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A consciência de si como chave do problema da metafísica

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 153-158)

Capítulo IV: A metafísica da natureza

IV.1 A consciência de si como chave do problema da metafísica

O que é que a metafísica (da natureza) de Schopenhauer se destina a descobrir? Podemos, à laia de introdução, dizer que se trata de saber o que é o mundo independentemente de ser representação do sujeito. Ora, Schopenhauer entende esta pergunta como a pergunta pela coisa em si. Definida de um modo formal, a coisa em si é aquilo que aparece, que se manifesta, considerado independentemente do facto de aparecer e, por conseguinte, da forma deste aparecer. Como vimos, para além da forma da consciência – a relação entre sujeito e objecto – fazem parte da forma do aparecimento da coisa em si aquelas propriedades que definem um objecto em geral: o

4 “(…) die eigentliche Metaphysik (…), also jene paradoxe Grundwarheit, daß das, was Kant als Ding an

sich der bloßen Erscheinung, von mir entschiedener Vorstellung gennant, entgegensetze und für schlechthin unerkennbar hielt, daß, sage ich, dieses Ding an sich, dieses Substrat aller Erscheinungen, mithin der ganzen Natur, nichts Anderes ist, als jenes uns unmittelbar Bekannte und sehr genau Vertraute, was wir im Innern unsers eigenen Selbst als Willen finden (…)” (N, 2)

5 Schopenhauer caracteriza explicitamente a sua filosofia como um pensar da filosofia de Kant até ao seu

termo, “das zu-Ende-denken der Kantischen Philosophie”. Cf. W I, 595; N, 14; P I, 142; Br 277 an Julius Frauenstädt.

facto de ocupar algum espaço, de se situar no tempo e de se encontrar em relações causais com outros objectos.

A noção formal de coisa em si tem, desde logo, implicações relativamente ao método a seguir para chegar ao seu conhecimento. Visto que está excluído que a coisa em si tenha a natureza de um objecto – ela é até, como Schopenhauer repete inúmeras vezes, algo totalmente diferente, totalmente outro relativamente a todo o objecto – o método para chegar ao seu conhecimento tem também de ser completamente diferente daquele a que Schopenhauer chama o método objectivo6. “Método objectivo” não designa aqui apenas o método usado pelas ciências, em particular por aquele tipo de ciências a que Schopenhauer chama “etiológicas”, isto é, as ciências que explicam os fenómenos reconduzindo-os às suas causas. Ele designa também todo o tipo de filosofia que faça uso de alguma das formas do princípio da razão suficiente como fio condutor para explicar a realidade no seu todo. Por exemplo, toda a metafísica que pretenda explicar o mundo como produto de uma criação divina.

O caminho alternativo ao "método objectivo" que Schopenhauer propõe para conhecer a coisa em si implica, portanto, uma mudança de perspectiva. É necessário abandonar o ponto de vista objectivo e tomar o sujeito como ponto de partida da investigação. No entanto, quando se fala aqui do sujeito como ponto de partida da metafísica, a noção de sujeito que é relevante aqui não é a do sujeito cognoscente7. A "ligação secreta" (W II, 219) que nos leva para lá do fenómeno está, aliás, intrinsecamente ligada ao facto de o sujeito não ser meramente cognoscente:

Na verdade, nunca seria possível encontrar o significado procurado do mundo meramente como representação que está perante mim ou a transição do mundo como mera representação do sujeito cognoscente para o que ele possa ser para além disso se o

6 Cf. G, 83; W I, 41, 118; W II, 12-3, 14, 218, 309, 402, 596; P I: 20-1, 83, 99-100.

7 Ao contrário do que defende Young (1987: 49-50; 2005: 61), não se trata apenas de trocarmos o ponto

de vista objectivo pelo subjectivo. Visto que considera que o idealismo é irrelevante no segundo livro de

