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A concepção dos professores sobre a leitura e a surdez

DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS

M: não, leitura convencional seria a leitura alfabética mesmo De conseguir ler por completo, né

4.1.3 A concepção dos professores sobre a leitura e a surdez

Levando em consideração as especificidades lingüísticas dos participantes deste estudo, ao serem matriculados em classe comum e em especial, na rede ensino, interessa avaliar como os professores conduziam o ensino da leitura, em sala de aula. Em outras palavras: como lidavam com a ausência de um sistema lingüístico para a mediação da leitura em português? Qual a importância da linguagem oral nesse processo, uma vez que as crianças surdas pouco a dominavam?

Ao serem levados a refletir sobre a importância da língua oral na produção da leitura, notei que os discursos foram divididos em dois grandes grupos: os que consideravam a fala importante para a aprendizagem da leitura e os que disseram ser possível aprender a ler, independentemente de saber falar. Os exemplos que afirmaram ser a oralidade importante, nesse processo, podem ser vistos abaixo:

(Profa. L2.)

S.: Então, como você acha que a criança aprende a ler? A oralidade é importante, nesse processo?

L2.:Eu acho que é importante. Porque eu acho que ele faz relação, né, do som com a

escrita, vai alimentando aquilo, né. Agora, se ele não tem... S.: O surdo, que não ouve e não fala, não pode aprender a ler?

L2.: Eu acho que pode, mas é mais difícil. Mais demorado e o que eu tenho visto não é

com grande sucesso também. Agora, eu também não sei como seria.

Já os exemplos daqueles que se inserem no segundo grupo podem ser identificados em dois trechos, a seguir:

(Profa V.)

V.: Pra leitura é como já disse, a criança pode ler, mesmo sem saber que ela tá ouvindo o coleguinha [...]

(Profa. J.)

J.: A oralidade é importante. Ela facilita o aprendizado, mas como a gente trabalha com surdo, temos que pensar que tem dificuldade para aprendizagem da fala. Eu não posso enfatizá-la. Se ele souber, será ótimo.

Embora tais professores dissessem ser possível ao surdo aprender a ler sem saber falar, tal afirmação pareceu não se sustentar, acabando por se igualarem ao primeiro grupo, pois se julgaram inseguros para conduzir o processo de alfabetização da criança surda, sem a mediação da oralidade nesse processo, seja ele professor de classe comum, seja especializado:

(Profa. V.)

V.: Ai ... é uma incógnita .... Eu não tenho experiência, né. Tenho a P., a gente está tentando ensinar. Aprende com ela também, como trabalhar com ela.

(Profa. L1.)

L1.: Ah! Olha, com a criança, assim, surda é difícil, viu! Porque é tão automático, não é? ...

L1.: Olha, mas é difícil essa ... de pensar ... Por isto que eu falo que a gente fica ansiosa,

né, com o trabalho, assim destas crianças. (Profa. M.)

M.: Olha, é uma coisa assim, que eu to falando, eu não tenho assim muito claro na minha cabeça...

De modo geral, apesar de terem conhecimento da Língua de Sinais como um sistema lingüístico viável aos surdos, para o desenvolvimento do pensamento e da apropriação dos conhecimentos escolares, poucos conseguiram sistematizar o que pensavam a respeito do processo de produção da leitura para segmento da população, sem a intermediação da fala.

Apenas a professora J., buscando explicitar seu ponto de vista, afirmou ser possível aos surdos alfabetizarem-se independentemente da aquisição da fala, ressaltando a importância da aquisição da língua de sinais, nesse processo. Ao destacar a língua de sinais, na produção da leitura e da escrita, demonstra compreender a sinalização do texto em português, como uma habilidade avançada de proficiência do surdo em leitura, que, ao conseguir fazer isso, terá compreendido o significado das palavras. Porém, descreve que, para muitos deles, a maior barreira na aprendizagem da leitura continua atrelada ao déficit de vocabulário na aquisição da língua majoritária.

Ainda que se conclua ser a fala nem sempre possível para muitos surdos, J. parece reforçar o ensino da linguagem desvinculada do sujeito, como uma “fala morta”, conforme apontado por Vygotsky (1995b), no século passado. Para ensinar os surdos a ler defende ser necessário trabalhar com o déficit de vocabulário, destacando a formação de novos conceitos, na modalidade escrita, falada e sinalizada. A linguagem, para ela apresenta-se de maneira externa ao sujeito. Tudo

se passa como se as palavras tivessem um sentido literal e pré-estabelecido. O surdo que não adquirir uma língua, antes de sua entrada no processo formal de alfabetização, terá problemas com o desenvolvimento da linguagem e, em conseqüência, com a formação de conceitos que, na sua visão, são aspectos fundamentais para a aquisição da leitura, fato que a leva a defender a oralidade como um recurso auxiliar nesse processo:

(Profa. J.)

