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5.1 TEMAS PARA DEBATE

5.1.3 Corrupção

Segundo o Código Penal brasileiro, corrupção é um crime que envolve a obtenção de vantagens indevidas a partir de meios ilícitos e que pode tanto ser resultado de uma ação ativa quanto passiva. Segundo o artigo 333 do Código, trata-se de corrupção ativa “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” (BRASIL, 2017). Já a corrupção passiva é definida no artigo 317 como o ato de “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta

ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (BRASIL, 2017).

Embora seja uma categoria criminal cujas consequências impactam a efetivação dos direitos de cidadania, sendo por isso um tema de segurança pública, de acordo com a proposta de Baratta (2004), dificilmente a corrupção é tratada como tal pelo Jornalismo. O jornalista precisa atentar que, para ser uma questão de segurança pública, não precisa pressupor violência. Crimes contra o patrimônio, como furto de veículos, por exemplo, não são violentos, e, ainda assim, são considerados temas de segurança pública. Então, por que a corrupção não seria? Por envolver comumente pessoas que têm poder e prestígio social?

Outra questão que chama atenção neste tema é o fato de que o Jornalismo tende a cobrir escândalos de corrupção por agentes públicos, mas pouca atenção dá à corrupção fora do Estado - isto é, para a corrupção ativa por agentes privados. No Brasil, o histórico dos grandes escândalos de corrupção demonstra que, na maioria das vezes, agentes públicos e privados se articulam para cometer crimes com fins de enriquecimento ilícito por meio de desvios, de obtenção de vantagens indevidas e outras práticas delituosas.

Todas essas relações são complexas e nem sempre facilmente demonstráveis. Reconheço que talvez seja muito mais fácil enquadrar a corrupção como escândalo político e inseri-la em mapas de significados já conhecidos pelos jornalistas e pelos leitores. Tratar da corrupção como uma questão de segurança pública não é tarefa simples. Exige enfrentar muitos constrangimentos organizacionais que podem se interpor à pauta, sobretudo por envolver figuras públicas poderosas.

A capa da edição de 7 de março de 2015 do Extra é interessante para pensar essas questões. Trata-se de uma capa que apresenta falhas que são recorrentes na cobertura da segurança pública e, por isso, se torna um bom exemplo para debate. Nessa capa, o jornal publicou um jogo de ligar os pontos e propôs aos leitores que o fizessem. Os pontos levariam da foto de políticos acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, na parte superior, até a foto de duas crianças apreendidas após um roubo no Rio de Janeiro (figura 18). Para explicar como um ponto pode levar ao outro, no texto o jornal calcula quantas crianças poderiam ser mantidas na educação básica por um ano com o valor que supostamente teria sido desviado por aqueles cinco políticos. A intenção era demonstrar que a corrupção seria responsável por desviar recursos que

deveriam ser empregados em serviços básicos, como a educação, e isso têm impacto na efetivação dos direitos de cidadania. É na escolha das imagens que podemos apontar a primeira falha dessa capa: ao optar por colocar as fotos dos políticos em evidência, o Extra reforça sentidos de culpa e de condenação, o que se caracteriza como uma violação de direitos fundamentais de acusados que ainda estão com um processo judicial em trânsito.

Figura 18: Extra trata de corrupção na política e falta de acesso a serviços básicos

A segunda falha está quando associa a cidadania precária à criminalidade como se fosse uma relação causal direta e essa não é uma afirmação que possa fazer. Ao reportar cidadania e segurança pública, o jornalista precisa estar atento para que suas escolhas discursivas não levem a uma associação direta entre a pobreza e desassistência por parte do Estado e a criminalidade urbana, para não contribuir com a criminalização da pobreza. O jornalista deve evitar a afirmação de que a educação resolveria a criminalidade ou qualquer outro lugar-comum recorrente quando se trata do papel que a pobreza e a exclusão social desempenham nas dinâmicas do crime e da violência. Aqui o jornalista precisa atentar para a necessidade de compreender que crime e violência nunca têm apenas uma causa ou motivação. Podemos dizer que as desigualdades desempenham um papel fundamental nessas dinâmicas, mas não podemos afirmar que bastariam o acesso universal a serviços e a distribuição igualitária da renda para que os índices de crime e violência fossem zerados. Fossem a pobreza, as desigualdades e a exclusão social as únicas motivações, não teríamos, por exemplo, crimes sendo cometidos por agentes públicos e privados, de grande poder econômico e social, com amplo acesso à educação formal e aos direitos de cidadania, como vemos nos escândalos de corrupção.

