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4 A PROPOSTA DA ÉTICA DAS VIRTUDES PARA A SOCIEDADE

4.5 O Liberalismo Político de MacIntyre

4.5.1 A Comunidade Política à Luz da Unidade Fornecida pelos Bens

As virtudes permitem entender o que é uma vida boa para o ser humano, segundo a argumentação de MacIntyre (2006b). Esta unidade da vida humana tornou-se ininteligível pelas estruturas do mundo social, que impõem a sua compartimentalização.13 Esse termo não

corresponde à divisão de papéis que, de fato, caracteriza qualquer sociedade, mas significa que toda a esfera de atividade é orientada por suas próprias regras específicas em relativa independência de outras esferas.

A unidade narrativa da vida do indivíduo está dissolvida na multiplicidade de suas atividades: ele é uma determinada pessoa na família, outra pessoa no local de trabalho, uma terceira no grupo esportivo, e assim por diante. Com isso, segundo MacIntyre (2006b), o indivíduo renuncia a sua responsabilidade, o que só pode ser entendido se conservar uma distinção entre o seu papel específico e a sua identidade geral. As virtudes que têm, somente, significado dentro da unidade narrativa da vida, são confundidas com habilidades técnicas, de modo que, o que é visto como excelente por uns, pode não ter o mesmo conceito avaliativo em contexto diferente. O indivíduo, portanto, perde a oportunidade de tomar distância dessas atividades para avaliar se cada uma delas será compatível com a busca de uma boa vida. Isso significa perder a capacidade de agir moralmente e, muitas vezes, sem estar ciente disso. Mas essa ignorância de sua condição não pode desculpar o declínio de suas responsabilidades morais, pois uma ignorância é parcialmente culpável. O autêntico exercício das virtudes exige que o papel ocupado na história da vida individual seja compartilhado, o que por sua vez, só pode emergir da história da vida em comum.14

Segundo MacIntyre (2001a), cada prática, seja ela artística, científica, lúdica ou política traz consigo uma tradição que define o contexto dentro do qual seus participantes estão situados. Mas as tradições não implicam um tratado de um passado dogmaticamente aprendido, mas nos conflitos em curso que determinam a evolução da mesma tradição por meio de sucessivas crises. Uma tradição se esgota e desaparece se não for mantida viva pelos exercícios das virtudes próprias. Dessa forma, segundo MacIntyre (2001a), um outro aspecto importante do “papel das virtudes é sustentar as tradições que fornecem suas práticas e suas existências individuais com seu contexto histórico”. (MACINTYRE, 2001a, p. 451). As virtudes, portanto, são aquelas qualidades que podem tornar a comunidade boa e, consequentemente, a vida individual no interior de uma comunidade onde a vida floresce.

13 Para um maior esclarecimento desse tópico, conferir em MacIntyre (2006b, p. 196-202).

A política, no sentido aristotélico é uma prática cujos modelos são os sábios cujo comportamento define a própria natureza das virtudes e que alcançaram o bem de uma vida feliz.15 Dessa forma, a política, é a ciência por excelência, ou a arquitetônica das ciências,

porque abrange o homem na totalidade de suas manifestações como ser social, em todas as suas atividades, religiosas, morais, econômicas e jurídicas. A política, segundo Aristóteles "utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer". (ARISTÓTELES, 1973, I, 1, 1094 b, 5).

Segundo o estagirita, a política instiga a todos os outros a ordená-los de forma a possibilitar a busca do bem comum, identificado com a comunidade em si não isoladamente, mas orientada por práticas virtuosas. Qualquer ação ou prática subordinada ao bem comum pode ser considerada um bem dentro da prática política. De fato, qualquer boa ação (seja prática ou teórica) é um meio constituinte do bem comum, que, por sua vez, é um meio.

