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Na obra A Essência da Constituição (Über die Verfassung) Ferdinand Lassalle responde a seguinte pergunta, que formula: “Qual será a verdadeira essência, o verdadeiro

conceito de uma Constituição?”169 Ele responde a pergunta apoiado no que denomina “fatores reais do poder”, que “regem uma determinada sociedade” porque são a força ativa e eficaz de cada sociedade que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, “determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são”.170

Para Ferdinand Lassalle, são fatores reais do poder a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia, a classe operária, as indústrias, as ciências, a cultura em geral e a consciência coletiva171, considerando que cada um deles são partes, partículas ou fragmentos da Constituição, para concluir: “Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma

nação.”172 Se juntados esses fatores reais do poder e escritos em uma folha de papel, afirma Ferdinand Lassalle, adquirem expressão escrita e, “a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições

jurídicas.” E, desse modo, quem atentar contra eles atenta contra a lei e, por conseguinte, é punido. Conforme Ferdinand Lassalle, nesses escritos não vai aparecer a declaração que os senhores capitalistas, o industrial, a nobreza, o banqueiro e o povo são um fragmento da Constituição.173 Como podemos ver, na ótica de Ferdinad Lassalle, os escritos ocultam o poder que os ditou ou os escreveu. Em outras palavras, a Constituição e as leis ocultam o poder que as ditou ou as escreveu. Este é um aspecto, a nosso ver, ainda real nos dias de hoje porque nem sempre o verdadeiro autor do projeto de lei ou o real “legislador” está retratado no papel que contém a lei e, por vezes, até mesmo na Constituição ou sua modificação. Apenas para ilustrar, em 1997, quais os fatores reais de poder que introduziram na CF a reeleição para Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos, tema que o povo, titular do poder, não havia reclamado ou debatido nas eleições de

169 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 5. (Grifos nossos.) 170 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 11. (Grifos do original.) 171 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 12-19 e 37. (Grifos do original.) 172 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 19. (Grifos do original.) 173 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 19-20. (Grifos do original.)

1995?174 A referida emenda constitucional foi aprovada de forma mais que surpreendente para introduzir a reeleição, - sem discussão pelo povo, - instituto até então estranho à República brasileira.

Ferdinand Lassalle destaca que há duas constituições: “a constituição real e efetiva, integrada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar de folha de papel”.175

Outro aspecto da concepção de Ferdinand Lassalle sobre a Constituição é a questão da

lei da necessidade. Todo país tem uma Constituição “pela mesma lei da necessidade que todo corpo tenha uma constituição própria, boa ou má”.176 E pergunta: “Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura?” Ele responde: “Quando essa constituição escrita corresponde à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder

que regem o país.” E esclarece:

Onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dias menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais.177 É um aspecto importante na concepção de Ferdinand Lassalle, pois, como vimos acima, ele reconhece que o povo é um dos fatores reais de poder e, por isso, também é fragmento da Constituição. Ele acredita no poder da Nação, inclusive superior ao do Exército, como ficou demonstrado na Revolução de 1848, mas é desorganizado. Tema que trata sob o título: “O poder da nação é invencível.”178

E assim, para Ferdinand Lassalle, “os problemas constitucionais não são problemas de

direito, mas de poder.”179 Em face dessa posição, Rogério Gesta Leal manifesta que

174 A reeleição para Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos foi introduzida na CF pela Emenda Constitucional n. 16, de 4 de junho de 1997, em tempo suficiente para permitir a reeleição de quem então era titular e ocupante do cargo, enquanto o povo, titular do poder (CF, parágrafo único do art. 1º), vivia a euforia do Plano Real, instituído em 1994.

175 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 25. (Grifos do original.) Segundo anotação no rodapé da mesma página, a expressão “folha de papel”, é uma alusão à frase de Frederico Guilherme IV, que disse: “Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita como se fosse uma segunda Providência.”

176 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 29. (Grifos nossos.) 177 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 41-42. (Grifos do original.) 178 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 42. (Grifos nossos.) 179 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 49. (Grifos do original.)

o próprio tema do Poder Constituinte tem de ser abordado com uma visão transdicisplinar, superando o formalismo reducionista da cultura jurídica dogmática, buscando problematizar as projeções políticas, sociais, econômicas e mesmo filosóficas que a matéria enseja.180

O pensamento de Rogério Gesta Leal é marcante pela insurgência contra o tradicional discurso reducionista da cultura jurídica, pela aceitação dos fatores reais de poder e porque o Poder Constituinte, como expressão do povo, traz consigo a realidade da vida humana que nem é jurídica, mas econômica, social, política, filosófica, moral, religiosa, afetiva. Em outras palavras, há uma realidade jurídica, mas também há uma realidade que não é jurídica. Ambas devem ser consideradas. Acrescentamos o nosso entendimento no sentido de que, pelas mesmas razões, o pensamento em tela também deve nortear a elaboração de Emendas Constitucionais (CF, art. 60).

