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O primeiro momento de reinterpretação que MacIntyre oferece da teoria aristotélica das virtudes se desenvolve em torno do conceito de prática como atividade humana. Esse conceito é acolhido por alguns críticos de sua filosofia como de difícil compreensão e, por outros, como basilar e inovador na filosofia de MacIntyre. Segundo o filósofo escocês, o ser humano deve estar comprometido em praticar atos virtuosos, em favor de sua comunidade, pois além de estar comprometido com estes, o exercício das referidas práticas está relacionado ao telos da comunidade.19 Por isso, qualquer indivíduo envolvido numa prática pode ser virtuoso, desde

que sua prática reflita o compromisso deste com os bens internos de sua atividade. O filósofo escocês entente prática como,

Qualquer forma complexa e coerente de atividade humana cooperativa, socialmente estabelecida, por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade são realizados durante a tentativa de alcançar os padrões de excelência apropriados para tal forma de atividade, e parcialmente dela definidores, tendo como consequência a ampliação sistemática dos poderes humanos para alcançar tal excelência, e as concepções dos fins e dos bens envolvidos, são sistematicamente ampliados. (MACINTYRE, 2001a, p. 316).

Segundo MacIntyre, é sempre um tipo de prática que possibilita o contexto em que as virtudes são exercidas e, em parte, recebem sua definição. Esse contexto é sempre organizado, estruturado, complexo e coerente. Sendo socialmente estabelecido, é um lugar onde se deve estar atento para seguir aquilo que é proposto como padrão de excelência.

Segundo a argumentação de MacIntyre, seguindo os critérios socialmente estabelecidos e padrões de excelência, as práticas humanas possuem como objetivo a realização de bens inerentes a elas mesmas. De tal forma, diante do engajamento de alguns em determinada prática, o resultado a ser alcançado poderá ser dois tipos diferentes de bens devidamente caracterizados:

19 Segundo Carvalho, a concepção de virtudes que muitos filósofos trataram de apresentar ao longo da história,

foram somente as virtudes convenientes para sua própria época. Porém, nem todos foram capazes de formular uma ética das virtudes que pudesse determinar nossa forma de ação. Para ele, enquanto a “teoria das virtudes é a área geral da pesquisa filosófica encarregada de investigar a natureza da virtude e do vício; ela inclui a ética das virtudes, um tipo de teoria ética que privilegia as virtudes como definidoras do modo como devemos agir, centralizando a reflexão no caráter do agente moral e não em ações isoladas ou normas, algumas vezes em fatores não racionais da motivação moral. O termo ‘ética das virtudes’, por sua vez, não deve ser pensado como expressão de uma forma homogênea de teoria ética, mas como um gênero que engloba várias espécies”. (CARVALHO, 2011, p. 190).

os bens externos e os bens internos. Os bens externos às práticas se caracterizam por estarem vinculados às circunstâncias sociais. Eles são contingentes, podendo ser obtidos por outros meios. São exemplos de bens externos o prestigio social, status e o dinheiro que se pode conseguir, mas “sempre há modos alternativos de alcançar esses bens, e sua conquista nunca se dá apenas engajando-se no exercício de uma determinada prática”. (MACINTYRE, 2001a, p. 317).

De outra forma, os bens internos às práticas envolvem padrões de excelência e obediência às regras que foram desenvolvidos historicamente e constituíram, por assim dizer, um determinado estilo de vida. São bens alcançados mediante algum tipo de prática particular. São denominados internos porque só podem ser especificados nos termos da prática e como exemplos dessa mesma prática.

Nós os chamamos de internos por dois motivos: primeiro, como já afirmei, porque só podemos especificá-los dentro [de uma prática]; e em segundo lugar, porque só podem ser identificados e reconhecidos pela experiência de participar da prática em questão. Aqueles a quem falta a devida experiência são incompetentes, portanto, como juízes dos bens internos. (...). Os bens internos são, de fato, consequência da competição pela excelência, mas é característica deles que sua conquista seja boa para toda a comunidade que participa da prática. (MACINTYRE, 2001a, p. 317-318).

Pode-se citar como exemplo dessa prática, o jogo de xadrez. A única forma de alcançar os bens internos à prática do xadrez é jogando este jogo. A mera observação do jogo, não fornece a excelência para quem unicamente observa. Tais bens internos, como o exercício de concentração, estratégia e reflexão são alcançados unicamente pelos sujeitos da prática do jogo de xadrez, ou seja, pelos seus jogadores, no exercício dessa prática.