Identificar o bem para cada indivíduo, portanto, “é inseparável tanto da conquista dos bens comuns da prática como da contribuição para o bem comum de toda a comunidade”. (MACINTYRE, 1998d, p. 239). O Estado moderno não pode ser, de modo algum, o local desta política comunitária. De acordo com MacIntyre (1998d) é impossível criar um espaço no qual as pessoas possam realizar um debate racional em torno da natureza do bem comum. Não é possível que a esfera pública seja capaz de influenciar a política conforme a defesa de Kant sobre o uso público do raciocínio afirmando que o debate racional das ideias teria influenciado a atividade do governo, frustrada pelo pós-iluminismo.

A política dos Estados, segundo MacIntyre (2001a), é, por sua própria natureza, destinada a se concentrar nas mãos dos políticos que são a elite de sua profissão. A política assume a forma de uma burocracia complicada e interligada com o mercado capitalista. MacIntyre (2001a), portanto, compartilha a maior parte da sua análise com Weber16, mas

acrescenta-lhe uma crítica com um teor marxista. Nesse sentido, MacIntyre afirma que “o poder no Estado moderno é apenas um comitê que administra assuntos comuns de toda a classe burguesa”. (MARX; ENGELS, 1999, p. 12). Segundo Marx e Engels (1999), tornou-se fruto de uma superstição, acreditar que a força distributiva da sociedade civil possa ser derrubada pela política do Estado, reduzida por meio do poder econômico. Com base nesta suposição

15 Para aprofundar esse tópico, conferir em Aristóteles (2002), Ética a Nicômaco, II, 6, 1107a, 2002.

16 Max Weber (1864-1920), para o reconhecido economista e sociólogo, a conduta humana é dotada de sentido,

ou seja, é a ação social, o objeto de investigação sociológica. Weber combina duas perspectivas, a Historiografia e a Sociologia para a compreensão das sociedades.

marxista, MacIntyre (2006b) rejeita outro aspecto dos pensamentos marxistas, que defende que a conquista do poder político seja um passo necessário.

That those who the conquest of state power their aim are always in the end conquered by it and, in becoming the instruments of the state, themselves become in time the instruments of one of the several versions of modern capitalism. (MACINTYRE, 2006b, p. 150).

MacIntyre (2006b) compartilha em parte a análise marxista da sociedade capitalista, rejeita, no entanto, a estratégia da política marxista. Segundo ele, o indivíduo é alienado da sociedade capitalista e das relações de produção que ele apoia, não tanto porque deixa de considerar o objeto como fruto da sua atividade prática, mas porque já não pode considerá-lo como produto da ação coletiva em visão do bem comum e, portanto, considera-o como estranho e independente por si mesmo.17

Segundo a argumentação de MacIntyre (2006b) as relações contratuais entre funcionários e proprietários não são gratuitas, mas impostas aos sujeitos mais fracos pela própria estrutura do capitalismo. O mercado internacional é dominado, por isso, por grandes corporações, que impõem suas condições no trabalho, ao contrário do enfraquecimento da organização sindical, limitada nas fronteiras nacionais que o capital já ultrapassou. A liberdade do mercado não coincide com a liberdade dos indivíduos que atuam e passam por ela. Um modelo de mercado livre, nesse sentido, seria caracterizado por pequenas unidades produtivas subordinadas às necessidades humanas. Isto é, de acordo com MacIntyre (2006b) o modelo que se mostra mais consistente e é aceito pela doutrina social da Igreja Católica (expressa, primeiramente pela Encíclica Populorum Progressio de Paulo VI e, mais recentemente pela Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II)18, que condenam o capitalismo entendido como

um sistema de exploração e enriquecimento ilimitados.19 Essa integração aristotélica é capaz,

como frisou Noponen (2011) de completar a concepção marxista de alienação, defeituosa, porque não esclareceu em quê o indivíduo estava alienado. Uma vez que o fim do capitalismo é, meramente, o lucro e a capacidade das empresas para competir nos mercados, ele, o capital, em muitos casos, impede o desenvolvimento de práticas, impondo-lhes a busca de recursos externos.20

17 Para maior esclarecimento dessa questão, conferir em (MACINTYRE, 2006b, p. 148-150).

18 IGREJA CATÓLICA. PAULO VI, Carta Encíclica Populorum Progressio,1967. JOÃO PAULO II, Carta

Encíclica Centesimus Annus, 1991.