O mundo como vontade e representação, e a tarefa da metafísica como a de completar a “imagem científica do mundo”, Young interpreta a passagem do sujeito puro do conhecimento para o sujeito

embodied como a passagem do ponto de vista objectivo para o subjectivo. No entanto, a mudança de ponto de vista aqui em causa não é tão simples como Young a descreve. O ponto de vista do primeiro livro não é, sem mais, o ponto de vista do cientista, o ponto de vista objectivo. O primeiro livro envolve também o ponto de vista subjectivo. A grande mudança de perspectiva em causa na transição do primeiro para o segundo livro é, antes, a passagem de um ponto de vista desenraizado do mundo, desinteressado, que é o ponto de vista do idealismo, para o ponto de vista do agente.

investigador não fosse mais do que o sujeito puramente cognoscente (uma cabeça de anjo alada sem corpo) 8. (W I, 118)

Por outras palavras, só é possível dizer o que é o mundo para além de ser representação pelo facto de a nossa relação com ele não ser meramente cognitiva, isto é, por não sermos sujeitos exteriores a ele. Nós próprios, dado que cada um de nós é também um corpo, fazemos parte do mundo do qual queremos descobrir a essência. Quer dizer, só é possível responder à pergunta pela coisa em si, porque o meu corpo não é, para mim, uma mera representação, um "objecto entre objectos". De facto, como já vimos no capítulo anterior, não estou consciente do meu corpo apenas como representação. Disponho também de um acesso subjectivo a esse mesmo corpo como vontade: a actividade do meu corpo é distinta da de todos os outros corpos, na medida em que é caracterizada pelo facto de eu, por assim dizer, a querer:

Este corpo é, para o sujeito puramente cognoscente, uma representação como qualquer outra, um objecto entre objectos: nessa medida, ele conhece os seus movimentos e acções do mesmo modo que as modificações de todos os outros objectos da intuição, e eles seriam igualmente estranhos e incompreensíveis para ele, caso o seu significado não lhe fosse decifrado de um modo totalmente diferente. Senão ele veria a sua acção seguir-se aos motivos que lhe são apresentados com a constância de uma lei da natureza, precisamente como as modificações de todos os outros objectos se seguem a causas, estímulos e motivos. Ele não compreenderia melhor a influência dos motivos do que a ligação de qualquer outro efeito que ocorra perante si com a respectiva causa. Ele poderia, então, chamar à natureza interna, incompreensível para ele, daquelas manifestações e acções do seu corpo, uma força, uma qualidade ou um carácter, como lhe aprouvesse, mas não teria uma melhor compreensão disso. Contudo, não é isto que sucede. Antes pelo contrário, a solução do enigma está dada ao sujeito cognoscente que

8 “In der That würde die nachgeforschte Bedeutung der mir lediglich als meine Vorstellung

gegenüberstehenden Welt, oder der Uebergang von ihr, als bloßer Vorstellung des erkennenden Subjekts, zu dem, was sie noch außerdem seyn mag, nimmermehr zu finden seyn, wenn der Forscher selbst nichts weiter als das rein erkennende Subjekt (geflügelter Engelskopf ohne Leib) wäre”. Cf. ainda W II, 218-9 onde Schopenhauer caracteriza o facto de não sermos apenas o sujeito cognoscente como um “contrapeso” ao ponto de vista idealista (identificado aqui como o de Kant): “Diesem allen zufolge wird man auf dem Wege der objektiven Erkenntniß, mithin von der Vorstellung ausgehend, nie über die Vorstellung, d.i. die Erscheinung, hinausgelangen, wird also bei der Außenseite der Dinge stehen bleiben, nie aber in ihr Inneres dringen und erforschen können, was sie an sich selbst, d.h. für sich selbst, seyn mögen. So weit stimme ich mit Kant überein. Nun aber habe ich, als Gegengewicht dieser Wahrheit, jene andere hervorgehoben, daß wir nicht bloß das erkennende Subjekt sind, sondern andererseits auch selbst zu den zu erkennenden Wesen gehören, selbst das Ding an sich sind (...).” Cf. ainda, para além dos passos citados, W I, 516-7, 596; P I, 86.

