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A constituição da realidade empírica

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 41-44)

Capítulo I: Teoria do conhecimento

I.4 O entendimento e o complexo de objectos espácio-temporais

I.4.1 A constituição da realidade empírica

A classe de objectos que se segue às intuições puras, segundo a ordem sistemática, é constituída pelas representações “empíricas, completas e intuitivas” (G, 28):

Elas são intuitivas [anschauliche] por contraposição às representações meramente pensadas, os conceitos abstractos; são completas porque, segundo a distinção de Kant, contêm não só a componente formal dos fenómenos, mas também a material; são empíricas em parte porque não resultam de uma mera ligação de pensamentos [Gedankenverküpfung], tendo a sua origem numa estimulação [Anregung] da sensação [Empfindung] do nosso corpo senciente, para o qual remetem constantemente como autenticação da sua realidade; em parte também porque estão ligadas, em conformidade com as leis do espaço, do tempo e da causalidade, àquele complexo sem princípio nem fim que forma a nossa realidade empírica.29 (G, 28)

Estas representações correspondem aos “objectos da intuição empírica” de Kant. A componente formal desta classe de objectos é constituída precisamente pelo espaço e pelo tempo (G, 29). No entanto, ao contrário do que sucedia na classe anterior, o espaço e o tempo não são agora percepcionados ou intuídos por si mesmos, em separado, mas sim como reunidos. A reunião do espaço e do tempo é mesmo a condição formal da representação dos objectos desta classe:

As representações empíricas que fazem parte do complexo de realidade regido por leis aparecem [erscheinen], contudo, em ambas as formas simultaneamente e a reunião

íntima de ambas é até condição da realidade, que se gera de certo modo como um produto a partir dos seus factores.30 (G, 29)

29“Sie sind anschauliche, im Gegensatz der bloß gedachten, also der abstrakten Begriffe; vollständige,

sofern sie, nach Kant’s Unterscheidung, nicht bloß das Formale, sondern auch das Materiale der Erscheinungen enthalten; empirische, theils sofern sie nicht aus bloßer Gedankenverknüpfung hervorgehn, sondern in einer Anregung der Empfindung unsers sensitiven Leibes ihren Ursprung haben, auf welchen sie, zur Beglaubigung ihrer Realität, stets zurückweisen; theils weil sie, gemäß den Gesetzen des Raumes, der Zeit und der Kausalität im Verein, zu demjenigen end- und anfangslosen Komplex verknüpft sind, der unsere empirische Realität ausmacht”.

30 “Die empirischen, zum gesetzmäßigen Komplex der Realität gehörigen Vorstellungen erscheinen

dennoch in beiden Formen zugleich und sogar ist eine innige Vereinigung beider die Bedingung der Realität, welche aus ihnen gewissermaaßen wie ein Produkt aus seinen Faktoren erwächst.”

A reunião do espaço e do tempo é necessária, pois, segundo Schopenhauer, só através dela podemos representar a permanência na mudança, que é o que que, segundo Schopenhauer, caracteriza os objectos “empíricos, completos e perceptíveis”.

No mero espaço, todas as relações são de contiguidade (Nebeneinander), não havendo nenhum “antes, depois ou agora”31 (W I, 11), e, portanto, não é possível a

representação nem da mudança nem da simultaneidade. No mero tempo, todas as relações são sucessivas, não sendo possível, portanto, representar a simultaneidade. Daqui segue-se, segundo Schopenhauer, que a representação da simultaneidade só é possível através da reunião do espaço e do tempo, pois duas representações só são simultâneas quando ocupam espaços diferentes ao mesmo tempo. A simultaneidade, por sua vez, é a condição da representação da mudança daquilo que permanece, porque “a

permanência de um objecto só é percebida [erkennt] através do contraste da alteração [Wechsel] de outros que existem ao mesmo tempo que ele [mit ihm zugleich sind]”32 (G,

29).

Deste modo, Schopenhauer crê estar a demonstrar duas teses bastante importantes. A primeira é que a realidade empírica não é simplesmente dada com a sensação, ela implica uma operação do intelecto, que consiste precisamente na reunião do espaço e do tempo. A segunda é que esta operação do intelecto não envolve conceitos do entendimento, podendo-se explicar exclusivamente a partir das intuições puras do espaço e do tempo. Teremos oportunidade de analisar, em mais detalhe, esta operação do entendimento mais abaixo na secção I.4.3.

À semelhança do que sucede com o espaço e o tempo intuídos de forma pura, a sua reunião constitui, para usar um termo da primeira edição da dissertação, um “todo da experiência” (Diss, 21, 23). Isto é, a reunião do espaço e do tempo forma um complexo espácio-temporal, uma “representação total (…) da qual todas as representações singulares pertencentes a esta classe são partes”33 (G, 30). Este

complexo tem “limites problemáticos” (G, 30), porque, tal como o espaço e o tempo, é potencialmente infinito.