Para MacIntyre, as práticas não devem ser confundidas com capacitações técnicas. As práticas necessitam das capacidades técnicas para se transformarem, mas devem ir para além delas, porque, ao contrário das capacidades técnicas, as práticas não têm um fim a ser atingido. Elas são um fim em si mesmas. Por isso, pode-se dizer que as práticas se resumem aos bens que foram reconhecidos ao longo do processo histórico dessa atividade no interior da comunidade na qual foi estabelecida. Segundo MacIntyre (2001a), o ensino de filosofia, da biologia, da matemática, por exemplo, não são exemplos de alguma prática, porque não possui a excelência a ser alcançada, mas não deve ser desmerecido, porque contribui para a realização das atividades filosóficas, matemáticas e biológicas, respectivamente. Assim, uma atividade, mesmo não sendo uma prática, está em constante interação com a outra, na medida em que contribui para a pesquisa em torno dos bens a serem obtidos no interior dessa prática. De uma maneira geral, cada uma dessas práticas possui bens específicos, que só passam a ser

reconhecidos no exercício de sua prática. Essa característica acaba sendo própria aos bens internos, que só podem ser reconhecidos pelo sujeito que assumiu a realização de tal prática. Então, pode-se definir mais claramente, o que são os bens internos? Os bens internos são obtidos na excelência e execução da atividade, por isso mesmo, são desejáveis por eles mesmos, e não por nenhum outro fim, obtendo resultados para toda a comunidade que cultiva essa atividade. Por estarem relacionadas ao aperfeiçoamento da atividade realizada, somente as virtudes poderão ser alcançadas mediante o exercício de uma prática. Cada prática possui padrões de excelência a serem atingidos, e os bens internos só são obtidos quando o sujeito se dispõe a competir por sua excelência. MacIntyre (2001a) esclarece esse ponto, insistindo na observância de certos padrões para atingir a excelência de uma prática:

Uma prática implica padrões de excelência e obediência a normas, bem como a aquisição de bens. Ingressar numa prática é aceitar a autoridade desses padrões e a inadequação do meu próprio desempenho ao ser julgado por eles. É sujeitar minhas próprias atitudes, preferências e gostos aos padrões que atual e parcialmente definem a prática. As práticas, naturalmente, como acabo de salientar, têm uma história; jogos, ciências e artes, todas têm histórias. Assim, os padrões propriamente ditos não são imunes à crítica, porém, não podemos nos iniciar numa prática sem aceitar a autoridade dos melhores padrões até o momento alcançados. (MACINTYRE, 2001a, p. 320).

De outra forma, os bens externos são descritos como poder, dinheiro, status social. São bens que somente trazem benefícios para o próprio sujeito; são bens de propriedade, e não são adquiridos para a sua comunidade. Enquanto esses bens estiverem em posse de alguém, significa dizer que outra pessoa ficou com menos, ou permanece ausente de tal bem. Esses bens podem ser facilmente reconhecidos em instituições como um clube, uma empresa ou universidade.

Os bens externos e contingentes ligados ao jogo e a outras práticas por acidentes das circunstâncias sociais – no caso da criança imaginária, os doces; no caso de adultos verdadeiros, bens como prestígio, status e dinheiro. Sempre há modos alternativos de alcançar esses bens, e sua conquista nunca se dá apenas engajando-se no exercício de uma determinada prática. (...). É característica do que chamo de bens externos que, quando conquistados, sempre são de propriedade e posse de alguém. Além disso, são tais que quanto mais se tem, menos há para outras pessoas. Os bens externos são, portanto, objetos de uma concorrência em que deve haver tanto vencedores quanto derrotados. (MACINTYRE, 2001a, p. 317-321).

Por meio dos bens externos as práticas têm sido organizadas, ou seja, uma prática que fornece mais status ou mais dinheiro assume um lugar importante numa empresa e, até mesmo, numa comunidade. Por isso, na sociedade liberal, os indivíduos têm procurado agir pensando nos bens externos às práticas, e não na excelência da atividade em si mesma.

