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2.3 DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

2.3.2 A Constituição de 1988

Em 28 de agosto de 1979, após um grande movimento nacional, o então presidente João Batista Figueiredo sancionou a Lei da Anistia, que preparava gradualmente o terreno para o término da ditadura militar e para a reabertura democrática. Em 1985, a ditadura militar brasileira teve, em tese, seu fim formal com a vitória do político mineiro Tancredo Neves em eleições presidenciais indiretas ocorridas em janeiro de 1985. A chapa eleita era composta por Tancredo Neves22 como presidente

e José Sarney23 como vice-presidente. Essa chapa representava, segundo Schwarcz e

Starling (2015, n.p.), “um projeto de transição ambíguo, que incluía uma solução política conservadora e uma alternativa de mudança conciliatória, mas não era nada desprezível: estava orientado para avançar na reconstrução democrática e buscar a estabilização econômica e a estabilidade institucional”.

Embora tenha acontecido somente na segunda metade dos anos 1980, a revogação dos poderes de exceção pelos militares e a retomada da democracia fazia

22 Sobre Tancredo Neves, Lilia Schwarcz e Heloisa Maria Starling (2015, s/p) comentam: “Tancredo era até

simpático aos olhos do general Figueiredo e de sua base de apoio, mas, justiça lhe seja feita, não enganou ninguém: era um político de tendências moderadas que desde 1964 atuava em oposição à ditadura. Não fora cassado nem privado de seus direitos políticos, e a oposição conservara uma liderança astuta e experiente: elegeu-se deputado federal nas décadas de 1960 e 1970, senador de 1978 a 1982, e, nesse mesmo ano, governador de Minas. Tinha 51 anos de vida pública — começou como vereador, em São João del-Rei — e uma trajetória impecável: ministro da Justiça no segundo governo de Vargas e primeiro- ministro durante o parlamentarismo no governo de João Goulart. Tancredo nunca abriu mão de sua lealdade a quem o fez político nacional. E era um mestre na arte de fazer política à moda de Minas: um negociador habilidoso, que sabia a hora de sair da sombra e agarrar a oportunidade”.

23 Sobre José Sarney, Schwarcz e Starling (2015, s/p) comentam: “Sarney se aproximara da ditadura em

1964: em 1965 fora eleito por voto direto governador do Maranhão e, em 1970, voltara a Brasília como senador pela Arena. Pulara do barco na última hora, e tinha uma impressionante facilidade para mudar de matiz e se adaptar a qualquer corrente ideológica, desde que fosse mantido exatamente onde queria estar: no poder. No Maranhão, era poderoso e onipresente — e assim permaneceria até 2014. Como outros políticos brasileiros, Sarney encarnava um novo tipo de coronel, que, se já não vive no velho sistema da Primeira República, conserva algumas de suas práticas: inadaptação às regras democráticas, convicção de estar acima da lei, incapacidade de distinguir o público do privado, e uso do poder para conseguir empregos, contratos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e da parentela”.

parte de um processo de distensão que iniciara uma década antes, com os generais Ernesto Geisel, na presidência, e Golbery do Couto e Silva, na chefia da Casa Civil (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Para Schwarcz e Starling (2015, n.p.), o movimento operado por esses dois generais tratou-se de um “processo de descompressão do sistema político”, que faria parte de uma “política de abertura controlada”, cujo objetivo, segundo as autoras, seria “garantir que a alternância de poder se realizasse de maneira tutelada, restrita aos círculos civis aliados e sem riscos institucionais”. Porém, apesar dos esforços dos generais empregados na tentativa de controlar o processo de transição e de neutralizar as forças de oposição, a campanha por Diretas Já, que eclodiu entre 1983 e 1984, ganhou força e ocupou ruas no país inteiro, exigindo o retorno da democracia por meio de eleições diretas, motivada por uma emenda constitucional proposta pelo então deputado Dante de Oliveira, do PMDB do Mato Grosso do Sul, que propunha o restabelecimento do voto popular na eleição para a Presidência da República:

A Emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida, levou à formação de uma frente suprapartidária que reuniu partidos políticos — PMDB, PT, PDT e até o PTB —, entidades sindicais e movimentos populares, e abriu uma dissidência inédita dentro da base parlamentar do governo. Para completar, ela também se transformou no centro estratégico da maior mobilização cívica da história republicana do país. A tendência em favor das eleições diretas até crescia depressa na sociedade e entre as forças de oposição, mas a possibilidade de mudança nas regras da sucessão era nula. O governo tinha maioria no colégio eleitoral de 660 integrantes e no Congresso Nacional: uma emenda constitucional exigia quórum qualificado de dois terços — 320 votos — para ser aprovada. Só um fato extraordinário poderia romper com as regras que impunham a vitória de um candidato eleito pelo voto indireto para a sucessão do general Figueiredo, e as oposições se encarregaram de criá-lo (SCHWARCZ; STARLING, 2015, n.p., grifos meus).

