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2.3 DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

2.3.3 Políticas de direitos humanos no Brasil (1990-2008)

Após a eleição indireta de José Sarney, Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente eleito por votação direta desde a ditadura militar, com posse em 1990. Com o impeachment de Collor, seu vice-presidente, Itamar Franco, assumiu o cargo em 1992. Tanto o Governo de Collor quanto o de Sarney já obedeciam aos preceitos da Constituição de 1988. Apesar disso em nenhum deles é possível verificar uma política interna específica voltada aos direitos humanos, embora seja possível identificar movimentos do país para reintegrar-se à comunidade internacional, da qual havia se afastado após o golpe militar (GONZÁLEZ, 2010).

Sem esse plano específico para garantir direitos humanos, apesar do retorno ao regime democrático, os primeiros governos pós-constituinte não foram capazes de eliminar os resquícios do autoritarismo nas instituições nem de garantir plenamente os direitos afirmados na Constituição de 1988 (PINHEIRO; MESQUITA NETO, 1997; GONZÁLEZ, 2010). Apesar disso, a incapacidade de dar conta do proposto na Constituição não foi um fator limitante para que, no plano externo, o Brasil buscasse se alinhar aos esforços da comunidade internacional na promoção de direitos humanos.

Para Emily Portella (2018, p. 61), “[...] desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem realizado grandes esforços para a adoção de medidas que respeitem e garantam o conteúdo disposto nos aparatos jurídicos globais e regionais dos quais é signatário”. Externamente, isso se dá, segundo Koerner (2003, p. 145-146), “com a ratificação de tratados internacionais, a abertura de suas fronteiras a observadores internacionais”, a partir dos anos 90. Nesse período, o país passa a adotar uma postura diplomática ao participar ativamente de conferências da ONU e integrar outras instâncias multilaterais em que estão em pauta questões globais propostas pela Organização (KOERNER, 2003).

Ainda que possa parecer um contrassenso comprometer-se com a garantia de direitos humanos no plano internacional, quando, no nacional, o Estado não havia sequer conseguido retomar o controle civil da segurança pública nem eliminar as violações de direitos humanos em suas instituições, foi esse movimento, junto com a conjuntura internacional favorável, que impulsionou a incorporação dos direitos humanos nas políticas de governo na pós-redemocratização (ADORNO, 1999, 2010). Exemplo disso foi a criação do I Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-1)25,

por meio do Decreto Federal nº 1904 (anexo I) de 13 de maio de 1996, pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), cerca de um mês após o Massacre de Eldorado dos Carajás26, que chamou atenção mundial para a violência das polícias no Brasil. Em 1997,

também foi criado o Ministério dos Direitos Humanos no mesmo governo.

O Programa, é claro, não foi elaborado apenas como resposta ao massacre. Pelo contrário, segundo Adorno (1999) as propostas contidas no PNDH-1 foram amplamente debatidas em fóruns realizados entre outubro de 1995 e maio de 1996. O episódio trágico, porém, corroborou a necessidade da implantação de um plano coordenado em todo o território nacional. Além de atentar para demandas dos grupos da sociedade civil organizada e das problemáticas internas, o Programa tinha também o objetivo de acolher as recomendações da Conferência de Viena, da qual o Brasil havia participado (KOERNER, 2003; ADORNO, 2010). No plano geral, é possível sintetizar o Programa da seguinte forma:

25 Texto completo do PNDH-1, disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-

1969/anexo/and1904-96.pdf.

26 “Massacre de Eldorado dos Carajás” é como ficou conhecido o episódio da execução de 19 trabalhadores

No PNDH-1, o maior foco residiu no combate às injustiças, ao arbítrio, à impunidade, nomeadamente daqueles encarregados de aplicar leis. O Programa cuidou da proteção do direito à vida, do direito à liberdade, do tratamento igualitário das leis - “direitos humanos para todos” -, dos direitos de crianças e adolescentes, das mulheres, da população negra, das sociedades indígenas, dos estrangeiros, refugiados e migrantes, e das pessoas portadoras de deficiências, assim como se propôs a lutar contra a impunidade. Abordou igualmente a educação para os direitos humanos com vistas a fomentar uma cultura de respeito e de promoção. Sinalizou para ações internacionais, inclusive ratificação de convenções internacionais de que o país é signatário. Referiu-se ainda ao apoio às organizações de defesa dos direitos humanos, bem como o monitoramento dos programas. Silenciou quanto aos direitos à livre orientação sexual e às identidades de gênero, o que motivou protestos do movimento LGBT. Os principais resultados foram alcançados no campo da segurança pública (ADORNO, 2010, p. 12, grifos meus).

