• Nenhum resultado encontrado

Nossa proposta, nesse item, é expor a concepção da racionalidade das tradições desenvolvida por MacIntyre a partir do seu conceito de tradição de pesquisa racional. É por meio desse conceito que o filósofo estabelece a sua crítica em relação às perspectivas éticas universalistas oriundas do Iluminismo, empregando o conceito de historicidade ao conceito de racionalidade teórica e prática, no interior das tradições morais. Com esta estratégia, MacIntyre busca fornecer um instrumental capaz de, a partir da análise das raízes, esclarecer as

dificuldades do presente e apontar-nos o caminho de uma racionalidade ética que esteja livre, tanto do dogmatismo e do relativismo, quanto do universalismo ético abstrato, estabelecendo uma racionalidade essencialmente vinculada às tradições. Para atingir esse fim, MacIntyre buscou auxílio de elementos substanciais da epistemologia historicista de Thomas Kuhn para construir seu conceito de tradição de pesquisa racional como paradigma da racionalidade ética.20

Ambos absorveram e participaram da crítica filosófica ao projeto da modernidade iluminista de uma racionalidade única e a-histórica, mergulharam nos influxos intelectuais de uma cultura que punha radicalmente a razão e seus produtos históricos em questão, como foi a cultura dos anos 60, período em que eles começaram a aparecer no cenário intelectual – primeiro Kuhn, com A Estrutura das Revoluções

Científicas (1962), MacIntyre depois com Uma pequena história da Ética (1966).

(CARVALHO, 1999, p. 195).

A epistemologia historicista contribuiu para uma nova compreensão da ciência, partindo do princípio de que a produção do conhecimento científico e a prática científica, devem considerar as condições externas da produção científica, pois elas podem influenciar e modificar os seus resultados. Thomas Kuhn defenderá a ideia de que os problemas da racionalidade e da objetividade fazem parte do contexto da descoberta e que existem fatores subjetivos e alheios à ciência que influenciam a sua produção.

Kuhn (2001) entende que o processo de produção do conhecimento científico é marcado pela descontinuidade, pois ocorre por meio das revoluções científicas, as quais implicam em alterações dramáticas no modo como os cientistas representam, dependentes de condições sociais influenciados por crenças, valores e normas, aceitos e negociados no interior das comunidades científicas. Para Kuhn (2001), a verdade científica não depende apenas da objetividade da experiência empírica e do rigor metodológico, mas resulta em grande parte, dos acordos intersubjetivos entre cientistas quanto às teorias e aos métodos dominantes.

[...] o desenvolvimento da ciência que emerge a partir do estudo da sua história obedece à sequência: ciência normal – crise – ciência extraordinária – revoluções – nova ciência normal, e assim por diante, alternando longos períodos de ciência extraordinária. Nesse padrão não há linearidade nem cumulatividade do conhecimento alcançado, o avanço ocorre sempre de um consenso normal a outro no interior de tradições de pesquisas pela emergência de revoluções científicas que produzem mudanças de natureza holística no trabalho científico. (CARVALHO, 1999, p. 130).

A ciência normal surge, segundo Kuhn, quando o paradigma instituído consegue, com suas bases teóricas e metodológicas, resolver os problemas que surgem. Durante esse processo

20 A influência da filosofia da ciência no pensamento de MacIntyre se deu por volta dos anos de 1970, num

momento de revisão das suas obras anteriores, bem como, quando os dois pensadores, MacIntyre e Tomas Kuhn, apareciam no cenário mundial com o acolhimento de suas obras mais recentes.

há o consenso entre os cientistas, e o paradigma é transmitido através dos manuais acadêmicos e do ensino da ciência. Para Kuhn, “[...] os paradigmas adquirem seu status porque são mais bem-sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como graves”. (KUHN, 2001, p. 44).

Assim, a aquisição de um novo paradigma significa a maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico respeitado.

Os paradigmas estabelecem um consenso estável na pesquisa, sem o qual todos os fatos, que podem ser pertinentes ao desenvolvimento de uma determinada ciência parecem igualmente relevantes, o padrão de desenvolvimento da ciência amadurecida é justamente a transição revolucionária sucessiva de um paradigma a outro. (CARVALHO, 1999, p. 131).

Para Kuhn, a revolução científica ocorre quando o paradigma não consegue resolver alguns problemas e surgem incongruências e, problemas não solucionados, que darão origem a um período de crise, que fará surgir um novo paradigma. Revoluções científicas são “[...] aqueles episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”. (KUHN, 2001, p. 125).

No cômputo geral das revoluções científicas revela-se a existência de perdas e ganhos, pois as comunidades sofrerão perdas, porque problemas antigos precisam ser abandonados, enquanto novos desafios deverão ser enfrentados pela comunidade em busca de solução.

