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Para solucionar o problema da baixa execução orçamentária das despesas discricionárias, especialmente as de investimento, geralmente se aponta como solução a adoção do modelo impositivo. De fato, como já mencionamos no capítulo 2, o sistema brasileiro tem passado por algumas modificações em direção ao orçamento impositivo – emendas constitucionais 86/15, 100/19 e 102/19. No tópico 4.1.2, exploramos este modelo conforme praticado nos Estados Unidos da América.

Na caminhada brasileira rumo à impositividade orçamentária, como já vimos, transpondo a obrigatoriedade da execução das emendas parlamentares individuais e de bancada, estabeleceu-se também um dever geral de execução das programações orçamentárias, o que poderia, em tese, levar a uma situação de proximidade ao modelo ianque.

Entretanto, para além das condicionantes que afrouxam esse dever de execução (compatibilidade com metas fiscais e inaplicabilidade no caso de existência de impedimentos de ordem técnica), há uma diferença fundamental: no modelo dos

Estados Unidos da América, tanto o adiamento quanto o cancelamento das dotações dependem de prévia autorização do Congresso Nacional. Esse traço do ordenamento norte-americano é de fato essencial para equilibrar o poder orçamentário entre o Executivo e o Legislativo e trazer a execução orçamentária para mais perto da programação. Mas seria esse modelo adequado à realidade brasileira? Examinaremos a questão neste tópico.

Não é tarefa simples (e talvez nem seja possível) fixar a ideia de que, para a realidade brasileira, seria melhor adotar ou não adotar integralmente o sistema de orçamento impositivo dos Estados Unidos da América. O que nos cumpre, nesse momento, e com as informações que colhemos ao longo da pesquisa, é apontar algumas possíveis consequências e dificuldades para se adotar esse tipo de solução. Por um lado, é verdadeiro afirmar que o orçamento autorizativo é causa do descompasso da execução das despesas em relação ao que foi planejado a título de investimentos públicos. Porém, é necessário aprofundar o tema e examinar as causas das causas, ou seja, o que realmente leva, num cenário de liberdade para realizar o gasto, o Executivo a deixar de realizar algumas despesas – a necessidade de preservação do equilíbrio fiscal; as bases em que hoje se assenta a governabilidade; a compressão realizada pelas despesas obrigatórias (conforme abordado no capítulo anterior). Transmutar o orçamento de autorizativo em impositivo, sem mexer nessas causas mais profundas, pode conduzir a uma situação de risco político-econômico- fiscal.

No capítulo anterior, vimos como os parlamentares costumam recorrer ao mecanismo de superestimar as receitas para “acomodar” suas emendas à lei orçamentária. Dessa forma, evitam o desgaste de ter que cancelar outras despesas negociadas politicamente. Ocorre que esse tipo de procedimento não é sustentável do ponto de vista financeiro e é um dos motivos que levam o Executivo a realizar contingenciamentos.

Daí que, como é óbvio, simplesmente obrigar o Executivo a executar integralmente o orçamento sem uma mudança de atitude por parte dos parlamentares tem o potencial de aumentar o nível de endividamento, uma vez que despesas deverão ser executadas sem a necessária cobertura de receitas. Poder-se-ia argumentar que a mudança para o orçamento impositivo promoveria, por si só, uma correlata mudança na perspectiva dos parlamentares, que passariam a agir com maior responsabilidade fiscal. Em nossa visão, trata-se de uma aposta com elevado risco

de resultado negativo. Na verdade, há razões para ser pessimista. Isso porque “[...] a principal distorção do orçamento (superestimação de receitas) não será eliminada. Ao contrário, poderá ser reforçada, na medida em que passará a interessar a um maior número de parlamentares” (LIMA, 2015, p. 143).

Uma forma de contornar o problema poderia ser, paralelamente à adoção do orçamento impositivo, incorporar a regra chilena de proibição de o Parlamento aumentar o montante total das despesas da proposta orçamentária, impedindo o Congresso de realizar reestimativa de receitas.

Outro ponto que merece reflexão, quando se cogita em adotar o modelo impositivo de execução do orçamento, diz respeito à manutenção da governabilidade. No capítulo anterior, vimos que um dos motivos para a realização de contingenciamentos é uma espécie de “jogo” de barganha entre o Executivo e o Legislativo. Em busca de apoios para aprovar uma agenda de interesse do Governo, o chefe do Executivo lança mão do poder “discricionário” de liberar a execução do orçamento, especialmente as emendas parlamentares.