se apresenta como indivíduo: ela chama-se vontade. É esta, e apenas esta, que lhe dá a chave do seu próprio fenómeno, lhe revela o significado, lhe mostra o mecanismo interno do seu ser, do seu agir, dos seus movimentos.9 (W I, 119)10

É necessário ter em atenção que a consciência de que a actividade do meu corpo é a manifestação da minha vontade não é ainda o conhecimento da coisa em si. Por exemplo, segundo Janaway (1989: 197), o argumento que sustenta a identificação da coisa em si com a vontade não vai para além daquilo que supostamente é dado na consciência interna. Tudo o resto seria uma tentativa de corroboração empírica. Aliás, na próxima secção, vamos, precisamente, mostrar que o argumento que leva à “coisa em si”, num sentido ainda a qualificar, é um pouco mais complexo. Desde logo, como vimos no capítulo anterior, o acesso à vontade não é totalmente imediato. Não conhecemos a vontade ou o carácter como um todo, mas sim na sucessão dos seus actos. Por outras palavras, a despeito do carácter imediato que Schopenhauer lhe atribui em alguns passos, a vontade é sempre já também um objecto, e a consciência interna é uma forma de consciência mediada pela forma geral da relação sujeito-objecto e pelo tempo. Isto implica que, na consciência de si, não haja nenhum conhecimento directo da coisa em si:

Por conseguinte, neste conhecimento interno a coisa em si retirou, em grande parte, o seu véu, mas não se apresenta ainda totalmente despida. Em consequência da forma do

9 “Dieser Leib ist dem rein erkennenden Subjekt als solchem eine Vorstellung wie jede andere, ein Objekt

unter Objekten: die Bewegungen, die Aktionen desselben sind ihm in soweit nicht anders, als wie die Veränderungen aller anderen anschaulichen Objekte bekannt, und wären ihm ebenso fremd und unverständlich, wenn die Bedeutung derselben ihm nicht etwan auf eine ganz andere Art enträthselt wäre. Sonst sähe er sein Handeln auf dargebotene Motive mit der Konstanz eines Naturgesetzes erfolgen, eben wie die Veränderungen anderer Objekte auf Ursachen, Reize, Motive. Er würde aber den Einfluß der Motive nicht näher verstehen, als die Verbindung jeder andern ihm erscheinenden Wirkung mit ihrer Ursache. Er würde dann das innere, ihm unverständliche Wesen jener Aeußerungen und Handlungen seines Leibes, eben auch eine Kraft, eine Qualität, oder einen Charakter, nach Belieben, nennen, aber weiter keine Einsicht darin haben. Diesem allen nun aber ist nicht so: vielmehr ist dem als Individuum erscheinenden Subjekt des Erkennens das Wort des Räthsels gegeben: und dieses Wort heißt Wille. Dieses, und dieses allein, giebt ihm den Schlüssel zu seiner eigenen Erscheinung, offenbart ihm die Bedeutung, zeigt ihm das innere Getriebe seines Wesens, seines Thuns, seiner Bewegungen.”

10 O apelo a esta consciência subjectiva da acção não significa que, como defende, por exemplo Atwell

(1995: 51-2, 92-3), que a pergunta de Schopenhauer diga respeito a um outro modo de acesso ao mundo, que não o cognitivo. Julgamos que esta leitura leva longe de mais aquilo que está em causa na mudança de perspectiva do livro II. O facto de o ponto de partida da metafísica só se tornar acessível de um modo não cognitivo, e, portanto, a metafísica ser possível apenas porque dispomos desse outro modo de acesso ao mundo, não implica que o seu objecto e finalidade tenham que ver primariamente e apenas com a dimensão do mundo que não cai sob a cognição. Isto é, como vamos ver, o empreendimento metafísico exige uma objectificação e, portanto, uma cognição, ainda que muito particular, desse lado do mundo que não é representação.

