• Nenhum resultado encontrado

Matéria, causalidade e substância

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 60-64)

Capítulo I: Teoria do conhecimento

I.4 O entendimento e o complexo de objectos espácio-temporais

I.4.4 Matéria, causalidade e substância

O mundo empírico objectivo caracteriza-se, por contraste com a mera sucessão de sensações, por apresentar um elemento de permanência. Como vimos, mesmo a representação da mudança dos objectos só é possível através do seu contraste com o que é permanente. A reunião do espaço e do tempo concilia precisamente o fluxo temporal com a rigidez e fixidez do espaço, gerando a representação do permanente em mudança. Segundo Schopenhauer, o elemento de permanência no mundo empírico corresponde à matéria. Esta é representada, precisamente, como aquilo que permanece sempre o mesmo no decorrer de todas as mudanças. Deste ponto de vista, Schopenhauer diz, por vezes, que a representação da matéria está na origem do conceito de substância; aliás, outras vezes, diz mesmo que a matéria é a substância93.

Ora, uma vez que Schopenhauer pretende que a causalidade seja suficiente para gerar a representação de um mundo exterior, a causalidade tem de ser suficiente para gerar a representação da matéria e, consequentemente, da substância. Na verdade, segundo Schopenhauer, a matéria não é

nada senão causalidade, algo de que qualquer um se apercebe imediatamente desde que reflicta. O seu ser é a sua acção [Wirken94]: nenhuma outra natureza da matéria é sequer

pensável. É apenas ao agir [nur als wirkend] que ela preenche o tempo e o espaço: a sua acção [Einwirkung] sobre o objecto imediato (que é, ele mesmo, matéria) condiciona [bedingt] a percepção intuitiva [Anschauung] na qual unicamente ela existe: a sequência da acção [Einwirkung] de cada um dos objectos materiais sobre outro é somente conhecida contanto que o último, agora de modo diferente do que anteriormente, aja sobre o objecto imediato, [a sequência] consiste apenas nisso. Causa e efeito constituem, portanto, toda a essência da matéria: o seu ser é a sua acção.95 (W I, 10)

93 G, 30, 43, 83, 110; W I, 12, 543-544, 561, 580, 581ss.; W II, 55, Praedicabilia a priori der Materie,

346-7, 351, 354; P I, 75, 106; P II, 114.

94 Wirken poderia também ser traduzido por “ter-efeito” ou, mesmo, “produzir-efeitos”, pois, como vamos

ver, Schopenhauer identifica o conceito de Wirken com o de causalidade. Preferimos, no entanto, traduzir por “acção” para manter a relação com o substantivo Wirksamkeit, que traduziremos por “actividade”.

95“(...) durch und durch nichts als Kausalität welches Jeder unmittelbar einsieht, sobald er sich besinnt.

Ihr Seyn nämlich ist ihr Wirken: kein anderes Seyn derselben ist auch nur zu denken möglich. Nur als wirkend füllt sie den Raum, füllt sie die Zeit: ihre Einwirkung auf das unmittelbare Objekt (das selbst Materie ist) bedingt die Anschauung, in der sie allein existiert: die Folge der Einwirkung jedes andern materiellen Objekts auf ein anderes wird nur erkannt, sofern das letztere jetzt anders als zuvor auf das unmittelbare Objekt einwirkt, besteht nur darin. Ursache und Wirkung ist also das ganze Wesen der Materie: ihr Seyn ist ihr Wirken.”

Por outras palavras, só há cognição de um corpo por ele afectar o nosso próprio corpo. Os objectos que não afectam o nosso corpo de forma directa têm de manifestar a sua existência de forma indirecta, através do seu efeito sobre outro corpo ou corpos que, por sua vez, afectem directamente o nosso. Isto é, todo o conhecimento que temos de outros corpos tem de poder ser reconduzido, através de uma cadeia mais ou menos longa de causas e efeitos, à percepção directa de algum corpo. E, visto que a percepção directa de um corpo só se pode processar através do efeito que ele tem sobre o nosso próprio corpo, as propriedades materiais dos corpos podem ser reduzidas aos vários tipos de efeitos (Wirkungsarten) que têm sobre ele: “Pois, quando digo ‘este corpo é pesado, duro, líquido, verde, ácido, alcalino, orgânico, etc.’, isso designa sempre a sua acção [Wirken] (…).”96 (W I, 543). A matéria é, portanto, socorrendo-nos de uma

formulação de Nietzsche, a soma dos seus efeitos97.

Ora, esta última concepção de matéria é correlativa à concepção do sujeito cognoscente como um indivíduo percipiente corporizado: a matéria seria redutível à minha percepção individual dos corpos. Esta concepção de matéria põe em risco, no entanto, a própria noção de objectividade e de substancialidade. Talvez por esse motivo, a concepção de matéria de Schopenhauer não se esgota na que acabámos de ver.

