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A Consciência Regional e Político-Jurídica

CONSCIÊNCIA REGIONAL

4. A Consciência Regional e Político-Jurídica

Littré57, em 1870, considerava a Política como a ciência da governação dos Estados; cem anos depois, define-se a “a Política como a arte e a prática da governação das sociedades humanas”. Ambas as definições apontam a governação como o objectivo da política, com um poder organizado, instituições de comando e de coacção. E, se alguns continuam, hoje, a considerar a política como a ciência do Estado, poder organizado na comunidade nacional, a maioria vê nela a ciência do poder organizado, em todas as comunidades, portanto, também na comunidade regional58. Também não resta dúvida de que, actualmente, a política é muito mais científica do que no século passado, pois os governantes podem utilizar estatísticas, sondagens de opinião, técnicas de auscultação das massas, calculadoras electrónicas, etc., que, antes, não tinham à mão. Todavia, o sector desta política científica é muito menor do que o da política arte e prática, servida por obreiros impreparados e arrogantes, que se baseiam em dados imprecisos, não mensuráveis, imediatos e irracionais59.

W. Mackenzie, na sua obra A Ciência Política60, destaca os dois pontos de vista, ciência do estado e política sem estado, justificando-os assim: «Até época recente a Ciência Política, enquanto disciplina universitária, fazia parte integrante da tradição ocidental em matéria de educação e de governo. […] O tema central da ciência política ocidental foi a noção de estado se considerarmos que esta palavra controversa designa, em cada época, a instituição pretendente à supremacia jurídica e política... Esta concepção

57 Émile Littré (1801-1881), discípulo de A. Comte, divulgou os seus princípios filosóficos, morais e

científicos.

58

DUVERGER, Maurice – Introdução à Política. Lisboa: Estúdios Cor, 1964, p. 11.

59 Ibidem, pp. 13-14.

60 MACKENZIE, W. – A Ciência Política. Trad. por Maria João Seixas do título da Ed. Francesa

“Tendances Principales de la Recherche dans les Sciences Sociales et Humaines. Partie I: Sciences Sociales – La Science Politique”. Amadora: Bertrand, 1975, pp. 19-24.

tradicional da ciência do estado é, no entanto, posta em causa por aqueles que julgam necessário estudar a política onde quer que ela se encontre”.

É um facto que no século XIX, a ciência do estado tinha, no seu conjunto, um carácter jurídico e que os debates políticos se situaram, por vezes, ao nível do poder legítimo e das formas constitucionais.

O Estado não existiu sempre, nem tão pouco podemos dizer que não deixará de existir algum dia. É certo que uma sociedade situada como unidade relativamente independente num determinado território se constitui sempre com um sistema de governo comum suprafamiliar. Para designar esta forma de existência social, que sempre existiu e dificilmente pode desaparecer, podemos servir-nos da palavra república contanto que a despojemos da sua referência a uma concreta forma de governo e não signifique mais do que o seu sentido literal – res publica (coisa pública). O Estado propriamente dito apareceu no século XVI como reacção superadora da anarquia provocada nalguns povos europeus pelas guerras religiosas.

A Espanha, ao ver-se livre das guerras religiosas, não sentiu verdadeiramente necessidade do Estado, e, por isso, a teoria do Estado, própria dos políticos, como então se dizia, foi mal recebida pelos clássicos dos séculos XVII e XVIII e, de facto, o Estado, em Espanha, foi-se realizando com grande dificuldade e sempre impulsionado por influências estrangeiras, sobretudo francesas, onde a ideia de Estado alcançou a sua máxima nacionalização, a começar pela obra de Bodin, o primeiro grande teórico do Estado. Também a cisão maquiavélica da ética e da política encontrou uma legião de impugnadores entre as gentes hispânicas; porém, a construção bodiniana da soberania como poder ilimitado, absoluto e perpétuo, foi determinantemente rechaçada pelo jurista aragonês Gaspar de Añastro Isunza ao verter em castelhano las repúblicas “catholicamente emmendadas”. Entendia Gaspar de Añastro que os espanhóis não podiam aceitar a noção de soberania, como poder ilimitado por cima dos corpos sociais, devendo ser substituída pela noção de suprema auctoritas; era uma das correcções introduzidas porque, ao contrário da ideia de ilimitação do poder soberano, a autoridade suprema implica que cada corpo político, incluídos os poderes do monarca, esteja encerrado dentro de certos limites; nisto residia o eixo da teoria do Estado.

Finalmente, o hobbesianismo enquanto paradigma do contratualismo social, pressupõe, necessariamente, a substituição da comunidade política como corpus mythicum por um puro mecanicismo, um corpus mechanicum. Trata-se de uma concepção, (retomada e retocada no sentido liberal por Locke e, mais tarde, por Montesquieu e Rousseau) meramente voluntária e jurisdicizada da consciência social (em vez de fundar o laço social na natureza humana) que passou do absolutismo ao liberalismo e deste à democracia. Ficou célebre o Esprit des lois (1748), onde Montesquieu examinou largamente as instituições políticas tanto da antiguidade como de diversos países do seu tempo, concluindo do exame dos homens que nessa infinita diversidade de leis e costumes eles não eram unicamente conduzidos pelas suas fantasias, mas pela natureza das coisas. A natureza das coisas consistia “num conjunto de circunstâncias, tais como a geografia física, a qualidade dos terrenos, a situação do país, o seu tamanho, as suas inclinações, o seu comércio, os seus costumes”.

O regionalismo nutre-se na natureza das coisas, numa concepção rasgadamente comunitária da política, ainda que, a modo de disfarce, se lhe sobreponha um regime constitucional de base contratualista. Daí que seja intuída, nos dias de hoje, uma certa instabilidade dos povos, “y que no se debe solo a la inadecuación del constitucionalismo liberal…, sino también a la propia debilidad – cuando no inexistência – del Estado"61. A região é uma consciência multifacetada, constituída ao longo do tempo, formatada num espaço, e, simultaneamente, um projecto de vida em conjunto. A autoridade política regional é o seu governo e o conjunto de estruturas pelas quais se manifesta. As disposições legais devem ser inspiradas pela consciência colectiva da região e pelo referido projecto de vida em conjunto; o seu ideal de justiça deve ser a força da lei e do direito positivo. Esse ideal de Justiça será, ao mesmo tempo, a sua permanente e indelével instância crítica62.

61

AYUSO, Miguel – “Hispanidad y Globalización” in Anales de la Fundación Elías de Tejada, ano IX/2003, p.197.

62 Alguns juristas, imbuídos do espírito sociológico, defendem que a ideia de um direito natural, anterior e

transcendente à organização colectiva, é pura quimera metafísica. Para eles, o Direito não é outra coisa senão o conjunto de normas que tendem a impor-se, espontaneamente, no organismo colectivo; normas essas impossíveis de deduzir a partir das exigências de cada indivíduo, ainda que, por hipótese, anterior à sociedade. Cogitamos que não deve nem pode confundir-se a ideia de direito natural com as reivindicações egoístas e os instintos de cada indivíduo; mas, como este sempre viveu e viverá em sociedade (ubi societas, ibi ius), o direito natural não é mera quimera metafísica; é antes o ideal de justiça