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CAPÍTULO 2 TARIFAÇÃO E FINANCIAMENTO: A PROBLEMÁTICA DO

2.1 O financiamento da operação do sistema de transporte público brasileiro

2.1.1 O subsídio cruzado

Nesse contexto de financiamento do sistema pelo usuário, é certo que também a tarifa social gera uma redução natural das finanças do ente privado, fazendo com que os valores arrecadados nem sempre sejam suficientes para manter o serviço público em adequado funcionamento e gerar o lucro esperado pela concessionária. Desta forma, para a compensação da diferença gerada pela tarifa social, ou seja, para que o concessionário possa ser recompensado pela instituição das gratuidades e tarifas únicas por quaisquer distâncias percorridas instituídas pelo Poder Público Municipal, proliferou no sistema de transporte coletivo urbano o sistema de subsídios cruzados.

O subsídio cruzado consiste, pois, no repasse da diferença gerada pela tarifa social aos usuários pagantes do sistema através da presunção de que estes, por não receberem benefícios destinados aos usuários de baixa-renda e por morarem nos centros e seus arredores, são usuários detentores de capacidade financeira e, portanto, em condições de arcar com esse ônus, garantindo, em tese, os interesses públicos (concessão de benefícios aos usuários cativos), privados (amortização de investimentos, cobertura dos custos e lucro), bem como o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, sendo considerado um dos mais importantes meios de se implementar uma política pública em matéria tarifária.

Nesse sistema, o poder público, adotando determinada política tarifária, faz com que um grupo de usuários arque com parte dos custos decorrentes da prestação do serviço a outros usuários. Trata-se de uma forma de distribuir os custos de uma maneira independente do ônus que cada um tenha gerado. Na maioria das vezes em que o sistema é adotado, busca-se cobrar mais da parcela de usuários teoricamente detentora de maior poder aquisitivo para que seja possível cobrar menos de usuários com capacidade econômica inferior.10

Importante ainda destacar que a prática do subsídio cruzado como meio de se implementar uma política pública em matéria tarifária, como ocorre na tarifa social, está presente em muitos serviços públicos brasileiros11, à exemplo do abastecimento de água cujo alto valor dos investimentos para a captação, distribuição, coleta e tratamento de água e

10 CÂMARA, Jacintho Arruda. Tarifa nas concessões. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 68.

11 Mas não só no setor dos serviços públicos o subsídio cruzado está presente. Importante destacar que esse

instituto é visualizado em diversas atividades econômicas e, portanto, na prestação de muitos outros serviços (que não públicos), como por exemplo, a meia entrada conferida aos estudantes nos cinemas brasileiros acaba elevando o valor da entrada inteira para que o empresário não sofra o prejuízo imposto pela lei. (GONÇALVES, Carlos Eduardo Soares. Subsídios cruzados, e perigosos. Valor Econômico, São Paulo, 29 ago. 2014. Cultura. Disponível em: <http://www.valor.com.br/cultura/3672274/subsidios-cruzados-e- perigosos>. Acesso em: 22 set. 2014).

esgotos, em locais menores, tenderia a aumentar o preço da tarifa em níveis consideráveis, desta forma, em cidades maiores, onde há maior capacidade de pagamento, os usuários acabam subsidiando os municípios menores ao redor, “[...] senão, regiões como o Vale do Ribeira certamente, não teriam cobertura de sistemas de saneamento, por pura falta de capacidade de investimentos” como explica José Paulo Kosmiskas, superintendente da Sabesp, da Unidade de Negócio Médio Tietê.12

Não obstante, como explica Aline Câmara Almeida, em analogia com o direito tributário europeu, a princípio poderia parecer que a previsão de subsídios cruzados estaria em desacordo com o binômio “utilizador/pagador”, segundo o qual todos os usuários devem ser tributados pelos custos que efetivamente geram.13 No entanto, em defesa do subsídio cruzado, a autora afirma que a cobrança de tarifas mais elevadas para alguns está pautada no princípio da dignidade da pessoa humana, reforçado pelos objetivos da República, quais sejam, construção de uma sociedade justa e igualitária, desenvolvimento social, erradicação da pobreza e promoção do bem a todos os cidadãos sem discriminação, nos ditames do artigo 3º da Constituição Federal, motivo pelo qual é juridicamente viável e justificável a adoção do subsídio cruzado como forma de custeio da tarifa social.14

