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3.2 ENCARCERAMENTO

3.2.2 Encarceramento massivo no Brasil

O Brasil ocupa o 3º lugar no ranking dos que mais encarceram no mundo – está atrás apenas da China e dos Estados Unidos, segundo o World Prison Population List de 2018, publicada pelo World Prison Brief. De 2000 a 2015, enquanto a população brasileira cresceu cerca de 7%, a população carcerária total quase triplicou: se em 2000 havia 232.755 pessoas privadas de liberdade no Brasil, em 2015, a população prisional chegava a 698.618. Essa tendência de crescimento persistiu nos anos seguintes e, em 2017, havia 726.354 encarcerados no Brasil. Nos 17 anos analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de encarceramento no Brasil cresceu cerca de 210% (Figura 2).

Figura 2: Evolução da população prisional brasileira entre 2000 e 2017

Fonte: Anuário da segurança pública (2019)

Hoje, no ranking dos estados que mais encarceram no Brasil, estão São Paulo (229.031), Minas Gerais (76.713), Rio de Janeiro (52.691) e Paraná (50.029)72. Esses

quatro estados estão entre os que mais registram déficit de vagas no sistema prisional. Ainda que o número total de vagas tenha quase quadruplicado nas duas últimas décadas (de 135.710 em 2000 para 423.242 vagas em 2017), o sistema penitenciário brasileiro encarcera mais pessoas do que tem capacidade infra-estrutural para receber. Em 2017, o déficit ultrapassou 280 mil vagas.

Em 2017, das pessoas privadas de liberdade no Brasil, 685.929 eram homens e 37.828 eram mulheres (Anuário..., 201973). Ainda que o número de mulheres

encarceradas seja menos expressivo do que o de homens, trata-se de uma questão que merece atenção. Apenas de 2000 e 2014, o encarceramento feminino aumentou mais de 550% (em 2000, eram 5.601 mulheres encarceradas; em 2014, 37.380) (INFOPEN, 2014). Em 2016, esse número já havia subido para 42 mil (INFOPEN, 2016). Apesar de ter registrado decréscimo em 2017, em 2018 a tendência foi de crescimento (Anuário..., 2019).

72 Embora em número absolutos o Acre prenda muito menos do que os estados supracitados (6.263), foi

neste estado que, em 2017, registrou-se a maior taxa de encarceramento, chegando a 754,9 presos para cada 100 mil habitantes (ANUÁRIO..., 2019).

73 Segundo o Anuário (2019), esse número compreende tanto aqueles que estavam presos em carceragens

O aumento do aprisionamento de mulheres pode ser atribuído à sanção da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, também conhecida como “Nova Lei de Drogas”: 68% das mulheres que estavam presas, em 2014, tinham algum tipo de envolvimento como tráfico de drogas. Ocorre que essa nova lei não estabeleceu critérios objetivos quando distinguiu a posse para consumo e tráfico de drogas. Teve como avanço a decisão de tratar o consumo como uma questão de saúde pública, ao mesmo tempo em que aumentou as penas para o tráfico, porém, por não impor critérios claros para definir o que seria considerado uma questão ou outra, tornou ainda mais discricionária a decisão sobre o tipo de registro criminal que será imputado à pessoa encontrada em posse de drogas. A falta de estabelecimento de quantidades máximas para consumo é um dos critérios objetivos faltantes que mais abre espaço para decisões arbitrárias em relação ao estigma racial e social. Também favorece esse cenário a dificuldade de reconstituir os fatos para além do relato do agente responsável pela apreensão.