No campo da segurança pública, área em que Adorno (2010) percebe que foram registrados os maiores avanços, a maioria deles ocorre na forma de sanção de leis que regulamentam a área, conforme o quadro I:

Quadro 1: Avanços na segurança pública verificados por Sérgio Adorno no PNDH-1

Lei nº 9.299/96: transfere da Justiça Militar para a Justiça Comum a competência para julgamento de policiais militares acusados de crimes dolosos contra a vida

Lei nº 9.455/97: tipifica o crime de tortura e estabelece penas severas

Lei nº 9.437/97: torna crime o porte ilegal de armas e cria o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) Lei nº 9.474/97: estabelece o Estatuto dos Refugiados

Lei nº 9.454/97: cria o Registro de Identidade Civil e o Cadastro Nacional de Registro de Identidade Civil Lei nº 9.534/97: estabelece a universalização da gratuidade da certidão de nascimento e óbito

Decreto 2.163/97: cria a Secretaria Nacional de direitos humanos

Lei Complementar nº 88/96: estabelece o rito sumário nos processos de desapropriação para fins de reforma agrária

Lei nº 9.415/96: estabelece a presença obrigatória do Ministério Público em todas as fases processuais que envolvem litígios pela posse da terra urbana e rural

Lei nº 9.296/96: regulamenta o inciso XIIdo artigo 5º da Constituição Federal, sobre escuta telefônica e estabelece em quais hipóteses é possível a interceptação telefônica e de que órgãos é a competência de solicitá-la

Lei nº 9.303/96: altera o art. 8º da lei nº. 9.034/96, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e a repressão de ações praticadas por organizações criminosas

Fonte: Adorno (1999, p. 144).

Apesar de todos esses avanços na área da segurança pública e de ter sido o primeiro grande movimento governamental na operacionalização dos direitos humanos afirmados na Constituição de 1988, o PNDH-1, como avalia Adorno (1999, p. 146), “[...] não logrou reduzir ou mitigar os sentimentos coletivos de medo e insegurança da população e não parece ter tido algum efeito na contenção do crime urbano”. Ainda que reconheça a importância de ter colocado os direitos humanos na agenda pública, o autor afirma que o Programa não foi capaz de convencer a sociedade de que esses direitos são fundamentais à segurança pública, e não opostos a ela. As elevadas taxas de violência e de criminalidade, a violência do Massacre de Eldorado dos Carajás e as greves das polícias são alguns dos acontecimentos a que Adorno (1999) atribui o clima de desconfiança da opinião pública em relação às políticas que estavam sendo implementadas por esse governo na área da segurança pública.

Em maio de 2002, ainda no governo FHC, o documento que estabelecia o PNDH-1 foi revogado e substituído pelo PNDH-227, por meio do Decreto nº 4.229 (anexo I).

Como parte dos avanços, o novo documento acolhia críticas feitas ao PNDH-1 e avançava principalmente em duas áreas, segundo Adorno (2010, p. 12): “a incorporação dos direitos econômicos, sociais e culturais que, por razões políticas, haviam sido sombreados no PNDH-1, e os direitos de afrodescendentes”.

Em relação aos direitos da população negra, Adorno (2010, p. 13) lembra que foi no PNDH-2 que o racismo foi, pela primeira vez, reconhecido pelo Estado brasileiro e que foi assumida a necessidade de políticas compensatórias e de ações afirmativas para a população negra frente à desigualdade histórica. Como exemplo dessas ações, aponta, dentre outras: “[...] ampliação do acesso dos afrodescendentes à justiça, cadastramento e identificação de comunidades remanescentes de quilombos, preservação da memória e da cultura afrodescendente”.

Essa política de extensão de direitos humanos à população negra considerou, pela primeira vez na história do Brasil, a especificidade da constituição desse grupo social ao enunciar a necessidade de proteger também sua memória e cultura. Isso, porém, não foi assimilado sem oposição. A reação frente à expansão dos direitos da população negra e a demora do Estado brasileiro em reconhecer o racismo estrutural como limitante das oportunidades da população negra são reveladoras da presença do racismo nas nossas relações sociais. Embora a escravidão tenha sido formalmente abolida em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, há um passado de quase três séculos de exploração da população negra que não é possível apagar e cujos resquícios se fazem presentes no nosso cotidiano. Apesar de ter garantido liberdade formal para os escravos, na prática a lei que os libertou não promoveu sua integração na sociedade livre nem sequer foi capaz de por fim à lógica e à linguagem violenta escravagista (STARLING; SCHWARTZ, 2018)28.

