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A consonância da discriminação erigida com os interesses do sistema jurídico

CAPÍTULO 3 DA UNIVERSALIDADE À EXCLUSÃO: DESCONSTRUINDO

3.1 Benefícios em espécie e fatores discriminatórios

3.1.3 A consonância da discriminação erigida com os interesses do sistema jurídico

Em relação ao último requisito descrito por Bandeira de Mello como característico da igualdade material: a consonância da discriminação proclamada com os interesses do sistema jurídico, importante salientar que o vínculo concretamente demonstrável entre fator discriminatório e a distinção em função dele deve ainda conter correlação com os interesses jurídicos constitucionalmente protegidos, isto é, a discriminação deve resultar “[...] em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.” 24

Isso significa dizer que não é qualquer diferença, ainda que logicamente explicável, que permite a discriminação legal. A discriminação legal deve conter, além da lógica, uma pertinência constitucional.

Nesse sentido, como delineado no tópico anterior, a análise dos fatores discriminatórios idade, ocupação e condições físicas com o fator baixa-renda não foi possível de ser demonstrado de forma lógica e direta, muito embora existam inúmeras justificativas para a concessão dos benefícios tarifários. Desta forma, não havendo esse vínculo concretamente demonstrável, a análise do mesmo com os interesses protegidos constitucionalmente é prejudicada.

Importante destacar, porém, que havendo o requisito da correlação lógica no que concerne aos benefícios tarifários, o interesse constitucionalmente protegido se destaca nos objetivos da República: promoção de uma sociedade justa e igualitária.

Somente poderá se falar em igualdade material, então, se presente todos os requisitos pontuados por Bandeira de Mello. A ausência de apenas um deles torna impossível a realização prática da isonomia entre os beneficiados por uma norma de conteúdo

22 MORAIS, Maria da Piedade; COSTA, Marco Aurélio. Infraestrutura social e urbana no Brasil: subsídios

para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília, DF, maio 2011. (Comunicado nº 94). Disponível em: <www.ipea.gov.br/portal/stories/PDFs/comunicado/110525_comunicadoipea64.pdf> Acesso em: 9 mar. 2014.

23 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS. Relatório final. Novas

tendências em política tarifária. Brasília, DF, jun. 2005. Disponível em: <http://brasil.indymedia.org/media /2006/12/369544.pdf>. Acesso em: 22 set. 2014.

24 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo:

discriminatório e os não beneficiados, como ocorre na grande maioria das leis municipais brasileiras que utilizam o fator idade, ocupação e condições físicas para a concessão de gratuidades ou reduções tarifárias.

Assim, por haver a ausência da correlação lógica e abstrata entre os fatores discriminatórios mais utilizados na tarifa social com os fins da política pública proclamada, é possível afirmar que o atual modelo de concessão de benefícios tarifários no Brasil não promove a igualdade material entre os usuários do transporte público. Enquanto o fator baixa- renda não for utilizado como base primordial para a concessão de benefícios, não se alcançará a igualdade pretendida.

Novamente importante ressaltar que os fatores discriminatórios utilizados não são concedidos de forma arbitrária e injustificável. Como analisado, existem inúmeras justificativas para a concessão dos benefícios, principalmente a mobilidade urbana e inclusão social das classes de usuários mais fragilizadas/marginalizadas socialmente, como idosos e deficientes, bem como a função exercida no caso dos carteiros, policiais e oficiais de justiça.

Todavia, o que não se vislumbra é a exata correção lógica entre fator discriminatório e renda, como proclama o conceito da tarifa social estudado no primeiro capítulo. Desta forma, por esse prisma, não é possível identificar o princípio da igualdade e, portanto, também não é possível falar em justiça.

A justiça, como lembra Norberto Bobbio, está relacionada a dois fatores clássicos já expostos por Aristóteles25: legalidade e igualdade. Assim, para que se possa falar em justiça é necessário que cada indivíduo tenha o seu lugar atribuído segundo o que lhe cabe, para tanto, porém, isso deve ser assegurado por normas legalmente editadas.

Assim, a instauração de uma certa igualdade entre as partes e o respeito à legalidade são as duas condições para a instituição e a conservação da ordem ou harmonia do todo. Tais condições são ambas necessárias para realizar a justiça, mas somente em conjunto é que são também suficientes.26

Em igual monta também pontua Kelsen que a justiça é valor constituído por uma norma jurídica que serve como esquema de interpretação de conduta: é justa a conduta que corresponde a essa norma, e será injusta a que a contrariar.27 Desta forma, por não haver

25 Para Aristóteles, justiça é a disposição da alma que leva os indivíduos a fazer o que é justo, agir justamente e

desejar o que é justo. Neste aspecto ela se apresenta como uma virtude moral que diz respeito à observância da lei e ao respeito àquilo que é legítimo e válido para o bem de toda comunidade. (BITTAR, Carlos Eduardo Bianca. A justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 58).

26 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 14. 27 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 179.

correlação entre os fatores discriminatórios e, portanto, pela inexistência de igualdade, não é possível também visualizar a justiça social na prática da política pública.