De facto, se, por vezes, Schopenhauer identifica a matéria com os efeitos causais e, em particular, os efeitos causais sobre o corpo do sujeito percipiente, outras vezes, a matéria é identificada como aquilo que subjaz às relações causais. É, aliás, neste sentido, que a matéria é, como dissemos no início desta secção, o que permanece na mudança.

Portanto, a identificação da matéria com o conceito de acção [Wirken] ou de causalidade parece contradizer precisamente a ideia de substancialidade da matéria. Assim, se Schopenhauer fosse consequente com a identificação entre matéria e

96“Denn, wenn ich sage ‘Dieser Körper ist schwer, hart, flüssig, grün, sauer, alkälisch, organisch u. s.

w.’; so bezeichnet dies immer sein Wirken (...).”

97A ideia de que “Sein=Wirken”, isto é, que os objectos se esgotam nos efeitos que produzem sobre

outros, em particular, sobre o nosso corpo, pode ter estado na origem da ideia de Nietzsche de que uma coisa é a “soma dos seus efeitos”. Esta ideia aparece na obra publicada de Nietzsche no quadro de um ataque à ideia de livre-arbítrio, isto é, de que há um sujeito último por trás dos nossos actos e diferente destes: “Aber es giebt kein solches Substrat; es giebt kein ‘Sein’ hinter dem Thun, Wirken, Werden; ‘der Thäter’ ist zum Thun bloss hinzugedichtet, - das Thun ist Alles” (GM I, 13). No espólio, Nietzsche estende esta ideia a todo o tipo de coisas e não só aos agentes humanos: “(…) ein ‘Ding’ ist eine Summe

seiner Wirkungen, synthetisch gebunden durch einen Begriff, Bild…” (NL 14[98], KSA 13.274). Ainda noutro passo do espólio, Nietzsche diz explicitamente que os efeitos, em que consistem as coisas, não são outra coisa senão os estímulos que elas produzem em nós: “Zuletzt begreifen wir: ein Ding ist eine Summe von Erregungen in uns (…)” (NL 10[F100], KSA 9.437).

causalidade, teria de ser necessariamente levado à negação de que a matéria é substância. Não é, no entanto, isso que sucede, pois a rejeição do conceito de matéria como substância implicaria a negação daquilo que Schopenhauer vê como distintivo da noção de realidade empírica – o facto de reunir o espaço e o tempo e não ser uma experiência meramente subjectiva da sucessão dos estados do meu corpo no tempo, a que corresponderia precisamente a matéria reduzida a uma série de “efeitos”, de “modos de agir”.

A tensão entre estas duas concepções de matéria leva Schopenhauer a usar outra estratégia para estabelecer a matéria como sendo simultaneamente acção, causalidade e substância.

Em primeiro lugar, Schopenhauer cria um outro conceito de matéria: a matéria pura. A matéria dada empiricamente passa a ser designada como “material” (Stoff) (W II, 53). Ao contrário do “material”, a matéria pura não é um objecto da percepção, mas sim do pensamento. Ela só pode ser pensada, pois “na percepção intuitiva aparece sempre como forma e qualidade”98. Refira-se que a matéria como algo pensado não

pode ser entendida como espacial ou temporal nem possui atributos espácio-temporais, como a impenetrabilidade ou a divisibilidade infinita (W II, 55), que inerem à matéria como reunião do espaço e do tempo, excepto a permanência99.

Segundo Schopenhauer, a matéria pura, sem forma e qualidade, corresponde, precisamente, à abstracção de todos os modos particulares de causalidade. Ela é, portanto, a causalidade em geral:

(…) através do conceito de matéria pensamos aquilo que resta dos corpos quando os despimos das suas formas e de todas as qualidades que lhes são específicas e que, precisamente por isso, tem de ser igual em todos os corpos, tem de ser uma e a mesma coisa. Aquelas formas e qualidades, por nós removidas, não são, porém, outra coisa senão modos de agir particulares e específicos dos corpos que constituem precisamente

98 W I, 582: “(…), da sie der Anschauung immer schon in Form und Qualität erscheint.” Cf. também W

II, 53. A este propósito cf. Koßler, 1990: 100.