27 Texto completo do PNDH-2 disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/anexos/anexodec4229.doc.

28 Apesar de serem maioria numérica no país, os pretos e pardos são a minoria em cargos representativos

e de liderança, recebem menos do que os brancos e têm menos acesso à educação formal. Por outro lado, eles despontam nas estatísticas criminais: são 64% da população prisional total e as principais vítimas de homicídio por estarem sujeitos, ao mesmo tempo, à violência das facções, da polícia e do sistema carcerário. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 100 vítimas de homicídio, 75 são negras. Entre 2005 e 2015, enquanto a taxa de homicídio de não-negros caiu cerca de 12%, a de negros cresceu quase 20%. No mesmo período, 65% das vítimas de homicídio do sexo feminino eram mulheres negras. De 2015 a 2016, 75% dos mortos por intervenção policial eram homens negros (SOUZA, 2018; FBSP, 2017).

Em 2009, durante o segundo mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o documento foi novamente revogado e tomou seu lugar o Decreto de nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009 (anexo I), que estabeleceu o PNDH-329. Esse plano foi certamente o

mais polêmico dos três. Apesar de polêmico, o PNDH-3 não significava uma ruptura radical em relação ao PNDH-2, mas a necessidade de reavaliação e aprimoramento das proposições anteriores. Igualmente adotava o preceito da indivisibilidade dos direitos humanos, isto é, partia do entendimento de que “direitos humanos não são apenas direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais, culturais e coletivos” (ADORNO, 2010, p. 11). Em relação aos outros, incluiu mais objetivos estratégicos e ações programáticas e passou a ser orientado por seis eixos, expressos em 25 diretrizes. São eles: I - Interação democrática entre Estado e sociedade civil; II - Desenvolvimento e direitos humanos; III - Universalizar direitos em um contexto de desigualdades; IV - segurança pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; V - Educação e Cultura em direitos humanos; VI - Direito à Memória e à Verdade.

Na avaliação de Adorno (2010, p. 13), o PNDH-3 “é flagrantemente mais extenso do que as edições anteriores, mas sua linguagem e mesmo redação não se diferenciam substantivamente”. Para ele, ainda, “[...] em essência, o PNDH-3 conserva as ações programáticas das edições anteriores, porém com maior detalhamento. Igualmente, como nas anteriores, algumas medidas dependem de leis e inclusive de mudanças constitucionais” (ADORNO, 2010, p. 13). Apesar de observar o aprofundamento e continuidade de projetos, o autor reconhece que o Programa trouxe também muitas inovações em resposta às demandas sociais e adotou uma linguagem mais direta do que nas edições anteriores. Propostas como a da criação da Comissão Nacional da Verdade, da união civil homoafetiva e do “controle da mídia” são alguns dos exemplos citados pelo autor de questões inseridas no PNDH-3, que geraram polêmica e reação de grupos conservadores e de proprietários de grandes empresas de comunicação. A proposta de descriminalização do aborto também gerou reação da Igreja Católica, que considerou a proposição uma afronta ao direito à vida firmado na Constituição (GONZÁLEZ, 2010). Diante de toda a revolta gerada pelo PNDH-3, Adorno (2010, p. 6) supreende-se, sobretudo, com “[...] o fato de que as reações tenham ressuscitado suas expressões mais

29 Texto completo do PNDH-3 disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-

conservadoras e simplórias, justamente do tipo que se suspeitava superadas – mais propriamente, o embate dicotômico, simplificador, entre defensores e críticos dos direitos humanos”.

Rodrigo Stumpf González (2010) avalia que, apesar de todos esses esforços, o Brasil ainda não foi capaz de criar uma política permanente de direitos humanos nem uma cultura de respeito a esses direitos. Pelo contrário, o país mantém-se entre avanços e retrocessos na área, de acordo com o grupo político no poder. Entende também que conquistas obtidas pelo governo Lula só foram possíveis porque esse presidente soube equilibrar os interesses das diferentes forças da sociedade, até o final do seu mandato. Para González (2010, p. 129), a política de promoção de direitos humanos nesse governo “[...] aparece como resultado do embate entre os movimentos de direitos humanos e as forças conservadoras, mediado por uma força superior, de caráter quase bonapartista, o Presidente da República, que atua como mediador entre as partes, sustentado por sua imensa popularidade”.

Não é surpreendente, diante desta realidade, que a publicação do PNDH-3 tenha causado tanta polêmica e reação de diversos setores. A enunciação de diretrizes que tocam em temas de interesse de forças sociais poderosas abalou esse equilíbrio, uma vez que, para sua aplicação, era preciso realizar mudanças nas estruturas e relações de poder. Não por acaso, após sofrer pressão, o governo recuou em muitos dos pontos de conflito do Programa. Dentre esses pontos, a descriminalização do aborto, que desagradou, sobretudo, às Igrejas.