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Não é nosso objetivo aqui tecer maiores considerações teóricas sobre o tema dos direitos fundamentais, mas convém discorrer o suficiente para dar suporte à nossa investigação em torno da compatibilidade da prática orçamentária brasileira com a Constituição Federal.

É bastante conhecida a classificação dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões. Os de primeira geração seriam aqueles chamados direitos negativos, que tradicionalmente impõem limitações à atuação do Estado, caracterizando-se, assim, como direitos de defesa. Se, conforme leciona Bonavides (2001, p. 516), os direitos fundamentais têm como princípios cardeais os consagrados no lema da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, os direitos fundamentais de primeira dimensão identificam-se com o primeiro deles: a liberdade. Têm como titulares as pessoas e, como principal marca, a proteção de seus titulares contra o arbítrio estatal, caracterizando-se, dessa forma, como direitos de defesa.41 Enquadram-se nesta categoria: os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, sendo posteriormente complementados por um leque de liberdades e pelos direitos de participação política (tais como a capacidade eleitoral ativa e passiva), além de algumas garantias processuais – devido processo legal,

habeas corpus, direitos de petição.

Os direitos de segunda dimensão seriam direitos econômicos, sociais e culturais, que germinaram ainda no século XIX, a partir da constatação das contradições do capitalismo e da sua faceta político-ideológica – liberalismo –, e predominaram por todo o século XX. Se os direitos de primeira geração se identificam mais com o ideal da liberdade, os da segunda dimensão, na feliz imagem de Bonavides (2001, p. 518), “[...] nasceram abraçados ao princípio da igualdade”, sendo

41 Admite-se também que possam ser invocados contra particulares. Nesse sentido, ver o nosso “a

eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas” (QUEIROZ, 2004). Ver também: Sarmento (2004), Pereira (2003) e Julio Estrada (2000).

sua finalidade promover boas condições de vida para a população como um todo, equilibrando as desigualdades sociais. Trata-se, portanto, não de mera igualdade formal perante a lei, mas de igualdade material entre as pessoas, de modo a buscar garantir a todos participarem, em igualdade de condições, da vida em sociedade. Como pontifica Sarlet (2003, p. 52), “[...] não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado”.

Ainda segundo Bonavides (2001, p. 518), uma característica marcante desses direitos é o fato de demandarem uma atuação estatal positiva para a sua implementação, motivo pelo qual se chegou a colocar em dúvida a sua eficácia, a qual poderia ser comprometida por carência de meios e recursos. Compõem essa categoria: o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência social, enfim, aqueles previstos no rol do art. 6º da CF/88.42

Há também os chamados direitos de terceira dimensão. Prosseguindo na vinculação entre as dimensões dos direitos fundamentais e os princípios da Revolução Francesa, podemos afirmar, com Bonavides (2001, p. 522), que os de terceira dimensão se assentam na fraternidade. Surgidos a partir da constatação das desigualdades entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas (BONAVIDES, 2001, p. 522), bem como do estado de constante beligerância em que se encontram as nações, a característica marcante destes direitos é o fato de não se destinarem à proteção de um indivíduo ou de um grupo, mas “[...] do gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (SARLET, 2003, p. 54). Compreendem: o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio-ambiente equilibrado, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, direito de comunicação, os direitos relacionados ao progresso das ciências biológicas, dentre outros.

Há desenvolvimentos teóricos no sentido de reconhecer direitos de quarta e até de quinta dimensão. Bonavides (2001, p. 524) defende que, para fazer face aos desafios da globalização econômica, a qual se move rumo à dissolução do Estado nacional, afrouxando e debilitando os laços de soberania, com vistas ao aprofundamento da dominação exercida por hegemonias supranacionais, deve ser fomentada a globalização política, radicada nos direitos fundamentais. Os direitos de

42 Sarlet (2003, p. 53) inclui nessa classificação as “liberdades sociais”, tais como o direito de greve e

o de sindicalização, bem como os direitos fundamentais do trabalhador: limitação de jornada de trabalho, descanso semanal remunerado, salário mínimo, férias, detre outros (art. 7º da CF/88).

quarta dimensão seriam então o direito à democracia, à informação, ao pluralismo (BONAVIDES, 2001, p. 524) e o direito à paz como direito de quinta dimensão (BONAVIDES, 2015, p. 594-609).

