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CAPÍTULO 1 TARIFA SOCIAL: CONCEITO, OBJETIVOS E FUNDAMENTOS

1.4 A igualdade material como fundamento constitucional da tarifa social

1.4.1 A igualdade material e os fatores discriminatórios

O princípio da igualdade ou princípio da isonomia é o pilar de sustentação de qualquer Estado Democrático de Direito e, como analisado no tópico anterior, remonta às mais antigas sociedades, estando sempre no âmago das mais diversas formas de compreensão do conceito e extensão de ‘cidadãos’. Nesse sentido, o alcance material do princípio da igualdade, eternizado por Aristóteles, é desde os tempos mais remotos um dos temas de maior complexidade da humanidade, tanto em seus aspectos políticos, filosóficos, sociais e econômicos, quanto jurídicos.

Desta forma, sem a pretensão de esgotar o tema por enquanto, tendo em vista que o capítulo 3 discorrerá sobre o assunto, importante destacar já neste momento, que a igualdade material somente será alcançada através da escolha determinante do fator discriminatório, ou seja, os fatores discriminatórios que dão ensejo aos benefícios tarifários (idosos, estudantes, empregadas domésticas, entre outros) devem encontrar exata correlação com os fins da política pública: garantir o pleno acesso dos usuários baixa-renda ao transporte público municipal.

As leis de concessão de benéficos tarifários devem, pois, contemplar os usuários baixa-renda com a mesma intensidade e com os mesmos efeitos, através de um amplo estudo acerca dos usuários mais cativos do transporte urbano, isso porque, como explica Celso Antônio Bandeira de Mello “[...] o ponto nodular para exame da correção de uma regra em

face do princípio econômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele.”77

Nas hipóteses de discriminação positiva, pois, deve-se observar três situações: a primeira diz respeito ao elemento que é tomado como fator de discriminação; a segunda situação se refere a necessidade do elemento tomado como fator de desequiparação estar correlacionado com a disparidade estabelecida pelo tratamento jurídico. Por fim, devemos estar atentos se o produto desta relação entre fator de discriminação e tratamento jurídico diferenciado é absorvido pelos interesses do Estado.

Assim, quando da criação de um benefício tarifário, o legislador deve atentar se o critério usado para discriminar determinada classe de usuário é considerado essencial, não havendo outra possibilidade para desfazer a desigualdade pré-existente. Com isso, não basta reconhecer que uma regra de direito é ajustada ao princípio da igualdade, apenas quanto a uma situação. Para se respeitar esse respeito, é preciso respeitar todas essas três situações.

Não se pode olvidar, ainda, que o fator baixa-renda que deu ensejo à criação da política pública da tarifa social é, na verdade, decorrência pura e simples de fatores históricos e culturais advindos de preconceito ou hipossuficiência econômica de uma maioria que não detinha as mesmas oportunidades que os demais, seja porque o conceito de cidadãos era restrito até o advento do Estado Liberal, seja porque, depois dele, a igualdade formal prevaleceu por longas décadas.

Assim, com o propósito de reduzir as desigualdades das classes desfavorecidas e marginalizadas o legislador, ao estabelecer leis que concedam benefícios tarifários, deve proporcionar a efetiva harmonia entre o fator discriminatório e os fins da política pública através de uma discriminação positiva com o escopo de combater tais desigualdades. Nas palavras de Luiz Alberto David Araújo:

Na disciplina do princípio da igualdade, o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereciam tratamento diverso. Enfocando- os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições. São as chamadas ações afirmativas que são políticas públicas ou programas privados criados com o intuito de diminuir as desigualdades havidas em relação às pessoas ou grupos em posição de

77 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo:

inferioridade. São medidas compensatórias que tem, por escopo, combater as desigualdades fáticas advindas de desvantagens histórias e culturais, consequências de um passado discriminatório.78

Vale lembrar, nesta senda, que não é toda ou qualquer situação discriminatória que poderá ser privilegiada com o instituto da discriminação positiva. De modo que, o fato adotado como discriminatório na concessão dos benefícios deve se valer de justificativa racional sob um fundamento lógico em relação ao critério adotado como desigual, estabelecendo um tratamento jurídico construído em função da disparidade decretada, e analisando se a correlação racional abstrata existente é em concreto coerente com o objetivo de acesso do transporte às pessoas carentes, para não incorrer em inconstitucionalidade.

Em função disso, a tarifa social não pode ter como fator discriminatório, a princípio, raça, sexo ou religião. Isto ocorre, porque o próprio texto constitucional não permite que exista qualquer tipo de discriminação envolvendo esses critérios. Tal situação é vislumbrada no artigo 3º inciso IV da Constituição Federal, que em seu corpo afirma que, dentre os objetivos fundamentais da República consiste o de evitar qualquer discriminação envolvendo origem, raça, sexo, cor ou idade. Em relação às questões religiosas, por sua vez, o dispositivo que veda a utilização desse fator discriminatório está presente no inciso VI do artigo 5º, não obstante, porém, importante ressaltar que a tarifa social (como qualquer outra política pública) pode ser pautada em algum desses critérios quando houver vinculação motivada de sua necessidade, cujo único objetivo é garantir a igualdade para todos, ou seja, desde que demonstrado o vínculo entre esses fatores os fins da política em voga.

Assim, independente das características existentes em pessoas, coisas ou situações, as discriminações só serão plenamente justificáveis se mantiverem um vínculo concretamente demonstrável entre o fator discriminatório e o tratamento desigual determinado, ou, em outras palavras, quando o fator discriminatório tiver correlação lógica com os fins da política pública da tarifa social, qual seja, universalizar o acesso ao transporte público com ênfase nos usuários baixa-renda. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada [...]. Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não

78 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Direito constitucional: princípio da isonomia e a constatação da

guardam relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravem imposto.79 Por fim, o princípio da igualdade na tarifa social busca firmar a ideia de universalização do transporte público brasileiro através da equiparação dos usuários quanto à sua renda; se usuário cativo, terá direito ao tratamento discriminatório, de forma que qualquer fator diferencial que não objetive a capacidade financeira encetará a desigualdade entre os utentes à medida que não proporcionarão o adequado tratamento entre esse elemento diferencial e a discriminação proposta.