tempo a que ainda está associada, cada um conhece a sua vontade apenas nos seus sucessivos actos particulares, mas não no seu todo, em si e por si; por isso ninguém conhece a priori o seu carácter, sendo este conhecido somente de forma empírica e sempre incompleta. Contudo, no conhecimento das agitações e actos da nossa própria vontade, a percepção é de longe mais imediata que qualquer outra; ela é o ponto onde a coisa em si surge da forma mais imediata possível no fenómeno e onde é iluminada com maior proximidade pelo sujeito cognoscente (…).11 (W II, 220-1)

Na verdade, a consciência imediata da vontade funciona apenas como uma chave para a descoberta da coisa em si. Esta chave é usada, num primeiro momento, para estabelecer a identificação do corpo, isto é, do organismo, com a vontade como um todo. Como vimos no capítulo anterior, o que é dado do ponto de vista subjectivo e, portanto, de uma forma mais imediata, não é a identidade entre o corpo e vontade como um todo, mas apenas a identidade entre os actos particulares de vontade e as acções do corpo. O estabelecimento desta última identidade não é, portanto, um dado imediato da consciência12. Pelo contrário, ela resulta de um primeiro momento de reflexão ocasionado precisamente pela consciência da identidade entre os actos da vontade e do corpo. Como sabemos, é a partir desta consciência que a identidade entre a vontade como um todo e o corpo é inferida (cf. supra, cap. III). Mas este é apenas o segundo

11 “Demnach hat in dieser innern Erkenntnis das Ding an sich seine Schleier zwar großen Theils

abgeworfenen, tritt aber doch noch nicht ganz nackt auf. In Folge der ihm noch anhängenden Form der

Zeit erkennt Jeder seinen Willen nur in dessen successiven einzelnen Akten, nicht aber im Ganzen, an und für sich: daher eben Keiner seinen Charakter a priori kennt, sondern ihn erst erfahrungsmäßig und stets unvollkommen kennen lernt. Aber demnach ist die Wahrnehmung, indem wir die Regungen und Akte des eignen Willens erkennen, bei Weitem unmittelbarer, als jede andere: sie ist der Punkt, wo das Ding an sich am unmittelbarsten in die Erscheinung tritt, und in größter Nähe vom erkennenden Subjekt beleuchtet wird (…).” Cf. P II, 98-9, onde Schopenhauer repete a mesma ideia em termos mais fisiológicos: “Alles Verstehn ist ein Akt des Vorstellens, bleibt daher wesentlich auf dem Gebiete der Vorstellung: da nun diese nur Erscheinungen liefert, ist es auf die Erscheinung beschränkt. Wo das Ding an sich anfängt, hört die Erscheinung auf, folglich auch die Vorstellung, und mit dieser das Verstehn. An dessen Stelle tritt aber hier das Seyende selbst, welches sich seiner bewußt wird als Wille. Wäre dieses Sichbewußtwerden ein unmittelbares; so hätten wir eine völlig adäquate Erkenntniß des Dinges an sich. Weil es aber dadurch vermittelt ist, daß der Wille den organischen Leib und, mittelst eines Theiles desselben, sich einen Intellekt schafft, dann aber erst durch diesen sich im Selbstbewußtseyn als Willen findet und erkennt; so ist diese Erkenntniß des Dinges an sich erstlich durch das darin schon enthaltene Auseinandertreten eines Erkennenden und eines Erkannten und sodann durch die vom cerebralen Selbstbewußtseyn unzertrennliche Form der Zeit bedingt, daher also nicht völlig erschöpfend und adäquat.”

12 Segundo Malter (1991: 215ss.), a experiência imediata da consciência de si não nos diz nada

relativamente à coisa em si. Esta experiência necessita ser interpretada pela razão, que introduz, para esse efeito, o par conceptual coisa em si-fenómeno. Welsen (1995: 274-5) defende também que a transição da vontade individual para a vontade como coisa em si não se apoia unicamente em dados sensíveis, mas, precisamente na reflexão.

passo no caminho da descoberta da vontade como coisa em si13. É necessário ainda “transferir” este conhecimento para os restantes corpos, diferentes do nosso, e, portanto, pensá-los por analogia com ele: por um lado, como representação, por outro lado, como vontade. É este argumento por analogia que vamos passar a analisar.

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 153-158)