Já apontamos os efeitos deletérios dessa prática, a qual conduz a uma situação de deficit de racionalidade na execução do orçamento. Deve-se pensar em desenvolver mecanismos para pelo menos minimizá-la. Entretanto, não parece razoável tentar resolver o problema pela via exclusivamente orçamentária. É preciso realizar um debate mais profundo acerca do nosso sistema político-eleitoral, de modo a propiciar condições legítimas de governabilidade. Sem isso, há sério risco de a adoção do sistema orçamentário impositivo conduzir a uma situação de imobilismo da gestão.110 Como adverte Lima (2003, p. 13):

Há, assim, que se ponderar os pesos das duas variáveis. Para diminuir os efeitos negativos de um possível imobilismo, seria importante que o orçamento impositivo viesse acompanhado de outras mudanças

110 Nesse sentido, Abraham (2015, p. 341), Lochagin (2016, p. 141), Menezes e Pederiva (2014, p. 14-

15). Em sentido contrário, Silva e Bittencourt (2019, p. 17-18) argumentam que os outros instrumentos à disposição do Executivo para angariar apoio político minimizam a perda de poder de barganha com a adoção do modelo impositivo: “A captação de apoios legislativos em troca de bens políticos de interesse dos parlamentares não se limita às emendas individuais, mas inclui uma “caixa de ferramentas” que abrange transferências de recursos públicos (provenientes ou não de emendas), distribuição de cargos de nível ministerial e em todos os escalões hierárquicos da administração pública, o exercício de poderes hierárquicos internos sobre o partido presidencial, e a concessão de outros favores diretos de natureza econômica ou política. Dessa forma, a simples mudança de peso relativo quando ao poder de controle sobre transferências baseadas em emendas individuais terá um efeito pouco mais que marginal na dinâmica das relações entre Poderes, pois não toca em absolutamente nada dos demais fatores de negociação que conformam a posição do Legislativo no presidencialismo de coalizão”.

institucionais, tais como, a reforma política e a eleitoral. Por meio delas, apoios que formassem maioria no Congresso Nacional poderiam ser obtidos independentemente de execução maior ou menor de emendas dos parlamentares ao orçamento. Com efeito, se um partido está apoiando o governo, este conta com aqueles votos, independentemente de barganhas pontuais. É o resultado da disciplina partidária.

Além disso, reportando-nos novamente ao capítulo anterior, verificamos que as despesas obrigatórias exercem uma forte compressão sobre as discricionárias. Buscar resolver o problema da baixa execução orçamentária destas (incluídas as despesas de investimento) pela pura e simples adoção do sistema impositivo, sem realizar uma adequada revisão das despesas obrigatórias, não parece ser razoável do ponto de vista da sustentabilidade fiscal.111 Ademais, haveria forte probabilidade de ultrapassar de forma precoce o teto dos gastos públicos estabelecido pela EC 95/16 (ver discussão sobre a tendência de ultrapassagem do teto dos gastos em razão do crescimento das despesas obrigatórias no tópico 3.1.2.2.1).

Por esses motivos, discordamos da ideia de que a solução para o problema central dessa tese – a baixa execução das despesas orçamentárias de investimentos públicos – seja a adoção pura e simples do orçamento impositivo nos moldes do paradigma norte-americano. Se, porém, funciona nos EUA112, por que não poderia dar certo no Brasil?

É difícil indicar com precisão os motivos pelos quais o modelo impositivo se harmoniza à realidade dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente a noção de que o sistema de execução orçamentária foi forjado em torno das específicas circunstâncias históricas daquela Nação, culminando no sistema atual.113

111 Corroborando esse argumento, observam Menezes e Pederiva (2014, p. 17): “Outro

aperfeiçoamento necessário é a avaliação da qualidade do gasto referente às despesas obrigatórias. Conforme lecionam Santa Helena et al. (2010), os gastos obrigatórios, embora representem cerca de 90% dos gastos primários do governo federal, não são submetidos à avaliação periódica de oportunidade e conveniência que o processo orçamentário anual exige das despesas discricionárias. Portanto, a realização da avaliação periódica das despesas obrigatórias, essa sim, deveria ser imperativa.”