Todavia, apesar dessas e de outras perdas experimentadas pelas comunidades individuais, a natureza de tais grupos fornece uma garantia virtual de que tanto a relação dos problemas resolvidos pela ciência, como a precisão das soluções individuais de problemas aumentarão cada vez mais. Se existe a possibilidade de fornecer tal garantia, ela será proporcionada pela natureza da comunidade. (KUHN, 2001, p. 213).

Da obra de Kuhn (2001), o conceito de paradigma, juntamente com o conceito de incomensurabilidade, que lhe é associado, foi talvez o que mais rendeu controvérsias entre os estudiosos da filosofia da ciência. A incomensurabilidade dos paradigmas pressupõe, segundo Kuhn (2001), que os mesmos não são objetivamente comparáveis. Cada paradigma implica uma forma realmente diferente de ver a realidade.

Na obra, A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn usa o termo incomensurabilidade, primeiramente, para caracterizar as relações entre tradições pré e pós- revolucionárias. A incomensurabilidade entre paradigmas se mostra, neste primeiro momento, como uma revolução científica que provoca mudanças significativas tanto no conjunto de problemas científicos a serem enfrentados como para as suas soluções; em segundo lugar, após

a revolução, procedimentos e conceitos oriundos da tradição anterior podem ser ainda empregados, mas de maneira diferente, ou seja, o novo paradigma produz mudanças de significados no nível do vocabulário e dos conceitos; no terceiro momento, com a mudança de paradigmas, tem-se uma mudança de mundos explorados, ou seja, os proponentes de paradigmas competidores exercem suas atividades em mundos diferentes. (CARVALHO, 1999).

Esses conceitos norteadores da filosofia da ciência de Thomas Kuhn influenciaram de maneira significativa a obra de MacIntyre. Podemos perceber essas influências na descrição das etapas de desenvolvimento das tradições em três etapas distintas. Num primeiro momento, quando as crenças, os textos e as autoridades relevantes ainda não foram questionadas. Nessa etapa do processo, existem esquemas que fornecem o pano de fundo para as ações e que não são questionados, nem sequer tematizados; são aceitos sem questionamentos porque respondem devidamente às inquietações da tradição.

No entanto, a qualquer momento estes esquemas podem ser questionados em sua validade, caracterizando o surgimento de um segundo momento da tradição. Quando no interior das tradições morais os primeiros princípios se dissolvem em contradições e não mais respondem às inquietações de sua comunidade, ocorre o que MacIntyre chama de crise epistemológica. A crise epistemológica é um estado de dissolução das crenças e argumentos historicamente fundados dentro de uma tradição, que atinge o âmbito da reflexão e da prática social. Para os agentes racionais envolvidos, a crise epistemológica aparece como, “[...] um estado no qual aquilo que se considerava como evidente, apontando sem ambiguidade para alguma direção, resultou agora estar igualmente suscetível a interpretações rivais”. (MACINTYRE, 2001a, p. 388).

No estágio seguinte, o terceiro, a reação a tais inadequações resulta numa série de formulações, reavaliações, novas formulações e avaliações concebidas a fim de solucionar as inquietações e suportar as limitações.

Apesar de assimilar alguns conceitos da epistemologia historicista de Kuhn, MacIntyre também se posiciona contra Kuhn em relação a alguns pontos que necessitam ser revisados de sua teoria, pois, uma vez realizada tal crítica à teoria kuhniana, esta fornecerá uma melhor fundamentação das ideias que defende. Em “Epistemological crises, dramatic narrative, and

the philosophy of Science”, MacIntyre (2006a) estabelece sua crítica a Kuhn em três etapas:

In the first shall suggest that his earlier formulations of this position are much more radically flawed than he himself has acknowledged. I shall then argue that it is his failure to recognize the true character of the flaws in his earlier which formulations,

leads to the weakness of his later revisions. Finally I shall suggest a more adequate form of revision. (MACINTYRE, 2006a, p. 15).

Kuhn (2001) se posiciona contrariamente à visão de que a superioridade de uma teoria científica resida fundamentalmente na sua capacidade de proporcionar uma visão mais exata do que a natureza realmente é, como se as teorias sucessivas se aproximassem cada vez mais da verdade. Tal noção de “verdade” não é factível. Recusa, assim, qualquer perspectiva do tipo essencialista ou mesmo realista, porque considera que,

Não existe maneira de reconstruir expressões como ‘realmente aí’ sem o auxílio de uma teoria; a noção de um ajuste entre a ontologia de uma teoria e sua contrapartida ‘real’ na natureza parece-me ilusória por princípio. Além, disso, como historiador, estou impressionado com a falta de plausibilidade dessa concepção. Não tenho dúvidas, por exemplo, de que a mecânica de Newton aperfeiçoou a de Aristóteles e de que a Mecânica de Einstein aperfeiçoou a de Newton enquanto instrumento de resolução de quebra- cabeças. Mas não percebo, nessa sucessão, uma direção coerente de desenvolvimento ontológico. Ao contrário: em alguns aspectos importantes, a Teoria Geral da Relatividade de Einstein está mais próxima da teoria de Aristóteles do que qualquer uma das duas está da de Newton. (KUHN, 2001, p. 253).