Do pensamento de Ferdinand Lassalle sobre a Constituição se extrai que sua concepção é sociológica.181 Ferdinand Lassalle considera os fundamentos políticos e sociais como essenciais para uma Constituição ao que distingue entre Constituições reais e

Constituições escritas para, então, concluir que “os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder”.182 Seu pensamento continua sendo estudado até hoje. Inocêncio Mártires Coelho vê a influência de Ferdinand Lassalle tanto no pensamento de Konrad Hesse (A força normativa da Constituição), como em Peter Häberle (Hermenêutica

constitucional; sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição) e resume: “Embora seguindo caminhos diversos, e não muito diferentes, o que Hesse e Häberle fizeram, ao fim e ao cabo, foi constitucionalizar os fatores reais de poder, no que se mostraram sensatos e competentes.”183

Hermann Heller, sobre a Constituição escrita, destacando o pensamento de Ferdinand Lassalle, assenta:

180 LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 167.

181 Neste sentido: MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. 3. ed. (reimpressão). Lisboa: Coimbra Editora, 1996, p. 53; SILVA, José Afonso da. Curso..., cit., p. 38, n. 2; TEMER, Michel.

Elementos de direito constitucional. 22. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 19, n. 2.1; VIEIRA,

Iarcyr de Aguilar. A essência da Constituição no pensamento de Lassalle e de Konrad Hesse. Revista de

Informação Legislativa. Brasília a. 35, n. 139, jul./set., 1998, p. 71-81.

182 LASSALLE, Ferdinand. Op. cit., p. 49. (Grifos do original.) 183 COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 186.

“La Constitución escrita del Estado moderno se propone – según la exacta indicación de Lassalle – compreender y establecer ‘en un documento, sobre una hoja de papel todas las instituciones y principios de gobierno del país’.”184

Rogério Gesta Leal sustenta que a obra de Ferdinand Lassalle, advogado, judeu e sindicalista, se caracteriza

pelo enfrentamento de questões polêmicas como o sufrágio universal, igual e direto para os operários na escolha dos governos; necessidade de as classes menos favorecidas e principalmente os operários se unirem em torno de um Partido Político que efetivamente os represente nas esferas de decisão.185

Não obstante, como registra Rogério Gesta Leal, Ferdinand Lassalle deixa muitas questões sem resposta, - questionamentos com os quais concordamos, - entre outras, estas:

Quais as formas de se resgatar a participação consciente e crítica do povo no processo de decisão política do Estado? Qual o modelo de Estado e de Democracia que se pretende à modernidade? Que instrumentos deverão ser implementados para a consecução e proteção dos direitos fundamentais?186

Ferdinand Lassalle tem o mérito de chamar atenção para os fatores reais de poder na sociedade e sua força nas relações sociais e em face da Constituição jurídica e da organização do Estado, realidade que continua atual. Daí a atualidade de seu pensamento. Assim, hodiernamente, e em maior número, por exemplos, temos como fatores reais de poder os banqueiros, o sistema financeiro, os grandes proprietários de terras, grandes empresas nacionais e transnacionais, os monopólios e os oligopólios, as centrais sindicais dos trabalhadores, as Forças Armadas, as associações profissionais, os partidos políticos, as organizações não-governamentais (ONG’s), os movimentos sociais.

Uma outra contribuição de Ferdinand Lassalle, e que também ainda continua atual, é a de que o jurídico não pode ignorar a realidade social, política e econômica em que vivemos, pensamento que, como veremos, vai ser objeto de estudo e reflexão de Konrad Hesse no século seguinte. É como Rogério Gesta Leal sintetiza: “[...] as especulações de Lassalle, sem sombra de dúvida, põem em xeque a lógica da racionalidade jurídico-formal e abrem a

184 HELLER, Hermann. Teoria del estado. Edicción y prólogo de Gerhart Niemeyer. Versión española de Luis Tobío. México: Fundo de Cultura Económica, 1947, p. 300. Deixamos de traduzir a citação porque o espanhol, como o português, é língua oficial do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL).

185 LEAL, Rogério Gesta. Teoria..., cit., p. 166. 186 LEAL, Rogério Gesta. Teoria..., cit., p. 168.

discussão sobre a eficácia das leis”.187 Nos dias de hoje, nas democracias constitucionais como a nossa, a Constituição não ignora a realidade em face da titularidade do poder e seu exercício pelo povo, via constituinte, democracia representativa e democracia participativa, destacando-se as liberdades e direitos constitucionais, o processo legislativo que deve ser observado pelo Estado-Legislador, sob pena de inconstitucionalidade, - esta passível de ser extirpada pelo Judiciário, - a subordinação dos Poderes constituídos à Constituição e a acessibilidade ao Judiciário para a resolução de violação ou ameaça a direito. Mesmo assim, os fatores reais de poder, como os que mencionamos, fazem sentir sua força em face da CF, como é dado observar, por exemplos, no lobby que é feito no processo legislativo, na elaboração das políticas públicas e até mesmo no Judiciário. Os fatores reais de poder de hoje, como os de ontem, fazem sentir sua força em toda a vida pública do País e, muitas vezes, são expressão de uma força contrária à CF. O que, aplicado ao nosso estudo, autoriza afirmar que fatores reais de poder, muitas vezes, manifestam sua força contrária ao direito constitucional de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para a construção de uma cultura de equilíbrio ambiental no Brasil.

Por essas razões, a força normativa da CF não é apenas uma questão de lógica jurídico-formal. É o posicionamento que ficará demonstrado claramente com o pensamento de Konrad Hesse.