Outro exemplo importante é o da “Vaza Jato”, protagonizado pelo The Intercept Brasil. Trata-se de uma série de reportagens publicadas por esse site a partir do vazamento de conversas privadas entre entes públicos por uma fonte anônima104 (figura

19).

104 A fonte anônima do The Intercept seria um grupo de hackers, que teria invadido celulares de agentes

públicos. A publicação da primeira reportagem da “Vaza Jato” desencadeou uma operação policial em busca dos supostos hackers por parte da Polícia Federal. Resulta dessa investigação a prisão de quatro suspeitos de envolvimento no hackeamento. Em depoimento, os suspeitos afirmaram que todos os contatos realizados com o editor-chefe do The Intercept Brasil, Glenn Greenwald, ocorreram virtualmente, sem que a identidade do hacker fosse revelada. O contato entre o hacker e o jornalista foi intermediado pela ex-deputada e jornalista Manuela D’Ávila. Ao insistir em publicar trechos das conversas privada,s por entender que o interesse público, no caso desses trechos, se sobrepunha ao direito à privacidade dos envolvidos, Greenwald tornou-se alvo de tentativas de incriminá-lo como cúmplice no crime de hackeamento. Glenn Greenwald é um jornalista estadunidense que foi responsável pelo vazamento de informações sobre o programa de espionagem global da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, a partir de documentos fornecidos por Edward Snowden. Por essa cobertura, Greenwald ganhou o Prêmio Pulitzer de Jornalismo em 2014. Ainda que a Polícia Federal tenha concluído que não há motivos para o indiciamento de Greenwald nem de Manuela D’Ávila (o que se chegou a cogitar também), o Ministério Público Federal denunciou o jornalista por envolvimento na invasão de celulares de autoridades públicas, contrariando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Uma liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, havia proibido que fossem praticados atos de responsabilização do jornalista pela recepção, obtenção e transmissão das informações em questão, por entender que essa

Figura 19: Série do The Intercept Brasil revela conversas secretas da Lava Jato

Fonte: The Intercept (9 de junho de 2019).

As conversas demonstraram haver em curso um conluio entre diferentes instâncias investigatórias e persecutórias da “Operação Lava Jato105”. Além de ser um

escândalo político, trata-se também de uma questão de segurança pública na medida em que envolve investigação de crimes, prisões preventivas e outros processos de persecução criminal. Também é uma questão de segurança pública porque trouxe a público discussões como sobre a prisão em segunda instância e a condução coercitiva para prestação de depoimento. Embora esses temas tenham aparecido motivados por ocorrências envolvendo políticos, também são interesse de toda a sociedade civil porque têm impacto sobretudo nos mais pobres, que não têm condições de bancar os altos custos de defesa em um processo penal.

O caso da “Vaza Jato” é muito importante para o Jornalismo porque coloca uma série de questões sobre ética, interesse público e relação com as fontes. A primeira parte da série de reportagens é acompanhada por um editorial intitulado “Como e por que o

responsabilização contraria princípios constitucionais de garantia de sigilo à fonte jornalística e da liberdade de imprensa.

105 “Lava Jato” foi o nome dado à operação da Polícia Federal iniciada em 2014, que investiga um esquema

de desvios bilionários que atingem vários setores do poder público e grandes empresas privadas. A operação já registrou mais de 60 fases e 300 pessoas presas, entre políticos e empresários.

Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sérgio Moro”. Nele, os editores do site explicam:

Intercept Brasil publicou hoje três reportagens explosivas mostrando discussões internas e atitudes altamente controversas, politizadas e legalmente duvidosas da força-tarefa da Lava Jato, coordenada pelo procurador renomado Deltan Dallagnol, em colaboração com o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, celebrado a nível mundial. Produzidas a partir de arquivos enormes e inéditos – incluindo mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais e outros itens – enviados por uma fonte anônima, as três reportagens revelam comportamentos antiéticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer (GREENWALD, REED, DEMORI, 2019, grifos dos autores).