3.2 O transporte como política e direito social: a proposta de emenda constitucional nº 90/2011 e suas implicações

Não desatento aos problemas levantados pelo atual modelo da tarifa social, discutidos ao longo deste trabalho, o legislador brasileiro tenta constantemente resolvê-los. Assim, como pilar dessa preocupação, desponta a discussão acerca da Proposta de Emenda Constitucional nº 90 de 2011 que objetiva elevar o transporte público como um direito social constitucionalmente protegido, garantindo, para tanto, políticas públicas eficientes para a universalização do serviço público.

Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 estipulou um extenso rol de direitos fundamentais de segunda geração, ou direitos sociais, especialmente em seu artigo 6º: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade etc

Não obstante, o transporte, muito embora capaz de garantir a todos os cidadãos o acesso físico aos bens e serviços dispostos na sociedade e, consequentemente, diminuindo as desigualdades, não foi disposto no texto da Constituição Federal como um direito social. Bem verdade, porém, que passou a ser visto como tal, haja vista seu grande potencial inclusivo, ou seja, o transporte, por sua importância na estruturação e transformação do contexto social é visto na atualidade como peça chave na equação da inclusão e mobilidade urbana e, consequentemente, do direito à igualdade.

Desta forma, a Proposta de Emenda à Constituição nº 90, de 2011 (PEC 90/201128) cuja primeira signatária é a Deputada Luiza Erundina, e que está atualmente sob a análise do Senado Federal, surgiu com o pretexto de alterar a redação do artigo 6º da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Nesse sentido, a nova redação do artigo 6º assim seria:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

28 ERUNDINA, Luiza. Proposta de emenda à constituição nº 90, de 29 de setembro de 2011. Dá nova redação

ao art. 6º da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Diário da Câmara dos

Deputados, Brasília, DF, 30 set. 2011. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/

Argumentam os signatários, em sua justificação, que o transporte destaca-se na sociedade moderna pela relação com a mobilidade das pessoas e, consequentemente, pela qualidade de vida da população. A proposta ainda ressalta que:

[...] o transporte, serviço notadamente público, cumpre função social vital, uma vez que o maior ou menor acesso aos meios de transporte pode tornar- se determinante à própria emancipação social e o bem-estar daqueles segmentos que não possuem meios próprios de locomoção. Portanto, evidente a importância do transporte para o dinamismo da sociedade, o que justifica sua aposição na relação dos direitos sociais expressos pelo artigo 6º da Constituição.

Mas a simples elevação do transporte como direito social em resposta aos proclames da sociedade quanto a um serviço eficiente, com tarifas módicas e de acesso universal, não é capaz de concretamente efetivá-los. Nos moldes da teoria da Constitucionalização Simbólica desenvolvida por Marcelo Neves29, a proclamação de um direito como constitucional visando a calmaria dos anseios da população sem um aparato normativo jurídico concreto, não enceta a concretização dos mesmos tendo em vista a prevalência do discurso político-ideológico, fazendo dos mesmos um direito meramente simbólico. Nas palavras do próprio autor: “Nesse sentido, a marca distintiva da legislação simbólica consistiria na produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo- jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico.”30

Nesse sentido, segundo o autor, a constitucionalização simbólica serviria a três propósitos principais: a confirmação de valores sociais; a demonstração da capacidade de ação do Estado no que concerne à resolução de problemas sociais e, por fim, como forma de adiamento de solução dos conflitos.31 No âmbito do transporte público, isso significa que elevá-lo a direito social pura e simplesmente, somente resultaria na confirmação do mesmo como um direito, na capacidade do Estado em supostamente resolver o problema (discurso ideológico-político), porém, sem concretamente fazê-lo, adiando a resolução.

É, pois, em razão disso, visando a não simbologia do transporte nos termos descritos pelo autor, que o entendimento do transporte como direito social pressupõe a definição de políticas públicas concretas que objetivam assegurá-lo de forma universal, ou seja, o entendimento do transporte como direito social implica a criação e instituição de

29 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 30 Ibid., p. 67.

mecanismos que garantam não apenas a existência eficiente do serviço, mas o acesso irrestrito a todos os usuários através de políticas sociais de gratuidades ou barateamento de tarifas, como ocorre, por exemplo, com os serviços de saúde, educação e lazer que são em alguma medida subsidiados ou desonerados para que a universalização torne-se economicamente viável.

Assim, é com esse caráter que inúmeros são os projetos de lei que objetivam dar um novo aspecto à tarifa social, seja instituindo novos benefícios tarifários com base na renda familiar dos usuários, seja instituindo um novo modelo de financiamento do transporte público, livrando-se do subsídio cruzado e também da arrecadação com base na receita tarifária.

Nesse contexto, após uma análise teórica combinada com dados empíricos são três os principais Projetos de Lei em tramite no Congresso Nacional que visam garantir a eficácia da PEC nº 90 de 2011, quais sejam, o projeto de tarifação zero do Movimento Tarifa Zero e os projetos sobre o vale transporte social (nº 2956/201132) e o passe livre estudantil (nº 248/201333) que preveem o financiamento das gratuidades com orçamento da União e recursos dos royalties do petróleo, respectivamente.