19 Para uma consulta mais pormenorizada, confeir em MacIntyre (2006b, p. 148). 20 Para um maior aprofundamento dessa questão, ver Marx (2008) e Noponen (2011).

Portanto, para MacIntyre (2006b), o indivíduo está alienado das formas de trabalho que são boas, significativas, importantes e apreciativas; alienado da compreensão do bem comum, das experiências compartilhadas, do reconhecimento mútuo e da ação coletiva com outras pessoas; das relações pessoais com os outros seres humanos e, consequentemente, daquilo que é essencial e constitutivo do ser humano, ou da natureza humana. O termo bem comum, pode ser delegado a pessoas específicas e isso implica em que um dos bens comuns do grupo social, seja de fato, o fundador, entendido como o propósito da própria administração, que deve se esforçar para ser o que é bom para o homem. Também é necessário colocar o bem comum acima de qualquer interesse, o que poderia estagnar a deliberação numa posição confortável. Toda a pessoa envolvida na administração dos bens comuns deve, portanto, ser o mais livre possível, sem desejos, preconceitos ou interesses pessoais que possam induzi-la a preferir propriedades externas aos internos da prática política. Contudo, a racionalidade da pesquisa exige que cada agente tenha boas razões para confiar no outro, e não ter medo: a falta de confiança pode criar divisões e fraturas, enquanto o medo pode induzir um sujeito a se submeter à vontade de outro. Assim, todos os participantes na administração devem comprometer-se a serem honestos e verdadeiros, cumprirem suas promessas e seguirem uma regra que não prejudique a vida, a liberdade ou a dimensão privada dos outros. Continuando nesta linha de reflexão, segundo MacIntyre (2006b), verifica-se que as condições necessárias, os primeiros princípios da pesquisa racional são exatamente esses preceitos da lei natural identificada por Tomás de Aquino. A partir desta busca, portanto, aqueles que violam essas leis, aqueles que não têm interesse na obtenção do bem comum, mas cujo objetivo é, influenciar o resultado da decisão para alcançar seus próprios interesses, devem ser excluídos.

Segundo MacIntyre (1999) uma comunidade que pode ser gerenciada democraticamente pelos frutos de uma administração comum pode ser pequena, de modo que as pessoas, que fazem parte dela, possam se encontrar em um espaço físico (e não metatópico). O que mais importa é que esse lugar deliberativo seja governado pela lei natural. Em outras palavras, a comunidade deve permitir o desenvolvimento das virtudes, uma condição para a busca da boa vida para o homem. Somente em tal comunidade, a política pode ser entendida como uma prática cooperativa, na qual cada pessoa pode aprender a definir o que é bom para si e o que é o bem comum.

O desenvolvimento das virtudes, segundo MacIntyre (1999), no entanto, requer algo que vai mais além da política e diz respeito à condição animal do homem. Durante sua infância, a educação e o desenvolvimento do ser humano dependem inteiramente dos pais, em primeiro lugar, depois de parentes e de todos aqueles com os quais ele entra em contato nos primeiros

anos de sua vida. Sua educação prossegue, depois, para os ambientes mais amplos possíveis na sociedade escolar, no local de trabalho e na participação das atividades sociais. “O agente genuinamente virtuoso, porém, age com base num juízo verdadeiro e racional”. (MACINTYRE, 2001a, p. 255). São as redes de relações intersubjetivas que permitem ao indivíduo compreender o significado do seu envolvimento numa prática e buscar os bens internos, ordenando todas as suas atividades em vista de uma vida boa em comunidade.