Durante muito tempo, perdurou a ideia de que os direitos de primeira dimensão não envolveriam custos para a sua fruição. Bastaria, para tanto, uma abstenção do Estado. Apenas os direitos sociais (e também boa parte dos das dimensões seguintes) demandariam uma prestação positiva do Estado e, portanto, envolveriam gastos. A partir das reflexões de Holmes e Sustein (1999), essa concepção foi enfraquecida. De fato, esses dois autores apresentaram argumentação convincente no sentido de que os direitos de defesa, na medida em que exigem um aparato institucional para a sua garantia – judiciário, polícia, exército, corpo de bombeiros etc. –, também demandam custos para a sua preservação. De fato, a existência dessas instituições é imprescindível para que esses direitos sejam efetivamente respeitados, servindo inclusive de incentivo importante para a observância a eles, o que leva à conclusão de que, necessariamente, se há previsão de direitos de primeira dimensão, devem existir, na prática, gastos para a sua proteção. Entretanto, reputamos válida a ponderação de Scaff (2018, p. 374):

Os ensinamentos de Holmes e Sustein e de Flávio Galdino afirmam que todos os direitos possuem custos – e isso é conhecido desde há muito. O fato é que a estrutura jurídica desses direitos sociais acarreta mais gastos públicos do que os demais, em condições normais de existência (o que afasta a hipótese de guerras ou calamidades do mesmo jaez).

Para o que interessa a esta pesquisa, é importante constatar que a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente a dos direitos de segunda dimensão, demanda a realização de gastos públicos, de modo que a existência de dotações não executadas sem maiores justificativas é uma disfunção no sistema jurídico.43

Vale dizer, se a efetivação dos direitos fundamentais, inclusive os ditos de primeira geração, depende da realização dos gastos públicos, e se o orçamento espelha as escolhas democráticas a respeito de como serão efetuados esses gastos, dos quais, repita-se, depende a concretização desses mesmos direitos fundamentais (na verdade de todos os direitos, não somente os fundamentais), uma discrepância

acentuada entre o que foi previsto no orçamento e o que foi de fato executado no exercício financeiro parece ser um problema grave.

Nesse ponto, apresenta especial relevo a execução orçamentária dos investimentos públicos. Há um certo consenso entre os economistas a respeito da ligação entre o investimento público e o crescimento econômico:

As escolas de pensamento econômico apresentam divergências nas suas análises sobre os impactos dos gastos públicos ou sobre a função do Estado como indutor do desenvolvimento econômico. Há, contudo, um reconhecimento bastante generalizado em relação ao papel estratégico que os investimentos do setor público podem desempenhar em nossas economias, principalmente quando orientados para segmentos de infraestrutura. (ORAIR, 2016, p. 9).

Isso porque, ainda segundo Orair (2016, p. 9):

Pelo lado da demanda, no curto prazo, as despesas de investimento estão associadas a multiplicadores do produto e do emprego mais elevados, sobretudo em períodos recessivos. Sob a ótica da oferta, possuem a faculdade de romper gargalos estruturais e ampliar a produtividade sistêmica da economia no médio e longo prazo.

Corroborando e complementando tal assertiva, estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aponta a existência de um viés negativo contra o investimento público na região da América Latina e Caribe, prejudicial ao crescimento econômico (IZQUIERDO et al., 2018, p. 10):

Este sesgo contra los gastos de capital es particularmente costoso por dos motivos: los multiplicadores del gasto de capital son más grandes que los multiplicadores del gasto corriente y, por lo tanto, amplifican los costos del producto en los malos tiempos [...]; puede conducir a un menor crecimiento a largo plazo, en la medida en que el capital público complementa al capital privado. Por lo tanto, el apetito de inversión privada, un motor clave del crecimiento, puede ser bajo cuando la provisión de capital público, por ejemplo, caminos o puertos, no es suficiente.

No caso do Brasil, analisando a execução das despesas primárias entre os exercícios de 1997 e 2014, Milfont (2015, p. 15) concluiu:

As despesas primárias aumentaram a taxas superiores ao crescimento do PIB. Esse aumento ocorre principalmente nas despesas classificadas como obrigatórias, que, em geral, englobam gastos com custeio. Assim, o Estado tem a sua capacidade de investir em áreas importantes para o desenvolvimento do País reduzida, a exemplo da área de infraestrutura.

E prossegue, o mencionado estudo do BID, propondo a revisão desse viés prejudicial ao investimento público para que os países da região possam crescer de forma economicamente sustentável (PESSINO et al., 2018, p. 301)44:

Además, la región (América Latina e Caribe) ha sesgado de forma continua su gasto en contra de la inversión pública, no solo en términos relativos al gasto corriente sino también en términos per cápita. A su vez, puede que este sesgo haya perjudicado el crecimiento económico (sobre todo debido a los bajos niveles de infraestructura de la región). Naturalmente, esto tiene una importancia particular en una región como América Latina y el Caribe, donde una gran parte del crecimiento económico es impulsada por factores externos como los precios. Si la región pretende graduarse de esta trampa de la dependencia e integrarse en la economía global de manera más estratégica con un mayor valor añadido, con empleos mejores y más productivos, y un crecimiento sostenido impulsado por factores domésticos, deve revertir este sesgo contra la inversión pública.