112 Vale ressaltar que o sistema orçamentário dos EUA também apresenta consideráveis problemas,

conforme conclui estudo da OECD (1996, p. 190) sobre orçamento e políticas públicas: “The system

is inherently conservative in that it is difficult to make sudden changes in policy direction, even in response to what some might see as evidence of a shift in the public consensus. The involvement of many participants in the policy processes, each of whom has the power to block action, usually leads to negotiation and compromise with the outcome being a policy for which there is broad support. But this is not inevitable. If major participants harden their positions and refuse to compromise, the result can be an impasse with potentially troubling effects for the government and

the nation”.

113 Como observa Lochagin (2016, p. 135): “Nos Estados Unidos, as prerrogativas parlamentares sobre

o orçamento tiveram que ser tao defendidas em 1974 como o foram em 1774. Mas pela razão oposta: duzentos anos antes, o congresso conquistara suas competências orçamentarias para se

Ademais, há algumas diferenças importantes entre o sistema político de lá e o brasileiro, que nos dão indícios de que o modelo impositivo de orçamento tende a se amoldar mais à realidade dos EUA. Uma delas é que, diferentemente do Brasil, o sistema político norte-americano é praticamente bipartidário, dada a grande hegemonia dos partidos Republicano e Democrata. Sem haver a pulverização de partidos com os quais o Presidente tem que lidar para formar uma coalizão, como na realidade brasileira, há boas razões para vislumbrar que o contingenciamento orçamentário não tem tanta força para garantir a governabilidade no âmbito político daquele País.114

Outro ponto relevante é que a forte independência que o Parlamento dos EUA possui para interferir na proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo é uma situação única no mundo (OECD, 1996, p. 177). Conforme aponta relatório da OECD (1996, p. 183) sobre orçamento e políticas públicas:

Congress can approve, modify, or disapprove the President's budget proposals. It can change funding levels, eliminate programmes, or add programmes not requested by the President. It can enact statutes affecting taxes and other sources of receipts as proposed by the President, or may refuse to do so, or it may enact proposals of its own design with the same or different effect on revenues.

Assim, dada uma participação mais efetiva do Parlamento no processo de formatação da proposta orçamentária, há uma tendência de, no final das contas, torná-lo mais responsável pelo que aprova. Há boas razões para vislumbrar que isso leva a uma maior co-responsabilidade entre Executivo e Legislativo na sustentabilidade fiscal do orçamento a ser aprovado. No Brasil, conforme observamos no capítulo 3, a preocupação maior dos Congressistas tem sido inflar artificialmente a projeção de receitas do projeto de LOA do Executivo com vistas a acomodar propostas de emendas individuais e de bancada, sem maiores preocupações com a responsabilidade fiscal.

Portanto, embora vejamos méritos no sistema de execução orçamentária dos Estados Unidos, as peculiaridades acima expostas apontam no sentido de que a

contrapor as ameaças de um Executivo que poderia gastar demais. O desafio contemporâneo, porem, era o de criar condições de contrabalançar o poder de um chefe de governo que quer gastar pouco e que desafia o Poder Legislativo (ou, como diriam os próprios parlamentares, o povo por ele representado). Os remédios, portanto, teriam que ser diferentes. A ênfase passaria a ser dada nos instrumentos parlamentares de participação na execução do orçamento, e não apenas na fase de elaboração, o que criou uma nova divisão de funções no ciclo orçamentário.”

adoção pura e simples do sistema impositivo no Brasil tenderia a promover, de um lado, grandes dificuldades de manutenção da governabilidade e, de outro, desequilíbrio fiscal, além de tornar ainda mais engessado aquele que é considerado o orçamento com maior rigidez na América Latina (ver tópico 2.1).

Não obstante, conforme já mencionamos, recentemente foram aprovadas emendas constitucionais que tornam obrigatória a execução de emendas parlamentares individuais e de bancada115 – ECs 86/15 e 100/19, respectivamente. Percebe-se um movimento de migração para um modelo de orçamento impositivo. Esse caminho, entretanto, tem sido alvo de fortes e bem fundamentadas críticas.