As autoras lembram ainda que essa campanha foi liderada por figuras políticas como o próprio Tancredo Neves, Leonel Brizola (que havia há pouco retornado do exílio), Fernando Henrique Cardoso e Ulysses Guimarães e apoiada por intelectuais como Lygia Fagundes Telles, Antonio Candido e Celso Furtado, além de artistas como Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Maria Bethânia, Fafá de Belém e Paulinho da Viola, dentre outros. Em 1984 foi votada e rejeitada a emenda que estimulou o movimento24. A rejeição da proposta gerou frustração entre a população e tornou a

24 Sobre a votação Schwarcz e Starling (2015, s/p) afirmam: “embora os votos favoráveis tenham sido em

candidatura de Ulysses Guimarães inviável. Guimarães era o então Presidente da Câmara dos Deputados e provável representante da oposição em caso de eleições diretas. Schwarcz e Starling (2015) relatam que as lideranças do PMDB decidiram disputar a Presidência da República também no colégio eleitoral, como alternativa, porém com outro candidato: Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais, que viria a ser eleito como o primeiro presidente civil do período de redemocratização. Entretanto, apesar de ter sido eleito, Tancredo Neves não chegou a assumir o governo de fato: morreu em 21 de abril de 1985 em decorrência de complicações de uma cirurgia de emergência realizada às vésperas de sua posse. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente eleito, José Sarney.

O novo governo, embora propusesse uma “transição conservadora” que não agradava parte da oposição – que exigia eleições diretas –, havia assumido o compromisso de levar adiante três pautas consideradas centrais pelo movimento oposicionista para que se iniciasse o processo de redemocratização: “eleições diretas em todos os níveis, convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e promulgação de uma nova Constituição” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, n.p.). Dessa forma, em 1º de fevereiro de 1987 foi instalada a Assembleia Constituinte, sob a liderança de Ulysses Guimarães. A essa Assembleia cabia a construção de um novo documento que deveria refletir os desafios do período histórico que se inaugurava com a redemocratização:

novo texto constitucional tinha a missão de encerrar a ditadura, o compromisso de assentar as bases para a afirmação da democracia no país, e uma dupla preocupação: criar instituições democráticas sólidas o bastante para suportar crises políticas e estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros (SCHWARCZ; STARLING, 2015, n.p.).

Ainda, de acordo com Pilla e Rossi (2018, p. 278), “a Constituição brasileira de 1988 foi a primeira a proclamar o princípio normativo da dignidade humana, por intermédio do qual se deve interpretar e aplicar todo e qualquer direito fundamental nela previsto”. A afirmação do respeito à dignidade humana aparece já na abertura do documento constitucional, que define que os princípios fundamentais da República

votos a favor, 63 votos contrários e três abstenções. Cento e treze deputados se ausentaram. Faltaram 22 votos. Eram os deputados do partido governista soterrando a possibilidade de uma transição política que fugia ao seu controle”.

Federativa do Brasil seriam “I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político” (BRASIL, 1988) e é incorporada em outros artigos da Constituição. Adorno (2010, p. 9) lembra também que esse foi o primeiro documento constitucional brasileiro a ir além da enunciação formal de direitos e a se preocupar com instrumentos para buscar a efetivação dos direitos nele firmados: “atribui ao Estado a tarefa de promover, mediante políticas públicas, a universalização do acesso aos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais”.

Pinheiro (1997, p. 44) pondera, porém, que, quando comparadas às distribuições de poder e de autoridade entre as elites e os mais pobres, “a volta ao constitucionalismo democrático pouco efeito teve na erradicação dessas práticas autoritárias na sociedade”. Na mesma linha, Schwarcz e Starling (2015, n.p.) acreditam que a Constituição de 1988, embora seja elogiável em sua importância para o início da transição política e para afirmação do compromisso democrático, é imperfeita. Dentre as falhas do documento, apontam: “conservou intocada a estrutura agrária, permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir assuntos de seu interesse, derrubou a proposta da jornada de trabalho de quarenta horas, manteve inelegíveis os analfabetos — embora tenha aprovado seu direito de voto”.

A Constituição de 1988 marcou, portanto, como demonstram os autores aqui trazidos, o início da transição para um novo período da história do Brasil ao estabelecer as bases do Estado Democrático de Direito recém restabelecido. Trouxe como novidade a afirmação da dignidade humana enquanto valor fundamental da República, a igualdade formal perante a lei e criou certas condições para o exercício da cidadania. Também avançou na proibição a tortura e o tratamento degradante e afirmou a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Porém, ainda que seja bastante progressista e tenha representado avanços importantes, apenas o estabelecimento de uma nova Constituição não foi suficiente para eliminar o autoritarismo no Brasil nem garantir a igualdade efetiva ou o respeito universal à dignidade humana. A tortura, o tratamento degradante e outros tipos de violações de direitos humanos persistiram e persistem em diversas áreas da vida social, muitas vezes perpetradas pelo Estado, como é o caso da segurança pública. Por isso, não basta que tenhamos uma “Constituição Cidadã” sem que tenhamos os mecanismos adequados para que consigamos colocar em

prática o que nela está estabelecido nem vontade política para isso. Frente a esse desafio, surgem os planos nacionais de direitos humanos, que buscam endereçar respostas a essas problemáticas ao mesmo tempo em que se alinham ao cenário internacional no compromisso pela garantia da dignidade humana de que falarei adiante.