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A constituição de uma disciplina de entremeios: análise de discurso

No documento TERRA, CIDADANIA E EXCLUSÃO: (páginas 53-57)

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.1 A constituição de uma disciplina de entremeios: análise de discurso

Este trabalho inscreve-se na perspectiva teórica da Análise do Discurso (doravante AD), de origem francesa, que tem como principal precursor Michel Pêcheux, de modo a considerar a articulação que esta disciplina faz com a Linguística (Saussure), o Marxismo (releitura de Althusser) e a Psicanálise (releitura de Lacan). Aterrissar no campo da Análise do Discurso é uma tarefa complexa, uma vez que não basta mostrar e relacionar as especificidades entre esses três domínios, mas sim averiguar como eles estão imbricados e como a AD os concebe ao trabalhar nos limites de essas três áreas. Orlandi (2009, p. 19-20), ao refletir sobre os fundamentos dessa disciplina, argumenta que:

a- a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise de linguagem);

b- a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);

c- o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.

A AD trabalha entre três campos teóricos - Linguística, Marxismo e a Psicanálise; entretanto, sua tarefa não se dá de modo servil, uma vez que, ao trabalhar na confluência desses domínios, de acordo com Orlandi (2009, p. 20) “irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto que vai afetar essas formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto é o discurso”. A articulação entre esses três domínios nos estudos discursivos culmina na crítica à concepção de leitura e interpretação, bem como problematiza a relação do sujeito com o sentido.

A preocupação de Pêcheux com a elaboração de um dispositivo teórico de análise dos processos discursivos o leva a considerar não somente a maneira como um texto significa, mas a relação deste com a história, com a exterioridade que lhe é constitutiva. Para Orlandi (2009, p. 16) há, portanto, uma relação necessária entre a linguagem, o sujeito e o mundo que o rodeia que implica considerar as “condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos

que a falam e as situações em que se produz o dizer”, uma vez que a exterioridade significa e produz sentidos.

Gregolin (2001, p.13) afirma que o ponto crucial é “entender como se relacionam os elementos intradiscursivos (da ordem da língua) com os elementos interdiscursivos (tendo em conta que esse „exterior‟ é constitutivo do sentido)” na tentativa de se buscar uma maneira para se pensar o histórico e o político como parte do processo simbólico de modo a constituir o sujeito. Nessa reflexão, o sujeito não existe a priori, mas é uma função no discurso, “é aquele que pode usar (quase sempre com exclusividade), determinado enunciado por seu treinamento, em função da ocupação de um lugar institucional, de sua competência técnica” (ARAUJO, 2011, p. 97), podendo assumir diversas posições em uma determinada formação discursiva.

Ao problematizar a relação entre a língua e sua exterioridade, esse novo conceito passa a ser articulado na teoria discursiva - a formação discursiva - que, tomada de empréstimo do filósofo e historiador Michel Foucault, vai reorganizar a teoria

pecheutiana e inaugurar a segunda fase da AD se desvencilhando da noção de “máquina estrutural fechada à medida que o dispositivo da FD está em relação paradoxal com seu „exterior‟” (PÊCHEUX, 1983, p. 314).

Para Foucault (2008), as regras que definem uma formação discursiva apresentam-se, pois, por meio de um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias de modo que tais elementos tendem a permitir a passagem da dispersão para a regularidade entre os enunciados. Uma análise que leva em consideração os postulados do historiador no que concerne à noção de formação discursiva. Ela deve empreender a árdua tarefa de diagnosticar as relações existentes entre o poder e o saber, dando ênfase principalmente aos diferentes modos de subjetivação do ser humano por meio do discurso.

A contribuição dos estudos de Foucault para a Análise do Discurso é fundamental, pois o autor traça uma reflexão buscando compreender não a formação dos discursos, mas quais os poderes e perigos que esses discursos carregam, quais saberes e verdades se escondem em meio a agrupamentos discursivos tão familiares. A questão crucial que se coloca é como determinados objetos passam a ser instituídos como objetos de saber e ganham legitimidade em uma determinada formação

discursiva, considerando que um determinado objeto irrompe enquanto acontecimento quando condições discursivas e históricas o produzem. Para Foucault (1996, p. 8-9)

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Nessa perspectiva, o discurso não é transparente, neutro, mas está intimamente ligado ao desejo e ao poder, uma vez que o sujeito fala a partir de um lugar institucionalmente reconhecido.