Também Marçal Justen Filho, tomando emprestado conceitos de direito tributário, justifica o subsídio cruzado no princípio da capacidade contributiva, ou seja, “quem pode mais paga mais” na utilização do serviço público a fim de custear aqueles que não encetam as mesmas condições, em prol da universalidade dos serviços públicos e da igualdade entre os usuários. Nas palavras do autor:

O primeiro tópico a discutir, refere-se à admissibilidade da vinculação das tarifas a circunstancias subjetivas patrimoniais dos usuários. Aplicar-se-ia uma modicidade de princípio da capacidade contributiva, de molde a que os desvalidos do destino recebessem tratamento mais favorecido. Não parece questionável a validade (aliás, obrigatoriedade) dessa solução, em face dos princípios constitucionais fundamentais. O Estado brasileiro fundamenta-se sobre certos princípios basilares, entre os quais os da proteção à dignidade da pessoa humana e da erradicação da pobreza como objetivo fundamental. A solidariedade consagrada constitucionalmente significa, como inúmeras

12 SUBSÍDIO cruzado. Cidades do Brasil, São Paulo, ed. 25, out. 2001. Disponível em:

<http://cidadesdobrasil.com.br/cgi-n/news.cgi?cl=099105100097100101098114&arecod=13&newcod=355>. Acesso em: 22 abr. 2013.

13 O binômio utilizador-pagador é uma expressão do Direito Tributário europeu com base nas concessões

portuguesas SCUT – sem cobrança de utentes. Tal prática consiste na concessão de autoestradas sem a cobrança direta dos usuários, ou seja, o Estado substitui-se ao utilizador no pagamento das despesas utilizando para isso o dinheiro de tributos oriundos daqueles que utilizam ou não a estrada, contrariando o princípio pelo qual o usuário deve ser tributado pelos custos que efetivamente geram.

14 ALMEIDA, Aline Paola Correa Braga Câmara de. As tarifas e as demais formas de remuneração do serviço público. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009. p. 90-91.

vezes afirmado, que a ausência de recursos não pode constituir obstáculo à fruição de serviços públicos. Aliás, muito ao contrário, a pobreza exige a intervenção protetora do Estado e pressupõe necessidade muito mais intensa de receber serviços aos quais o indivíduo não tem acesso por outra via.15 Assim, tendo em vista a forma de financiamento da operação do sistema de transporte no Brasil – através da arrecadação tarifária – o subsídio cruzado é utilizado no conjuntamente com a tarifa social visando a equalização dos interesses públicos e privados, em prol da prestação de um serviço eficiente.

Situação semelhante não ocorre no transporte público europeu. Em razão do financiamento da operação do sistema de transporte público, na Europa, ser baseado fundamentalmente em recursos orçamentários, podendo chegar a até 69% conforme mostra a tabela abaixo, a contraprestação cobrada do usuário através da tarifa não engloba possível cobertura de benefícios ou isenções tarifárias concedidas a outros usuários, ou melhor, não há subsídio cruzado. Ademais, em razão do incentivo dos governos ao uso do transporte público, os países integrantes da União Europeia cobram altos impostos dos usuários de transporte individual através do preço da gasolina, taxas elevadas de financiamento e custo elevado de estacionamentos públicos, receita que é utilizada integralmente ao subsídio direto do transporte público.16

Figura 04 – Subsídios públicos ao transporte urbano das cidades europeias em 2009

Fonte: EUROPEAN METROPOLITAN TRANSPORT AUTHORITIES. Barometer of public transport in

European metropolitan areas. Paris, 2006. Disponível em: <http://www.emta.com/article.php3

?id_article=267&lang=en>. Acesso em: 25 set. 2014.

15 JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 2003. p. 376. 16 EUROPEAN METROPOLITAN TRANSPORT AUTHORITIES. Barometer of public transport in

European metropolitan areas. Paris, 2006. Disponível em: <http://www.emta.com/article.php3?

Na França, em específico, não somente há a cobrança de impostos dos usuários de transporte particular, destinado do subsídio do transporte público como também uma taxa cobrada das empresas com mais de 9 funcionários, cujo valor (definido por lei e varia entre 0,5% a 2% sobre a folha de pagamento) é destinado ao mesmo fim: financiamento do sistema de transporte público, coibindo a prática do subsídio cruzado. Esse sistema de cobrança Francês permite que tanto as pessoas físicas quanto jurídicas ajudem a custear o transporte urbano em atenção às políticas de proteção ambiental e urbanística, bem como à valorização do transporte público como importante meio de inclusão social.17