A arbitrariedade na definição do tipo penal e o recrudescimento das penas para o tráfico têm levado muitas mulheres para a prisão. Trata-se de uma população prisional em ascensão, composta por mulheres jovens, negras, pobres, de baixa escolaridade e com filhos. Muitas delas são usuárias de drogas, algumas ocupam baixas posições no tráfico (em geral, transporte e pequeno varejo) e poucas são, de fato, lideranças no crime (INFOPEN, 2014). Embora sejam parte de uma população prisional em ascensão, essas mulheres não recebem, em geral, um tratamento adequado quando são inseridas num sistema penitenciário arquitetado para homens. Quando se trata de presídios mistos, ainda que existam alas separadas para mulheres, são encontrados espaços masculinamente mistos em que se reproduzem as mesmas e, às vezes, até piores desigualdades de gênero do que fora das prisões (COLARES; CHIES, 2010).

O tratamento das presas gestantes é exemplo disso. A Lei de Execução Penal brasileira (Lei 7.210/84), a partir da nova redação do art. 83 pela Lei 11.942, de 28 de maio de 2009, prevê o seguinte: “Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”. Apesar da previsão legal, em 2014, segundo o Infopen, das 103 penitenciárias femininas apenas 35 (34%) contavam com cela ou dormitório adequado para gestantes, enquanto nos estabelecimento mistos o número caía para 6% (dos 198 estabelecimentos, apenas 13). Em 2016, a situação era

um pouco melhor: das 107 penitenciárias femininas, 55 passaram a ter cela ou dormitório adequado para gestantes, mas ainda não é o suficiente. Para Marília Budó, Marcela Giuliani e Natalia Kohler (2019, p. 99), “a mãe encarcerada não é vista simplesmente como uma pessoa que cometeu um delito, mas sim, como alguém que não forneceu um suporte adequado aos seus filhos, ou seja, não cumpriu o seu papel socialmente esperado”. Essa leitura social resulta em uma dupla penalização dessas mulheres:

percebe-se que ainda que haja uma legislação regulando o direito do exercício da maternidade no cárcere, não raras vezes essas normas são violadas, seja por não haver uma prestação jurisdicional adequada, seja por não haver políticas públicas com vistas a implementar esses direitos. Além disso, a mulher encarcerada sofre com o preconceito e o estigma de não ser uma “boa mãe”, pois transgrediu, e esse fato, por si só, aos olhos de uma política criminal violadora dos direitos humanos lhe retira também essa condição (BUDÓ; GIULIANI; KOHLER, 2019, p. 101).

As autoras chamam atenção para o fato de que não se trata de um problema referente à existência de leis que garantam direitos da maternidade no cárcere, mas, sim, da aplicação dessas leis. Ao não serem efetivamente garantidos os direitos dessa população, a mãe presa, portanto, “não recebe somente uma pena legal, de privação de liberdade, mas também uma pena subsidiária, de prejudicar o convívio familiar e deixar marcas não somente em si, mas também em sua prole” (BUDÓ; GIULIANI; KOHLER, 2019, p. 101).

Outros dados relevantes para a discussão do encarceramento no Brasil são os perfis raciais e etários. Em 2018, o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) do Conselho Nacional de Justiça divulgou que 54,96% das pessoas presas no Brasil eram pretas e pardas. É importante considerar que esses dados são baseados no número de respostas disponíveis nos registros do Banco, que tem o cadastro de 602.217 pessoas.

No caso de raça/etnia, por exemplo, apenas 35% dos registros apresentavam resposta para esse item. Em relação à faixa etária, o índice de respostas para o item chega a 90%. A partir dos registros disponíveis, portanto, sabe-se que cerca de 30% dos presos no Brasil tem entre 18 e 24 anos e aproximadamente 25% entre 25 e 29 anos –

sendo que nestes números não estão considerados os jovens que cumprem medidas socioeducativas74.

Para Juliana Borges, pesquisadora negra e ativista antipunitivista, a justiça criminal no Brasil, assim como nos Estados Unidos, também está relacionada à manutenção e à promoção do racismo:

Além da privação de liberdade, ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento das vulnerabilidades. Tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social desses indivíduos negros e negras que, dificilmente, por conta do estigma social, terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la. Essa é uma das instituições mais fundamentais no processo de genocídio contra a população negra em curso no país (BORGES, 2019, p. 22).