Para Foucault (1996), o discurso apresenta três procedimentos de exclusão que aqui serão destacados por sua relevância para a pesquisa, a começar pela interdição, que determina o poder de dizer algo, em quais circunstâncias, de que posição e quem tem o direito de proferir tal discurso. No que se refere ao segundo procedimento - da separação e da rejeição - trata-se daquele discurso que não merece ser ouvido, em que a palavra constitui o lugar da separação entre os ditos “normais e anormais”. Trata-se de uma separação e uma rejeição do sujeito que diz e de seu discurso, já que seu dizer não é levado em consideração, não tem nenhum efeito sobre o outro. O terceiro procedimento de exclusão externo ao discurso é oposição do verdadeiro e do falso que se efetivou pela vontade de verdade, que se deslocou do ato de enunciação ritualizado para o próprio enunciado, de modo que este faz sentido ao se apoiar em um suporte institucional.

Os discursos, portanto, nunca estão em igualdade, mas em constante tensão entre conflitos e contradições, estabelecendo uma ordem própria por meio de regras que o delimitam em que a questão crucial deixada para a AD ao se analisar um enunciado, conforme Foucault (2008, p. 31), pode ser resumida em “que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte?”.

Ao enfatizar a contradição existente entre os discursos, Foucault (2008, p. 173) argumenta que esta é marcada por diferentes tipos, diferentes níveis segundo os quais pode ser demarcada, diferentes funções que ela pode exercer, podendo ser classificadas em: derivadas, extrínsecas e intrínsecas. Derivadas: nascem na mesma formação discursiva e sob as mesmas condições de exercício da função enunciativa; extrínseca:

remetem à oposição entre as formações discursivas distintas; e intrínsecas: as que se desenrolam na própria formação discursiva e que, nascidas em um ponto de sistema das formações, fazem surgir subsistemas.

Portanto, a análise do campo discursivo busca compreender o enunciado em sua singularidade de acontecimento (FOUCAULT, 2008, p. 31,), procurando elucidar as condições de sua emergência e estabelecendo relações com outros discursos. Para o autor, um enunciado é sempre acontecimento, uma vez que abre espaço para sua inscrição na memória, já que é suscetível de repetição, transformação e reativação, sobretudo porque está ligado ao interdiscurso, ou seja, a outros enunciados que vieram antes e depois dele ou, no dizer de Orlandi (2009, p. 30): “aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”.

Ligado à memória discursiva, encontra-se a noção de arquivo, aqui abordado pelas lentes foucaultianas como aquilo que

faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas (FOUCAULT, 2008, p. 146).

Arquivo, portanto, é aquilo que determina o que pode e deve ser dito. É o sistema que concebe o enunciado enquanto um acontecimento singular e que faz com que alguns discursos circulem, permaneçam ou desapareçam no tempo. Portanto, está submetido às relações de poder, uma vez que todo discurso é permeado pelo poder, mas é também, conforme Coracini (2007, p. 17), “o lugar da resistência do sujeito a esse mesmo poder”.

Embora seja um efeito das relações de poder, o sujeito nunca está totalmente submisso, pois sempre há possibilidade de reação contra as forças que lhe são impostas. Como sujeito de linguagem, é por meio desta que o sujeito encontra brechas, marca sua singularidade e se constitui frente à um Outro26, à alteridade que o transforma.

26O “Outro” refere-se ao inconsciente: lugar “onde o sujeito, efeito de linguagem, advém dividido, na forma de uma não-coincidência consigo mesmo, um sujeito radicalmente separado de uma parte de si mesmo” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 186).

No documento TERRA, CIDADANIA E EXCLUSÃO: (páginas 53-57)