Sobre a decisão de publicar conversas privadas cujo interesse público prevalecesse sobre o interesse privado, os editores explicam também:

Informar à sociedade questões de interesse público e expor transgressões foram os princípios que nos guiaram durante essa investigação, e continuarão sendo conforme continuarmos a noticiar a enorme quantidade de dados a que tivemos acesso (GREENWALD, REED, DEMORI, 2019).

Também revelam a decisão editorial de não publicar informações privadas que não dissessem respeito às transgressões da força-tarefa da Lava Jato, ao avaliar e selecionar o material:

O enorme volume do acervo, assim como o fato de que vários documentos incluem conversas privadas entre agentes públicos, nos obriga a tomar decisões jornalísticas sobre que informações deveriam ser noticiadas e publicadas e quais deveriam permanecer em sigilo. Ao fazer esses julgamentos, empregamos o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas, mas as que são puramente privadas e infringiriam o direito legítimo à privacidade ou outros valores sociais devem ser preservadas (GREENWALD, REED, DEMORI, 2019).

A cobertura da imprensa brasileira sobre a Lava Jato, em geral, é bastante discutível. Em uma análise retrospectiva da atuação dos grandes veículos é possível verificar como essa operação foi aplaudida e exaltada e também como foram supervalorizados tanto os procuradores da Lava Jato quanto o juiz Sérgio Moro,

responsável pelo julgamento do caso. Se antes esses agentes eram desconhecidos do público em geral, ganharam visibilidade, fama (e até mesmo dinheiro com a participação em eventos e palestras) quando passaram a estampar o noticiário. A dependência das fontes oficiais e das informações provenientes por vazamentos seletivos por essas fontes também exige atenção porque se reflete no tom elogioso, amigável e pouco questionador da cobertura de uma operação tão controversa.

Ao publicar a “Vaza Jato”, o The Intercept Brasil foi na contramão dos veículos de grande mídia e demonstrou não somente o funcionamento esperado das instituições envolvidas na operação como qual papel deveria ter sido cumprido por cada uma dessas instituições e não foi. Ao evidenciar o conluio e a atuação político-ideológica de membros da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, que seriam responsáveis por investigar e indiciar, denunciar e julgar, respectivamente, colocou em xeque a separação dos poderes (figura 20).

Figura 20: Série do The Intercept Brasil revela conversas secretas da Lava Jato

Fonte: The Intercept (9 de junho de 2019).

Também demonstrou os interesses e as relações de poder que estavam em jogo para além do combate à corrupção, quando as ações do MPF buscavam interferir até mesmo no resultado do processo eleitoral (figura 21).

Figura 21: Série do The Intercept Brasil revela conversas secretas da Lava Jato

Fonte: The Intercept (9 de junho de 2019).

Além desses aspectos, o The Intercept Brasil também traz como exemplo a colaboração jornalística. Ao se deparar com o volume de informações fornecidas pela fonte anônima, e por entender que as reportagens deveriam atingir o maior número possível de leitores, o site decide atuar em parceria para verificar e publicar os conteúdos que tinha em mãos. O jornalista Reinaldo Azevedo, o jornal Folha de S. Paulo e a revista Veja foram parceiros do The Intercept nesta série que ampliou o conhecimento do leitor sobre as instituições brasileiras, sobre os bastidores da Lava-Jato e sobre questões ético-legais transformadas em disputas político-ideológicas.

Nesta seção, tratei sobre a corrupção como um tema que, embora habitualmente seja abordado como uma questão do campo da política, é também um tema de segurança pública. Chamei atenção para o fato de que para ser uma questão de segurança pública não precisa necessariamente implicar violência, mas se interpor à efetivação da cidadania e ao bem-estar público. E é isso que a corrupção faz quando desvia recursos que deveriam ser investidos em serviços e equipamentos públicos de qualidade, que deveriam ser de acesso universal. Também atenta contra a dignidade humana ao criar condições desfavoráveis à efetivação dos direitos de cidadania daqueles que dependem exclusivamente de serviços e equipamentos públicos. A corrupção é, portanto, um tema de segurança pública que tem ramificações em várias áreas da vida social e o jornalista precisa tratá-lo como tal.