentativo universal, ou seja, compreende todos os seres racionais e não somente uma parte dos integrantes de um mesmo grupo. Consoante Perelman, “a argumentação de semelhante diálogo só tem significado filosófico se ela pretende ser válida aos olhos de todos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 41).

Observa-se que essa forma interpretativa contrapõe-se ao aspecto sociológico, pois, nesta forma de entender, o imaginário do povo fica em destaque, não passando o auditório universal de uma comunidade, de modo que o ideal interpretativo sociológico perdura tão somente na medida em que esse grupo perdura no tempo, ficando historicamente estabelecido num espaço geográfico e também por um período.

Entende-se que, ao dirigir a sua argumentação ao auditório universal, o orador busca ultrapassar os limites de espaço e tempo, mirando diretamente à razão dos que recebem o convite argumentativo. Pressupõe que a pessoa com pleno uso da racionalidade e, consequentemente, dotada de certa autonomia pode optar por aquilo que é mais adequado para si e consegue decidir

partindo de seus próprios conceitos e não de uma influência social, representando, dessa forma, um mero espectador manipulável.

De acordo com Toulmin (1984), o ponto de partida da argumentação é o fato de que raciocinamos e apresentamos aos outros razões para tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos. O autor defende que o termo ‘argumentação’ condiz com a “atividade total de propor pretensões, pô-las em questão, respaldá-las, produzindo razões, criticando essas razões, refutando essas críticas” (p. 14).