31 “(…) nach, vor oder jetzt (…)”

32“Das Beharren eines Objekts wird daher nur erkannt durch den Gegensatz des Wechsels anderer, die

mit ihm zugleich sind”.

33 “(...) eine gesammte Vorstellung (…), von dem alle einzelnen, dieser Klasse angehörigen

A ideia de que a reunião do espaço e do tempo gera a realidade “como um produto a partir dos seus factores” parece implicar que os objectos no espaço e no tempo, são de algum modo, criados por essa reunião. Desse modo, a realidade seria o produto da reunião de objectos a priori, como são o espaço e o tempo e, como tal, teria um estatuto a priori. No entanto, Schopenhauer critica Fichte precisamente por ter esbatido a diferença entre a priori e a posteriori e ter tentado derivar a priori o conteúdo da experiência (W I, 517). Para além disso, contrariamente ao espaço e ao tempo como objectos da intuição pura, que são objectos meramente formais, os objectos desta classe incluem também uma componente material. Com efeito, o espaço e o tempo não são aqui objectos intuídos de modo puro. Enquanto na intuição pura, o espaço e o tempo são representados como vazios, como objectos da percepção eles são representados como preenchidos (G, 29). O seu conteúdo (Inhalt ou Gehalt) é a matéria34. Esta é a “perceptibilidade” (Wahrnehmbarkeit) do espaço e do tempo35.

Note-se que o preenchimento do espaço e do tempo tem como condição a afecção do corpo senciente, isto é, a sensação. A sensação não deve, no entanto, ser confundida com a matéria. A sensação tem um estatuto meramente subjectivo, enquanto a matéria constitui o seu correlato objectivo36 (cf. infra, 1.4.2).

A faculdade subjectiva que é correlativa à representação da realidade empírica é, segundo Schopenhauer, o entendimento (W I, 13). Toda a natureza do entendimento esgota-se numa única função, que consiste na capacidade de conhecer nexos causais:

Ele não é nada para além disso. Conhecer a causalidade é a sua única função, o seu único poder [Kraft], e este é um poder imenso, que abrange muitas coisas e tem diversas aplicações, sem que deixe de ser inegável a identidade de todas as suas manifestações.37 (W I, 13)

É a aplicação da causalidade por parte do entendimento que reúne as representações do espaço e do tempo e permite, assim, representar a realidade empírica38. A ideia de Schopenhauer é que a causalidade não seria necessária nem teria

34 Cf. W I, 9-10; W II, 347; E, 27. 35 Cf. G, 29, 130 e W I, 9-10, 589.

36 “Der Gehalt dieser Formen ist das, was der Empfindung in uns korresspondirt, was eigentlich in Raum

und Zeit wahrgenommen wird, mittelst der äußern Sinne, die Materie.” (Vo I, 151)

37“Kausalität erkennen ist seine einzige Funktion, seine alleinige Kraft, und es ist eine große, Vieles

umfassende, von mannigfaltiger Anwendung, doch unverkennbarer Identität aller ihrer Aeußerungen”.

qualquer significado se o espaço e o tempo existissem apenas por si próprios. A causalidade só tem significado porque a reunião do espaço e do tempo gera uma realidade nova: o complexo espácio-temporal. Ela é a regra à qual as mudanças das partes do complexo espácio-temporal estão submetidas. Note-se que a mudança (Veränderung) de estados não é equivalente à variação (Wechsel) de estados. Esta última é a mera sucessão e é, portanto, um conceito meramente temporal. A mudança, pelo contrário, é mais do que mera sucessão e envolve a reunião do espaço e do tempo:

Ora, o princípio da causalidade obtém o seu sentido e necessidade pelo facto de a essência da mudança não consistir na mera sucessão dos estados em si, mas antes no facto de no mesmo lugar do espaço existir agora um estado e em seguida outro e de em

um mesmo tempo determinado existir aqui um estado e ali outro: somente esta limitação recíproca do espaço e do tempo, um através do outro, dá sentido e necessidade a uma regra em conformidade com a qual a mudança tem de decorrer. O que é determinado pelo princípio da causalidade não é a sucessão de estados somente no tempo, mas esta sucessão em relação a um determinado espaço e não é a existência dos estados num determinado lugar, mas neste lugar num determinado tempo.39 (W I, 11).

I.4.2 A presença imediata das representações e o corpo como objecto imediato

No documento Luis de Sousa Dissertação de doutoramento (páginas 41-44)