Para Kuhn (2001), a ciência e seu desenvolvimento não podem mais ser vistos pela ótica de uma matriz atemporal, que forma a base da opinião comum, isolando-a da sua própria história. A noção de progresso e a racionalidade da ciência só poderão ser entendidas devidamente se as inserirmos na própria história da ciência, evitando a ideologia positivista que mascara sua verdadeira natureza.

MacIntyre reconhece a grande importância de Kuhn para a caracterização de uma forma original do significado e do caráter da incomensurabilidade, mas ele discorda radicalmente da sua conclusão da transição de um paradigma para outro. O que Kuhn não foi capaz de perceber, ao tematizar as revoluções científicas, foi a continuidade racional existente na transição de um paradigma para o outro. Para MacIntyre a nova ciência, ou a nova tradição, é capaz de justificar a insuficiência da ciência antiga, e apresentar-se mais adequada do que ela. A nova ciência (tradição) é capaz de restabelecer a narrativa histórica abalada pela crise epistemológica.

Para MacIntyre, quando se alcança o terceiro estágio de desenvolvimento, os membros da comunidade aceitaram as crenças da tradição na sua nova forma tornando-se capazes de contrastar suas novas crenças com as antigas. O desenvolvimento de uma tradição acontece à medida que elas (as crenças) são capazes de superar seus conflitos internos, reformulando seus argumentos, fornecendo uma nova base para os acordos fundamentais e mantendo sua coerência interna, ou seja, as tradições amadureceram quando seus adeptos encontram uma maneira

racional de superar os conflitos, sejam eles internos ou externos, que ameaçam romper com a narrativa histórica de sua tradição.

A narrativa da tradição deve, segundo MacIntyre (2010), neste terceiro momento, ser reconstruída e reformulada. Quando a crise epistemológica estiver resolvida os agentes devem ser capazes de entender o porquê de seu surgimento: o agente compreende que os critérios de verdade e inteligibilidade devem ser reformulados. O agente deve chegar a duas conclusões: a primeira, é que as novas formas de entendimento podem ser postas em questão a qualquer momento; a segunda, é que tais critérios de verdade, inteligibilidade e racionalidade sempre podem ser postos em questão e que nunca alcançamos a última versão da verdade, inteligibilidade e racionalidade; apenas dispomos dos melhores critérios formulados, até então. Os adeptos da tradição compreendem que há uma discrepância racional em relação à forma como eles viam o mundo e como o veem agora.

Aqueles que alcançaram certo estágio nesse desenvolvimento são, capazes de olhar para trás e identificar sua própria inadequação intelectual prévia, ou a inadequação intelectual de seus predecessores, comparando o que eles agora julgam ser o mundo, ou, pelo menos, uma parte dele, com o que então julgavam que fosse. (MACINTYRE, 2010, p. 384).

Para MacIntyre (2010), a superação de uma crise epistemológica requer a descoberta de novos conceitos e a estruturação de um novo tipo ou de novos tipos de teoria que satisfaçam três exigências específicas. Em primeiro lugar, este esquema, conceitualmente enriquecido e radicalmente novo, deve pôr fim à crise epistemológica e fornecer uma solução aos problemas que se revelaram intratáveis anteriormente, de modo sistemático e muito coerente. Em segundo lugar, o esquema deve fornecer uma explicação daquilo que tornou a tradição estéril ou incoerente anteriormente. Em terceiro lugar, essas duas tarefas iniciais devem ser realizadas de modo a apresentar a continuidade fundamental das novas estruturas, sejam elas conceituais ou teóricas, com relação às crenças comuns e em cujos termos a tradição se tenha definido até o presente momento. Nesse sentido, percebemos que MacIntyre (2010) ultrapassa a concepção de Kuhn (2001), ao oferecer uma solução para o problema da continuidade racional entre teorias, durante a revolução científica.