Borges também aponta a nova Lei de Drogas, de 2006, como um marco do superencarceramento da população negra e critica que o processo de aprisionamento massivo instituído a partir da sanção dessa lei ocorre no mesmo momento em que políticas afirmativas e sociais começam a melhorar a vida dessa população e que essa relação precisa ser considerada. Como exemplo dessas ações, cita a expansão do programa Bolsa Família, a política de cotas em universidade públicas e de bolsas em universidades privadas via Programa Universidade Para Todos (Prouni), dentre outras.

Para Borges (2019, p. 88), o Brasil enfrenta um problema semelhante ao dos Estados Unidos em relação à discrepância entre as penas atribuídas a negros e brancos quando acusados de um mesmo tipo de crime: “Dos acusados em varas criminais, 57,6%

74 No Brasil, adolescentes de até 18 anos, que tenham praticado atos infracionais, estão sujeitos a medidas

socioeducativas regulamentadas pela Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a aplicação das medidas socioeducativas. As medidas socioeducativas são previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990) e podem ser as seguintes: “I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI” (BRASIL, 1990). Em relação às medidas previstas no art. 101, podem ser aplicadas as seguintes ações: “I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016); V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos” (BRASIL, 1990; 2016). No caso de internação e semi-liberdade, a instituição responsável pela execução das medidas socioeducativas é a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), a partir da decisão dos juizados regionais de Infância e Juventude.

são negros, enquanto que em juizados especiais, que analisam os casos menos graves, esse número se inverte, tendo uma maioria branca (52,6%)”. A partir de dados divulgados pelo IPEA (2015), a autora aponta que o tipo de pena ou de medida punitiva a ser aplicada depende da vara para a qual o processo será destinado. No caso das varas criminais, para onde vão principalmente os jovens negros, o destino final é, em geral, a prisão.

Critica, ainda, o fato de o destino dos processos criminais ser definido por um sistema de justiça criminal em que as pessoas que julgam são, predominantemente, homens brancos, enquanto as pessoas que são julgadas de forma mais dura, são negras e pardas. Para embasar essa crítica, Borges (2019) reúne dados divulgados pelo Censo do Conselho Nacional de Justiça (2014) e do Infopen (2014) e revela os seguintes perfis raciais:

 84,5% dos juízes, desembargadores e ministros do Judiciário são brancos, 15,4% negros, e 0,1% indígenas;

 64% dos magistrados são homens, 36% das magistradas são mulheres;  82% das vagas nos tribunais superiores são ocupadas por homens;  30,2% de mulheres já sofreram reação negativa por serem do sexo

feminino;

 69,1% dos servidores do Judiciário são brancos, 28,8% são negros, 1,9% amarelos;

 67% da população prisional é negra (tanto entre homens quanto entre mulheres) (BORGES, 2019, p. 89).

Borges afirma que isso demonstra que também há no Brasil um sistema de castas raciais semelhante àquele que Alexander (2010) observou nos Estados Unidos. No Brasil, esse sistema se caracterizaria pela estratificação por raça e o acesso diferencial à cidadania. Enquanto pessoas brancas ocupam a maioria dos postos de decisão na sociedade brasileira, a população negra tem uma mínima possibilidade de mobilidade social, a despeito de tentativas de melhoria das condições de vida desta população por meio de políticas públicas: “Por mais que políticas sociais tenham realizado mudanças robustas no acesso e na vida da população negra, é possível enxergarmos como as estruturas racistas se reordenam para que, estruturalmente, pouco se modifique” (BORGES, 2019, p. 111).

Além do problema enfrentado com os registros incompletos, estados como o Rio Grande do Sul não disponibilizaram os dados de seus tribunais de Justiça para esse

levantamento, o que revela uma dentre as dificuldades encontradas na tentativa de produzir dados sobre segurança pública no Brasil.