Silva e Bittencourt (2019, p. 13) apontam graves problemas ainda na fase de aprovação das emendas individuais. Como o § 9º do art. 166, incluído pela EC 86/15 estabelece que, respeitado o limite de 1,2% da receita corrente líquida prevista no projeto enviado pelo Executivo (com metade desse montante destinado a ações e serviços públicos de saúde), as emendas individuais ao orçamento serão aprovadas, isso retira dos representantes eleitos pelo povo – o Presidente da República que envia o projeto de LOA e o conjunto de parlamentares que a aprova por maioria – o poder- dever de deliberar sobre a conveniência e oportunidade dessa parcela das despesas públicas, transferindo-o ao parlamentar individualmente. Tal poder não era conferido individualmente a ninguém pela Constituição, o que, com a mudança, pode dar ensejo a abusos.

Outro problema apontado pelos autores é o risco de fortalecer as chamadas “janelas orçamentárias”, que consistem na veiculação de programações de trabalho cujo objeto é bem mais elevado do que o valor orçado. Como a aprovação da emenda é obrigatória e, depois, a sua execução será impositiva, “[...] está-se diante de uma certeza de obras inacabadas e desperdício, já que os valores da emenda não são suficientes para a conclusão da obra ou mesmo de qualquer de suas etapas” (SILVA; BITTENCOURT, 2019, p. 13).

Sob outra perspectiva, Mendes (2019, par. 12) dirigiu críticas à obrigatoriedade de aprovação das emendas parlamentares de bancada (argumentos

115 É bem verdade que a EC 100/19 veiculou o § 10 no art. 165, estabelecendo, a princípio, um dever

geral de execução de todas as programações orçamentárias. Como já mencionamos no capítulo 1, as condicionantes para a aplicação do dispositivo inscritas no § 11 do mesmo artigo, veiculado pela EC 102/19, enfraquecem ou, pelo menos, tornam de prática duvidosa a mencionada interpretação. O tema será retomado mais adiante, ainda neste módulo.

perfeitamente utilizáveis também em face das emendas individuais) nos seguintes termos:

Em primeiro lugar, há uma tendência à pulverização dos recursos em pequenas intervenções, em prejuízo de obras estruturantes. Em segundo lugar, não é simples coordenar a ação de 513 deputados e 81 senadores propondo milhares de investimentos distintos. Não são poucos os casos de prefeitos que “recebem um hospital” que não é necessário e que não têm verba para manter; de escolas agrícolas que, em vez de um, recebem três equipamentos iguais. Ou de tomógrafos que sequer saem da caixa porque o município não tem condições de construir um prédio nas especificações adequadas para a operação do aparelho. Em terceiro lugar, as iniciativas não são sujeitas a prévia avaliação de custo-benefício ou avaliação de viabilidade técnica e econômica. Muitas vezes inicia-se uma obra sem os projetos adequados, o que leva à paralisação e estouro dos custos previstos.

Para minimizar o problema da obrigatoriedade de aprovação e execução das emendas parlamentares, o economista propôs que fossem obrigatórias apenas as emendas que acrescentassem recursos a dotações já existentes na proposta orçamentária do Executivo, ou para investimentos que constassem de um banco de projetos, o qual já dispusesse de todos os elementos necessários para atestar a viabilidade e adequada relação custo-benefício da obra: projeto executivo, certificado de adequação ambiental e demais requisitos técnicos (MENDES, 2019).

Nessa esteira, a EC 102/19 incluiu o § 15 no art. 165 da CF/88, estabelecendo que:

A União organizará e manterá registro centralizado de projetos de investimento contendo, por Estado ou Distrito Federal, pelo menos, análises de viabilidade, estimativas de custos e informações sobre a execução física e financeira. (BRASIL, 1988, art. 165, § 15).

Embora haja um avanço em face da omissão na EC 100/19, o referido dispositivo se distancia da proposta de Mendes (2019) na medida em que não estabelece a obrigatoriedade de as propostas de emendas parlamentares estarem ligadas ao registro de projetos. Trata-se apenas de uma referência. Não há qualquer garantia de que os parlamentares irão segui-lo.

Pelo exposto, concluímos que se, por um lado, não parece desejável a adoção pura e simples do modelo impositivo de orçamento sem corrigir distorções que têm origem no próprio sistema político-eleitoral, por outro, o caminho que vem trilhando o País em sucessivas mudanças constitucionais atribuindo caráter impositivo a determinadas parcelas do orçamento, não parece ter o condão de contribuir para o aprimoramento da qualidade do gasto público.