Ao superar uma crise epistemológica, a tradição realiza um progresso racional e é capaz de apresentar novas estruturas lógicas e conceituais melhores dos que as que defendiam anteriormente. A justificação das teses fundamentais dessas novas estruturas residirá na habilidade de realizar o que não podia ser realizado antes da inovação. Assim, para MacIntyre (2010), as teses fundamentais de uma tradição que superou uma crise epistemológica e realizou

um progresso racional tem superioridade quando postas em embate com outra tradição que não passou por uma crise. As teses de uma tradição que realizou um progresso podem ser consideradas superiores quando em conflito com teses de tradições rivais que não foram capazes de resolver seus conflitos internos. Ora, sendo assim, temos um motivo racional para dar nossa adesão a tal tradição e não à outra. A adesão a uma tradição se baseia em um critério racional, visto que podemos perceber a superioridade de uma tradição frente à outra.

Para MacIntyre (2010), o progresso epistemológico consiste na construção e na reconstrução de narrativas mais adequadas e essas crises epistemológicas são ocasiões para tal reconstrução. Pode ocorrer, contudo, que uma tradição que enfrenta uma crise epistemológica seja incapaz de resolver suas incoerências internas e acabe se dissolvendo em contradições, o que pode levá-la a desaparecer ou se fechar sobre si mesma, estruturando suas teses de tal forma que ganhem a forma de dogmas, não podendo ser questionadas. O fato é que todas as tradições, sem exceção, reconheçam ou não, poderão enfrentar uma crise epistemológica no futuro.

Todos os esforços dos adeptos de uma tradição para desenvolver recursos imaginativos e inventivos capazes de superar a crise epistemológica estão sujeitos ao fracasso, seja por não fazerem o suficiente para solucionar a condição de esterilidade e incoerência na qual a pesquisa caiu, seja por revelarem ou criarem novos problemas, e revelarem novas falhas e limitações. Com isso, “[...] o tempo pode passar e nenhum outro recurso ou solução surgir.” (MACINTYRE, 2010, p. 391). A tradição que se encontra neste contexto pode não mais se sustentar e acabar se dissolvendo.

As tradições que não conseguem, através de seus próprios recursos, superar uma crise epistemológica, podem reconhecer que outra tradição é capaz de oferecer respostas mais sistemáticas e eficazes para a superação da crise que não foram capazes de superar. Desse modo, duas tradições podem se fundir criando uma nova história mais ampla e melhor estruturada. Assim, de acordo com MacIntyre (2010), quando os adeptos da tradição em crise forem capazes de reconhecer, nesta outra tradição, a possibilidade de construir, a partir de seus próprios recursos teóricos e conceituais estas, duas tradições podem caminhar rumo a um mesmo telos, unificando suas histórias e dando origem a uma nova tradição.

Pois os adeptos de uma tradição, que está agora num estado de crise fundamental e radical, podem, nesse momento, encontrar as asserções de uma tradição rival particular de um modo novo, talvez uma tradição com a qual tenha coexistido por algum tempo, talvez uma que esteja encontrando pela primeira vez. Eles agora passam a compreender as crenças e o modo de vida dessa outra tradição. E, para fazê-lo, eles têm de aprender a língua dessa tradição como uma nova e segunda língua. (MACINTYRE, 2010, p. 391).

As tradições podem sucumbir em meio aos conflitos internos e não serem capazes de justificar, racionalmente, suas próprias teses. No entanto, quando duas tradições fundirem suas histórias, aqueles que fazem parte da tradição em crise devem reconhecer que a outra tradição é superior à sua, em racionalidade e em relação às reivindicações de verdade. A existência de amplas possibilidades de intraduzibilidade e, portanto, de ameaças potenciais à hegemonia cultural, linguística, social e racional de uma tradição, seja em geral ou numa área particular, é mais do que uma ameaça, e diferente de uma ameaça. É o rumo ao qual a modernidade se move, precisamente à medida em que ela consegue se modernizar, emancipando-se das particularidades sociais, culturais e linguísticas e, portanto, da tradição.

Apenas aqueles cuja tradição concede a possibilidade de que sua hegemonia possa ser posta em questão podem ter a garantia racional para afirmar essa mesma hegemonia. E apenas as tradições cujos adeptos reconhecem a possibilidade de intraduzibilidade na sua própria língua-em-uso podem lidar adequadamente com essa possibilidade. (MACINTYRE, 2010, p. 416).

Com essa breve exposição percebe-se que os argumentos da filosofia da ciência de Kuhn foram imprescindíveis para o projeto filosófico macintyreano assumir uma concepção de pesquisa racional implícita nas tradições morais. A importância de Kuhn (2001) para o projeto macintyriano, em relação às tradições das moralidades, deve-se ao fato de que, a partir dos estudos da filosofia da ciência de Kuhn, MacIntyre estabelece as bases para o fundamento da sua teoria da racionalidade das tradições morais.