J.: (sinaliza a frase na ordem da estrutura da língua portuguesa) [COMO A CRIANÇA APRENDE A LER], sinalizando que é capaz de entender tudo

S: Ele só sinalizou, e você pergunta para explicar o que entendeu e ele diz que não compreendeu nada!

J.: Não, esta situação é difícil. Porque, se ele entendeu... ele vai conseguir transformar em sinal isso daqui, porque ele tem o conceito disso daí... Agora, se ele não tem o conceito, fica difícil, né, provavelmente ele não vai saber o que está sinalizando. J.: [...] Noto que o aluno surdo que se comunica oralmente tem um desempenho melhor

na escrita do que aquele que só usa sinais...

Nessa perspectiva, assim como a criança ouvinte, o surdo se vê obrigado a trabalhar com a “sinalidade” na leitura, isto é, com o aspecto sonoro apenas da escrita ou com a identificação do sinal. De maneira semelhante às considerações de Arena (1992) sobre a apropriação da leitura pelos alunos ouvintes, pode-se dizer que, tradicionalmente, no ensino para os surdos, os professores também continuam insistindo em ensinar a língua despojada de seu sentido e de valor social. Ao veicular a língua como um processo de identificação, desconsidera-se a compreensão, mantendo-se a criança fora do fluxo lingüístico. Enfatizando a percepção de estímulos visuais e evitando mergulhar no mundo do significado, leva- se apenas a criança a formalizar uma visão distorcida do que venha a ser a leitura. A língua, ao ser tratada monossemicamente, desvia a atenção das crianças do que pode ser a atividade de leitura.

Ao abordar sobre essa questão, Karnopp (2002) explicita que tal atitude advém da visão equivocada dos educadores a respeito do conceito de “deficiência verbal” dos surdos. Nos melhores dos casos, para ela, quando a língua de sinais é considerada, com medo de que os surdos leiam e escrevam errado seus textos, é comum ver a utilização de práticas de ensino de leitura e escrita simplificadas e desconectadas de sentidos. Por não saberem lidar com a estrutura e funcionamento de duas línguas diferentes, as produções dos alunos surdos parecem tratadas como “erradas” e como “não-textos”. Apesar de as produções lingüísticas (gestuais e escritas) terem uma explicação lógica, científica, lingüística, histórica, psicológica,

sociológica, educadores continuam negando as especificidades da surdez, no desenvolvimento e aprendizagem dos surdos, nessas modalidades de linguagem.

Para Karnopp (2002) e Lodi (2004), esse tipo de prática lingüística, também se baseia na idéia de relações de dominância entre língua de sinais e língua portuguesa, pela qual a segunda é equivocadamente considerada superior à primeira. Nessa direção, ambas as autoras salientam que se a língua de sinais continuar sendo inferiorizada é, descaracterizada no contexto escolar, apenas será empregada como uma ferramenta para o aprendizado do português, ignorando que os surdos pertencem a uma comunidade lingüística com valores e cultura própria.

Assim como denunciado por Karnopp (2002), ainda que apenas duas das professoras - J. e L2. -, demonstrassem conhecimento sobre à situação bilíngüe dos surdos, assim como as outras (V,. M. C, L1), também não toleraram qualquer manifestação lingüística diferente. Tratando os alunos surdos como deficientes lingüísticos, continuam enfatizando a oralidade como um requisito importante para a aprendizagem da leitura e escrita, sejam eles, ouvintes ou não.

A omissão na fala das professoras sobre como lidar com as diferenças dos sistemas lingüísticos (LIBRAS e português) no ensino da leitura para os surdos, reflete o quanto a escola se encontra atualmente distante no atendimento das necessidades educacionais especiais dessa população. Sabe-se que tal fato, pode ser analisado como decorrente de vários fatores, dentre os quais, destacam a falta investimentos em programas de formação continuada aos professores.

Ao referir sobre a inclusão dos surdos, em sala de aula comum, Borges (2004) alerta que a falta de conhecimento sobre as especificidades lingüísticas, metodológicas e de aprendizagem, dessa população, contribui para que os professores continuem ignorando a presença dos alunos surdos dentro de sala de aula. Para ele, tal aspecto está relacionado ao total despreparo dos profissionais da escola em lidar com necessidades especiais dos alunos com deficiência. Essa situação, segundo o mesmo autor (2004), apenas pode ser considerada como um reflexo da falta de investimentos em formação adequada para seus professores. Ademais, os baixos salários do professorado, as longas jornadas de trabalho que necessitam cumprir os impedem de investir, por conta própria, em formação continuada. Outro ponto que merece destaque, centra-se no fato de a maioria dos cursos de graduação não contemplam, em seus currículos, uma ação voltada para o trabalho que leve em conta as diferenças na escola.

4.1.4 A produção da leitura na escola: um processo contra-