• Nenhum resultado encontrado

Para MacIntyre, as tradições de pesquisa têm um ponto de partida histórico e contingente localizado em alguma situação onde se pôs em questão uma série de crenças e práticas estabelecidas: “[...] toda forma de pesquisa começa a partir de uma condição de pura contingência histórica, de crenças, instituições e práticas de uma comunidade particular que constituem um dado”. (MACINTYRE, 2010, p. 457).

O conceito de tradição, com o qual MacIntyre opera em sua ética, é aquele que considera a tradição enquanto pesquisa racional. Os esforços de MacIntyre se concentram em forjar um conceito que não negue as conquistas das tradições como constitutivo epistemológico e que reafirme a condição histórica, tanto da vida prática como da vida do espírito. Na obra Justiça

Uma argumentação desenvolvida ao longo do tempo onde certos acordos fundamentais são definidos e redefinidos em termos de dois conflitos: conflitos internos interpretativos, através dos quais o significado e os acordos fundamentais são expressos fornecendo um progresso para toda a tradição; e debates com críticos e inimigos externos que rejeitam todos ou pelo menos parte dos acordos fundamentais. (MACINTYRE, 2010, p. 23).

O conflito garante o movimento das tradições rumo a sua finalidade, ao seu telos e rompe com a visão negativa, outrora lançada sobre a mesma. As tradições são movimentos históricos ao longo dos quais os seus adeptos se tornam conscientes das mesmas e da sua direção, ao mesmo tempo em que se engajam em seus debates e dão prosseguimento a suas pesquisas.

Essa ideia foi obscurecida a partir do Iluminismo e, segundo MacIntyre, para restabelecer a racionalidade e a inteligibilidade de nossas normas morais, devemos recuperá-la. Para MacIntyre, esta forma de compreensão não encontrou lugar na visão de mundo do Iluminismo, no entanto, pode ser revivida hoje e oferecer recursos conceituais e teóricos que poderão recuperar a convicção no que diz respeito aos assuntos como justiça, por um lado, pesquisa e justificação racional, por outro.

O que pretendo mostrar é aquilo para o que o Iluminismo nos cegou, e que agora precisamos recuperar, é uma concepção de pesquisa racional incorporada numa tradição; uma concepção de acordo com a qual os padrões de justificação racional avultem e façam parte de uma história na qual eles sejam exigidos pelo modo como transcendem as limitações e fornecem soluções para as insuficiências de seus predecessores, dentro da história dessa mesma tradição. (MACINTYRE, 2010, p. 18).

A tradição é responsável pela formação do caráter do sujeito moral e, isso significa dizer que o caráter do sujeito moral é formado e desenvolvido num contexto social determinado por sua participação nas práticas constituídas em cada tradição em torno dos fins da mesma. Ele adquire maturidade através da reflexão sobre o gênero da vida que vivencia e pelas avaliações das ações como vícios e virtudes, por meio de uma narrativa pessoal construída no interior de uma comunidade, sendo constitutiva dela. Existe, dentro da estrutura das tradições, uma concepção de pesquisa que é responsável pela elaboração de um modo de vida social e moral, e é essa concepção de pesquisa racional que MacIntyre (2010) acredita ser capaz de devolver racionalidade aos conceitos e práticas morais contemporâneos, porque foi a omissão deste tipo de racionalidade que gerou a interminabilidade do debate moral característico de nossa época. Esse conceito de tradição defendido por MacIntyre (2010) é objeto de estudo de vários comentadores, ao mesmo tempo em que também é objeto de duas críticas. O que afirmamos é que tal conceito é inovador e audacioso, e que somente quando estudado dentro do projeto filosófico central de MacIntyre poderemos perceber sua importância e centralidade.

Para Allen (1997), duas características centrais do conceito desenvolvido de tradição, tal como MacIntyre expressou nas obras Justiça de quem? Qual racionalidade? e Três Versões

Rivais de Pesquisa Moral, são as suas dimensões intelectual e social. As tradições são

intelectuais porque se baseiam em argumentos racionais que têm por base um movimento dialético, ou seja, as tradições intelectuais são argumentos historicamente entendidos, como um movimento coerente de pensamento. O aspecto intelectual da tradição é o movimento historicamente coerente e reflexivo do pensamento.

