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CAPÍTULO 1 – UMA REVOLUÇÃO POLÍTICA, SOCIAL E CULTURAL: A NOVA

1.4 Arte como ferramenta de engajamento

1.4.4 A comunidade do Nuevo Cine

Cineastas do Nuevo Cine se importavam com a recepção do espectador. Segundo Silvana Flores138, eles acreditavam que a obra deveria conter reflexões para ele se enxergar

naquela realidade reproduzida e a identificá-la como a própria realidade. Com isso, deveria ser ativo (e não passivo) e consciente para compreender e criticar o que via, além de se sentir estimulado para agir.

No caso específico da Argentina, podemos citar dois tipos de resultados na realização de um cinema de intervenção política: apenas a denúncia social e a denúncia somada à ação radical e militante. A primeira mostra uma situação alarmante para os espectadores verem e terem uma espécie de revelação ou desmascaramento; e a segunda vertente não apenas quer mostrar o problema, mas também analisar criticamente as causas que levaram àquela situação.

136 Ibid., p. 78. 137 Ibid., p. 79.

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Essa reflexão conduziria a uma denúncia dos culpados e a possíveis soluções ou métodos de luta139.

No primeiro caso, os exemplos mais significativos foram os filmes e as elaborações teóricas de Fernando Birri, cineasta já citado. Ele se destacou como documentarista, influenciado pela estética do neorrealismo italiano. Na película Tire dié é testemunhada uma das realidades que assombram Santa Fe, com destaque para os modos de sobrevivência das crianças e o levantamento de testemunhos.

Como representantes da segunda vertente cinematográfica, havia duas organizações principais do cinema político argentino daquele período. Em primeiro lugar, o grupo Cine Liberación, fundado em 1969 por Fernando Solanas e Octavio Getino (vinculados ao movimento montoneros e à Juventud Peronista). Solanas estudou música e teatro, se afastou do Partido Comunista depois do golpe contra Perón em 1955 e se aproximou do nacionalismo econômico e revisionismo histórico, influenciado por pensadores como Scalabrini Ortiz e Jauretche Hernández Arregui; por seu turno, Getino havia atuado na esquerda sindical e depois começou a escrever literatura de contos, tendo recebido o prêmio Casa de las Américas em 1953140. Em segundo, o Cine de la Base (que teve como líder Raymundo Gleyzer), fundado em

1973, com bases políticas no Partido Revolucionario de los Trabajadores, de ideologia marxista, e em sua organização armada, o ERP141.

O Cine Liberación atuava no centro do movimento peronista e colocava a criatividade a serviço da corrente de esquerda, ao apoiar a guerrilha montonera. Outros, como o grupo Cine de la Base, consideravam o apoio a Perón uma alienação e optavam pelo apoio à esquerda revolucionária armada142.

Meses antes do golpe de 1966, Getino e Solanas começaram a levantar material para a produção de um documentário sobre a situação neocolonial da Argentina. Naquele momento, a conjuntura do país levou à concretização de La hora de los hornos, de 1968, “uma obra monumental em suas dimensões, vanguardista no uso dos métodos de expressão, subversiva em seus conteúdos e revolucionária na prática que gerou”143. Foi definido como um filme-

ensaio, um extenso documentário que tentava ser a radiografia da Argentina posterior à queda do governo de Perón. Segundo Lucía, o filme foi enquadrado em um marco teórico que remete à teoria neomarxista, anticolonialista de cunho fanoniano, com referências teóricas tomadas dos

139 Idem.

140 TAL, op. cit., p. 65. 141 FLORES, op. cit., p. 109. 142 TAL, op. cit., p. 276. 143 Ibid., p. 65.

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nacionalistas pré-peronistas (Scalabrini Ortiz e Jauretche) e de teóricos da esquerda nacional, como Hernández Arregui144.

De acordo com Alvira145, até os últimos anos da década de 1960, a ação armada

dominou o espaço da nova esquerda, e os referidos filmes se inseriam nesse contexto. O argumento de que a utilização da violência – não necessariamente em sua expressão guerrilheira – era indispensável estava cada vez mais presente nas organizações armadas, mas não havia um consenso na esquerda sobre a questão da violência. A necessidade da luta armada não só dividia opiniões com a “velha” esquerda, mas também era discutida pela “nova”. Vários grupos não consideravam prioritária a via armada, como a Vanguardia Comunista, o Partido Comunista Revolucionario e o Peronismo de Base146.