99 Segundo Welsen (1995: 202ss.), a distinção entre matéria (Materie) e material (Stoff) serve para

conciliar o facto de a matéria ser ao mesmo tempo o conteúdo empírico da percepção com o facto de a matéria ser uma representação a priori. No entanto, Welsen defende que a ideia de matéria pura é inconsistente com o predicado da permanência, que pertenceria à matéria apenas como objecto da percepção. Na nossa perspectiva, esta dificuldade pode ser removida se tomarmos a matéria percepcionada empiricamente como aquilo que dá sentido ao conceito abstracto de matéria. Já em Kant se encontrava a ideia de que a categoria de substância significa apenas aquilo que só pode ser sujeito e nunca predicado. Só que para Kant esta categoria como pura determinação lógica é completamente vazia. Somente a representação da permanência no tempo dá sentido ao conceito lógico de sujeito (KrV, B 300ss./A 242ss.).

a diferença entre eles. Por isso, quando abstraímos delas, o que resta é a mera actividade

em geral, o puro agir como tal, a causalidade pensada objectivamente, - por conseguinte, o reflexo do nosso próprio entendimento, a imagem projectada exteriormente da sua única função (…)100.

Deste modo, Schopenhauer faz que a matéria se evapore numa abstracção, num conceito, a “actividade em geral”.101 A concepção da matéria como conceito abstracto é

a saída que Schopenhauer encontra para explicar que a matéria é simultaneamente acção (Wirken) e substância: “Uma vez que ‘substância’ é a mesma coisa que a matéria, pode- se dizer: substância é o agir apreendido in abstracto; acidente, o modo particular de agir, o agir in concreto”102 (G, 83).

A ideia de uma actividade ou causalidade em geral corresponde à ideia de um objecto da percepção em geral. Embora Schopenhauer nunca o explicite, o conceito de matéria pura desempenha, no fundo, a mesma função que o objecto transcendental em Kant. Pois é a referência das nossas representações à matéria, como seu correlato idêntico e permanente, que lhes proporciona o seu carácter de objectividade. Aliás, Schopenhauer entende a matéria pura como o correlato do sujeito cognoscente; um objecto concebido independentemente de todas as suas propriedades possíveis:

Se privarmos o sujeito de todas as determinações e formas da sua cognição, desaparecem no objecto todas as propriedades e nada resta excepto a matéria sem forma

e qualidade (...).103

100 G, 82: (...) unter dem Begriff der Materie denken wir Das, was von der Körpern noch übrig bleibt,

wenn wir sie von ihrer Form und allen ihnen specifischen Qualitäten entkleiden, welches eben deshalb in allen Körpern ganz gleich, Eins und das Selbe seyn muß. Jene von uns aufgehobenen Formen und Qualitäten nun aber sind nichts Anderes, als die besondere und speciell bestimmte Wirkungsart der Körper, welche eben die Verschiedenheit derselben ausmacht. Daher ist, wenn wir davon absehen, das dann noch Übrigbleibende die bloße Wirksamkeit überhaupt, das reine Wirken als solches, die Kausalität selbst, objektiv gedacht, - also der Widerschein unsers eigenen Verstandes, das nach außen projicirte Bild seiner alleinigen Funktion (...).” Cf. ainda W II, 52-53.

101 É caso para perguntar o que é que ainda pode restar se abstrairmos de todos os modos de acção dos

objectos sobre o nosso corpo, de todas as qualidades sensíveis, que não esteja já contido nos particulares, ainda para mais quando, segundo a teoria da abstracção de Schopenhauer, todo o conteúdo dos conceitos tem a sua origem na percepção intuitiva (cf. infra, I.5). Koßler (1990: 104) faz a mesma objecção.

102 “Da ferner ‘Substanz’ identisch ist mit Materie, so kann man sagen: Substanz ist das Wirken in

abstracto aufgefaßt; Accidenz die besondere Art des Wirkens, das Wirken in concreto.”

103 W II, 17-18: “Berauben wir nun das Subjekt aller nähern Bestimmungen und Formen seines

Erkennens; so verschwinden auch am Objekt alle Eigenschaften, und nichts übrig bleibt, als die Materie

E uma vez que a correlação entre sujeito e objecto constitui a forma da consciência, a matéria, na qualidade de objecto do pensamento, é uma condição a priori da experiência (W II, 53 e 347). Schopenhauer é, assim, obrigado a deixar entrar no seu sistema um conceito a priori (W II, 55, “Praedicabilia a priori”) que é condição da experiência.

Sendo o conceito abstracto de matéria, tal como o objecto transcendental em Kant, uma condição da experiência, Schopenhauer teria, portanto, de admitir ou que a percepção intuitiva dos animais não é ainda experiência ou rever a sua tese de que os conceitos não são condições da percepção de objectos104. Não admitindo a possibilidade de os animais possuirem a faculdade de representar por conceitos, tem de se concluir que o sentido em que eles têm experiência tem de ser diferente daquele em que os humanos a têm. Em particular, a experiência dos animais, ao contrário da humana, tem de se reduzir à percepção de mera relações causais, que é o mesmo que dizer, à mera percepção da relação causal entre mudanças sem a representação de nada de permanente que lhes subjaza.

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 60-64)