O papel das virtudes nesse contexto é garantir a excelência na realização dos bens internos às práticas, o telos último de cada uma delas, que são historicamente construídos. Sem as virtudes, as práticas tendem a degenerar-se, corromper-se e devotar-se exclusivamente a bens externos, como dinheiro, poder e riqueza, submetendo-se às suas contrapartes institucionais. As virtudes são, precisamente, aquelas virtudes de caráter e do intelecto necessárias para a conquista dos bens específicos às práticas e para a sustentação de nossa busca pela boa vida, de nossa comunidade e das tradições. (CARVALHO, 2011, p. 195).

Podemos perceber, portanto, que as práticas só prosperam em sociedades nas quais as virtudes têm o seu valor assegurado, de maneira que somente em comunidades que cultivam algum tipo de virtude, as práticas serão mantidas. Por isso, enquanto a conquista dos bens externos está relacionada aos desejos pessoais do sujeito, a conquista dos bens internos almeja a excelência da prática. Dessa forma, as virtudes terão a função de auxiliar na busca dos bens internos que serão bens não apenas para o sujeito em si, mas para toda a sua comunidade, onde ele está inserido.

As práticas cultivadas em determinada comunidade são mantidas ou organizadas por instituições, nas quais são estruturadas normas ou metas que poderão ou não, interferir na disposição do sujeito diante das práticas, já que existem instituições que incentivam o sujeito a chegar somente aos bens externos. Assim, enquanto uma prática como o xadrez, o exercício da medicina e as pesquisas da física, da biologia e na área das humanas, procuram reconhecer seus bens, as instituições, que se definem como o local no qual essas atividades são realizadas, incentivam metas que se transformam em recompensas como dinheiro, status e poder. Dessa forma, as instituições tendem a corromper as práticas, porém, as práticas precisam das instituições, sem as quais elas mesmas não poderiam se manter. Cria-se, assim, na sociedade, uma relação de dependência entre a prática e a instituição, que se estende com o exercício das virtudes. Por isso, numa sociedade sem virtudes, as práticas seriam – segundo o filósofo - facilmente corrompidas pelas instituições.

A relação entre práticas e instituições se revela contraditória, pois assim como não podemos reduzir as práticas a capacidades técnicas, também não devemos reduzí-las às instituições que as abrigam. Com efeito, enquanto as práticas buscam a excelência de sua atividade, e estão relacionadas também à satisfação que o sujeito possui em exercer tal atividade, as instituições não almejam somente a excelência, mas também os bens que garantam sucesso, riqueza e fama. Fica claro que, as instituições lidam com a distribuição de bens materiais e recompensas, não que isso possa ser uma relação negativa, já que sem as instituições nenhuma prática sobreviveria. Porém, se nessa relação não houver equilíbrio, os bens externos

podem corromper as práticas e as próprias instituições, anulando virtudes como a justiça, a coragem e a sinceridade.

O conceito de prática nos remete ao primeiro estágio da ética das virtudes macintyriana que se apresenta como [...] “uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos capacitar a alcançar aqueles bens internos às práticas e cuja ausência nos impede, para todos os efeitos, de alcançar tais bens”. (MACINTYRE, 2001a, p. 321).

Segundo o filósofo escocês, as virtudes são necessárias nas práticas, para que em cada instituição ou na realização de uma atividade, o sujeito esteja discutindo sobre os melhores padrões a serem atingidos para chegar à excelência. Um sujeito que se dispõe a atingir a excelência numa prática, também está direcionado a alcançar o fim último determinado nessa sociedade. Assim, o propósito de falar nas práticas representa o sentido que as virtudes passam a assumir na vida humana, porém as virtudes não se definem apenas nas práticas.

Segundo MacIntyre (2001a), as referidas virtudes contemplam ainda dois outros níveis, a saber, a narrativa de vida e a tradição. Se nas práticas, as virtudes são exercidas no interior das instituições e clubes, no referido caso, da narrativa de vida, as virtudes serão pensadas no contexto pessoal de cada sujeito, procurando recuperar o sentido do seu papel social e sua responsabilidade moral na comunidade. Na tradição, primeiro, porque é a base de todo nosso comportamento moral e segundo, porque na tradição identificamos nosso lugar na história, o sentido das práticas adotadas e podemos fornecer um caráter inteligível e teleológico a nossa comunidade de referência ou de pertença.