Sem embargo, para o atingimento dos objetivos da República dispostos no art. 3º da CF/88, bem como para a concretização dos direitos fundamentais, a mera promoção do crescimento econômico não é suficiente. É preciso que o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) se reverta em melhoria das condições gerais de vida das pessoas, especialmente dos mais pobres. Nesse sentido, os economistas têm apontado conexão entre os gastos com investimentos públicos e a redução da pobreza (SILVA; ARAUJO, 2016, p. 96-97):

Na mesma perspectiva, Cruz, Teixeira e Braga (2010), a partir de dados anuais para o Brasil entre 1980 e 2007, desenvolveram um sistema de equações simultâneas, a fim de mensurar os efeitos de categoria de gastos públicos federais e estaduais sobre o crescimento econômico e sobre a pobreza. Os resultados mostraram que um maior nível de escolaridade, melhores condições de saúde, acréscimos na formação bruta de capital fixo, além de melhorias na infraestrutura rodoviária e energética contribuem significativamente para elevar a renda per capita da população brasileira e a produtividade total dos fatores.

Nessa linha de raciocínio, Velloso (2016, p. 119) reporta-se à conexão entre investimentos em infraestrutura e redução das desigualdades sociais:

Calderón e Servén (2004) construíram um índice de infraestrutura, agregando telecomunicações, transporte e energia, para avaliar seu impacto sobre crescimento econômico e distribuição de renda. Em ambos os casos, encontraram um impacto positivo e significante, no sentido de que a melhora na infraestrutura é capaz de aumentar a taxa de crescimento do PIB potencial e reduzir as desigualdades de renda. Esse último resultado é esperado porque, à medida que alguns serviços públicos se expandem, como eletricidade e saneamento, a tendência é atender cada vez mais à população mais pobre, beneficiando diretamente sua produtividade e bem estar.

De acordo com a estimativa dos autores, caso a infraestrutura brasileira se aproximasse do nível da Costa Rica, país com melhor infraestrutura da América Latina, nossa taxa anual de crescimento poderia aumentar 2,9%. Se a melhora fosse suficiente para atingir o nível mediano da Ásia Oriental e Pacífico, o ganho potencial seria de 4,4% na taxa anual de crescimento. O mesmo exercício permitiria reduzir a desigualdade, mensurada pelo Índice de Gini, em 6 e 9 pontos percentuais, respectivamente.

Como observa Rezende (2007, p. 316-317), os impactos positivos dos investimentos públicos na melhoria das condições de vida da população se dão em duas frentes:

Dessa forma, no caso de despesas de investimentos, é importante estabelecer uma distinção entre os efeitos diretos, que resultam dos gastos realizados durante o ano, e os efeitos redistributivos de longo prazo dos projetos. A construção de rodovias, por exemplo, pode exercer efeito direto sore a distribuição de renda pessoal, com a criação de novas oportunidades de emprego para mão de obra não especializada, e um efeito mais importante, a longo prazo, devido ao melhoramento das condições para o desenvolvimento da região onde o projeto é empreendido.

Conforme indicado, os investimentos em infraestrutura melhoram a produtividade, contribuindo para a promoção do crescimento econômico com influência na redução das desigualdades sociais e diminuição da pobreza, sendo, portanto, vetor importante para o atingimento dos objetivos da República. Por outro lado, não é preciso muito esforço para concluir no sentido do impacto positivo dos investimentos específicos na promoção de direitos fundamentais. Com efeito, é evidente que a construção de casas, escolas, creches, postos de saúde, hospitais, reservatórios de água, abrigos, equipamentos de lazer, dentre outros, impacta diretamente na fruição dos direitos fundamentais sociais (art. 6º, CF/88).

Mesmo no tocante aos direitos de primeira dimensão, a garantia deles, como já enfatizado, requer o aparelhamento de um sistema para a sua proteção. Assim, também aqui é essencial a realização de investimentos: construção e ampliação de fóruns, equipamentos militares, delegacias, batalhões de polícia e bombeiros etc.45

45 Como observa Gradvohl (2017, p. 276): “Os fortes laços que unem os direitos fundamentais,

sobretudo os de natureza prestacional, e o orçamento público restam bem nítidos, sendo este um dos motivos pelo qual o processo orçamentário é tão explorado pela Constituição Brasileira. O instrumento jurídico desenvolvido através da história para viabilizar um mínimo de planejamento – democrático – e de continuidade, no médio e longo prazos, das ações estatais, buscando equilibrar as diversas demandas com os recursos disponíveis, é o orçamento público”.

2.5 Conexão entre a promoção dos direitos fundamentais sociais e os objetivos