Outra característica da ideia de tradição é o seu caráter social. Para MacIntyre (2010) a tradição pode ser social em dois aspectos importantes. Primeiramente, toda a tradição surge dentro das circunstâncias contingentes de alguma ordem social particular. Assim, todas as tradições estão entranhadas nas práticas sociais particulares, instituições e convicções da ordem social da qual emergiram. Em segundo lugar, uma vez desenvolvida, a tradição dá origem a certos tipos de práticas sociais na qual o aspecto intelectual da tradição ganha expressão. Desde que as tradições estejam vinculadas às práticas sociais e convicções particulares nestes dois sentidos, elas sempre são, inegavelmente, até certo ponto, locais, informadas por particularidades sociais, de linguagem e ambiente natural.

Reivindicando para as tradições as dimensões social e intelectual, MacIntyre (2010) contradiz duas formas comumente estabelecidas de pensar a ideia de tradição. A primeira é que ele aceita a tradição enquanto jogo de práticas que foram herdadas de geração a geração, sem questionamento reflexivo e crítico. Alguém que entende a tradição desta forma, responderia à pergunta: Por que você faz as coisas dessa forma?, dizendo, Porque esta é a forma pela qual

ela sempre foi feita e não fazê-la, é ir contra a tradição. Encontramos este conceito em nossas

conversas diárias, jornais, livros, e nas mais diversas áreas tais como Direito, Sociologia, Psicologia, entre outros. Contra esta compreensão de tradição, MacIntyre enfatiza o caráter crítico, isto é, a natureza reflexiva e o aspecto intelectual da tradição.

A segunda forma de pensar a tradição, atualmente, é entendida como um movimento que independe das práticas sociais particulares e instituições. Alguém que compreende a matéria desta forma, caracterizará o movimento de continuidade do pensamento de Platão a Davidson como uma tradição filosófica, sem levar em consideração a importância da diferença entre os contextos sociais que tiveram influência sobre cada um dos pontos no desenvolvimento histórico da mesma. Contra essa visão, MacIntyre enfatiza os vínculos das tradições e sua dívida com as práticas sociais particulares e instituições.

A compreensão da tradição enquanto composta por aspectos sociais e intelectuais é importante para distinguir sua concepção de outros conceitos de tradição. MacIntyre tenta

justificar seu conceito exemplificando com quatro tradições no livro Justiça de Quem? Qual

racionalidade?, a saber, as tradições aristotélica, agostiniana, escocesa e a liberal. De acordo

com MacIntyre, estas quatro tradições são ligadas a laços sociais e intelectuais.

A visão de Aristóteles da justiça e da racionalidade prática emerge dos conflitos da pólis antiga, mas é em seguida desenvolvida por Tomás de Aquino de um modo que escapa às limitações da pólis. Assim, a versão agostiniana do cristianismo estabeleceu, no período medieval, complexas relações de antagonismo, posteriormente de síntese, e depois de continuado antagonismo com o aristotelismo. Assim, num contexto cultural posterior bastante diferente, o cristianismo agostiniano, agora numa forma calvinista, e o aristotelismo, agora numa versão da Renascença, entraram numa nova simbiose na Escócia do século XVII, gerando uma tradição que no ápice de sua realização foi subvertida a partir de dentro, por Hume. Assim, finalmente, o liberalismo moderno, nascido do antagonismo com toda tradição, transformou-se gradualmente em algo que é agora claramente reconhecível, mesmo por alguns de seus adeptos, como mais uma tradição. (MACINTYRE, 2010, p. 21).

Essa defesa das tradições acabou transformando-se na chamada Teoria da Racionalidade das Tradições, por defender a presença da racionalidade no interior das tradições morais. No próximo item veremos a argumentação de MacIntyre para reabilitar a tradição como fonte de racionalidade, ou seja, como aconteceu, ao longo da história da moralidade, a fusão entre tradição e razão, segundo a perspectiva da filosofia macintyriana.