Tais discursos eram comuns nos diferentes ambientes da nova esquerda, entre os peronistas e marxistas. Para eles, a radicalização no campo cultural é óbvia, e o papel da violência no processo de libertação é um assunto repetido – isso aconteceu em vários âmbitos, como música popular, literatura e artes plásticas. Ao final dos anos 1960, a arte passou a ser vista como expressão externa ao político, simples “comentário”, força ativa e dispositivo capaz de contribuir para o social e a luta armada147.

Em 1969, Getino e Solanas escreveram Manifesto por un Tercer Cine, publicado na Revista Tricontinental de Cuba e que proclamava um cinema ligado a mensagens revolucionárias, sendo inimigo da cultura neocolonial e imperialista. Definiam a criação cinematográfica como uma obra coletiva e repudiavam qualquer noção de neutralidade; logo, o cinema deveria ser violento, agressivo, com poder suficiente para comover as consciências e impulsionar a nação148. A obra do Cine Liberación foi uma referência para as outras

experiências de cinema militante produzidas pela esquerda peronista.

Muito menos ligados à militância política, mas fazendo parte das ideias que nutriam as vanguardas artísticas e políticas, surgiram outros conjuntos distintos do Cine Liberación e Cine de la Base. Um exemplo foi o Grupo de los 5, que surgiu entre 1968 e 1969, formado por Alberto Fischerman, Néstor Paternostro, Raúl Stagñaro, Ricardo Becher e Raúl de la Torre.

144 LUCÍA, op. cit., p. 6. 145 ALVIRA, op. cit., p. 20.

146 TORTTI, María Cristina. La nueva izquierda argentina: la cuestión del peronismo y el tema de la revolución In: TORTTI, María Cristina (Dir.). La ‘nueva izquierda’ argentina (1955-1976): socialismo, peronismo y revolución, Rosario: Prohistoria, 2014.

147 ALVIRA, op. cit., p. 20.

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Não se tratava de um coletivo de cineastas com proposta comum, visto que seus precedentes, propostas e trajetórias eram distintos, mas a esquerda os unia149.

Outro exemplo foi o Grupo Underground, formado por Alberto Fischerman, Eduardo Cozarinski, Miguel Bejo, Julio Cesar Ludueña e Rafael Filipelli, que não compactuava com algumas ideias da vanguarda militante. Inclusive, alguns de seus membros, como Filipelli, Fisherman e Corazinski, polemizavam com o pessoal do Cine Liberación, ao acusá-los de dogmáticos, intolerantes e reducionistas, enquanto estes os chamavam de elitistas e “colonizados mentais”. Apesar dessas diferenças, ambos se viam como parte comum da esquerda e havia um certo respeito profissional entre eles150.

Nesses termos, o Cine Liberación se voltou ao retorno de Perón, algo claramente percebido nas suas últimas produções. Por outro lado, Cine de la Base prosseguiu com a necessidade de somar os espectadores às linhas revolucionárias. Assim como os montoneros e a ERP se viam como “brazos armados del pueblo”, o Cine Liberación e o Cine de la Base se converteram no “brazo cultural” dessas organizações151.

A radicalização política que perpassa tanto a esquerda marxista quanto o peronismo resulta em uma corrente de cinema militante e clandestino, cujo principal representante e um dos pioneiros foi La hora de los hornos, documentário produzido por Fernando E. Solanas em 1968 que exibe a força da resistência trabalhista e da violência política na Argentina dos anos 1960. Já no renascimento democrático de 1973, os longas-metragens políticos redobram sua efervescência ao deixarem a clandestinidade e serem vistos em circuito comercial. Nessa linha estão Raimundo Gleyzer (México, la Revolución Congelada, 1970), Gerardo Vallejo (El camino hacia la muerte del viejo Reales, 1971) e Jorge Cedrón (Operación Masacre, 1972)152.

Houve uma união entre o Estado e os cinematógrafos de alguns países da América Latina, como Argentina e Brasil, com o intuito de incentivar o cinema nacional. Essa aliança implícita em diversos países acarretou novas questões, como a censura e a participação estatal nas produções153. Jorge Cedrón foi um exemplo de cineasta “usado” pelo presidente Lanusse

para fazer um filme sobre a história de San Martín, mas, na verdade, o próprio presidente foi manipulado, pois o dinheiro recebido por Cedrón sustentou boa parte da produção de Operación Masacre, realizado na clandestinidade durante esse governo.

149 LUCÍA, op. cit., p. 14. 150 Ibid., p. 14.

151 FLORES, op. cit., p. 115. 152 PARANAGUÁ, op. cit., p. 75. 153 Ibid., p. 87.

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