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Vários fatores contribuíram para o ingresso maciço das mulheres na profissão docente, a ponto de essa profissão passar a ser estereotipada como sendo profissão feminina. Hypólito (1997) destaca que, com o desenvolvimento da industrialização, a mulher tornou-se participante do mundo do trabalho, especialmente da profissão docente, e que, dentre as características femininas que se adequavam às da profissão de ensinar, destacam-se:

A proximidade das atividades do magistério com as exigidas para as funções de mãe; as “habilidades” femininas que permitem um desempenho mais eficaz de uma profissão que tem como função cuidar de crianças; a possibilidade de compatibilização de horários entre o magistério e o trabalho doméstico, já que aquele pode ser realizado em um turno; a aceitação social para que as mulheres pudessem exercer essa profissão. (HYPÓLITO, 1997, p. 55).

Evidenciam-se, nessa passagem da obra de Hypólito, algumas representações que se perpetuaram, não significando, porém, que têm fundamentação. No caso de trabalhar um turno, por exemplo, sabemos que não é isso que tem acontecido, a grande maioria das professoras tem carga horária semanal de 40 a 60 horas, sendo este um dos fatores que tem contribuído para o surgimento do mal-estar docente (GONÇALVES, 2008).

Estudos anteriores, como os de Mello (1987), Novaes (1984) e Cardoso (1991), já indicavam que a grande maioria das professoras trabalha mais de 40 horas semanais, sem considerar as atividades escolares extras que são levadas para casa, como correção de provas, trabalhos, preparação de aulas, entre outros, que podem chegar a até 15 horas de trabalho semanal.

Há outros fenômenos que, segundo Hypólito (1997), facilitaram o processo de feminização do magistério, como: a) o aumento de escolaridade das mulheres nas chamadas escolas normais; b) o ideário de vocação conjugado com as habilidades femininas; c) a saída dos homens desse mercado de trabalho; d) a possibilidade de salários iguais. Cada um desses aspectos será analisado na seqüência, com ênfase para o que se refere ao afastamento dos homens desta área de atuação profissional.

O aumento da escolaridade feminina das mulheres em escolas normais aconteceu por ser considerado um curso mais adequado para a mulher, que possibilita um bom preparo para a futura mãe de família. Louro (1989, p. 35) questiona: “Que outra atividade proporcionaria o contato com princípios, assuntos e habilidades mais adequados à dona-de-

casa ilustrada, mãe e esposa dedicada e de boa formação moral?” E conclui que “Daí a organização dos cursos normais com pontos de ligação com o lar, com sólida orientação moral e religiosa, etc.”.

Quanto ao ideário de vocação conjugado com as habilidades femininas, Hypólito (1997) critica a idéia de magistério como sinônimo de vocação, que costuma ser relacionada como missão e sacerdócio ou “Missão nobre e divina” (p. 56). Ressalta que, apesar de esta conotação anteceder a entrada das mulheres no magistério, a inserção feminina na escola “[...] é uma síntese mais acabada de todas essas relações, pois se constitui numa combinação entre vocação/ensino/maternidade/funções domésticas.” (p. 57).

Para Bruschini e Amado (1998), historicamente o conceito de vocação foi aceito e expresso pelos próprios profissionais da educação, que defendiam a idéia de que a carreira do magistério era adequada à natureza feminina e para desenvolver as atividades docentes, era preciso haver sentimento, dedicação, minúcia e paciência, características mais facilmente encontradas em mulheres. Por predominar a idéia de que as pessoas têm aptidões e tendências inatas para certas ocupações, o conceito de vocação foi um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a escolher as profissões menos valorizadas socialmente, como acabou se tornando o magistério.

Outra dimensão da concepção do magistério como vocação ou sacerdócio foi construída historicamente a partir do século XIV na Europa, quando se abriram escolas elementares para as camadas populares e o clero não deu conta de atender sozinho a toda a demanda existente. Uma alternativa encontrada foi convocar os colaboradores leigos que, ao assumir a profissão docente, devia, da mesma forma que os religiosos, fazer uma profissão de fé, jurando fidelidade aos princípios da instituição e doação sacerdotal aos alunos, independentemente das condições de trabalho e do salário. Todo este contexto está associado ao termo professor, que, originalmente, designa “aquele que professa” (HYPÓLITO, 1997).

Em contrapartida, encontra-se nesta concepção uma forte relação com a imagem social da mulher. Não foi por acaso que as mulheres foram amplamente aceitas na área da educação, afinal, o ser feminino abnegado e puro era a pessoa mais adequada para assumir a profissão de fé do sacerdócio do magistério. Para Hypólito (1997), esta imagem feminina influenciou na desvalorização social da mulher, da mesma forma que a concepção de magistério enquanto dom ou vocação justifica o desprestígio das professoras.

De acordo com o educador Paulo Freire, a vocação pode ser considerada como uma força misteriosa que explica a quase devoção daqueles que permanecem no magistério, cumprindo a sua função da maneira como podem, apesar da imoralidade dos baixos salários.

Sendo assim, seria interessante desmistificar a naturalização do termo vocação, que, ao contrário de ser um dom inato, pode ser entendido como a capacidade de desempenhar bem o trabalho docente, de superar as dificuldades e de lutar pela qualidade da educação. Trata-se, portanto, de uma característica profissional aprendida e desenvolvida com muito esforço e dedicação.

Quanto à associação das chamadas “habilidades femininas” com o ensino escolar, Hypólito (1997) enfatiza que as habilidades da dona de casa e de esposa costumam ser transferidas para a função docente, pois, ao ser desempenhada por uma mulher, pressupõe-se que a profissional tenha ou deveria ter algumas características como: docilidade, submissão, sensibilidade, paciência, entre outras.

É interessante notar que estas representações permanecem inseridas no nosso cotidiano escolar. Um estudo realizado por Gonçalves (2008), sobre bem-estar e mal-estar docente e a sua relação com o gênero, mostrou que os homens professores ainda acreditam que eles têm maior autoridade sobre os alunos, por serem as mulheres professoras mais sensíveis e sentimentais. Ou seja, a associação das “características” ou “habilidades” femininas com a profissão docente continua sendo efetivada pelas representações sociais existentes.

A saída dos homens desse mercado de trabalho, ou seja, do magistério, deve-se, essencialmente, às condições econômicas ou salariais. Nóvoa (1991) comenta que os homens passaram a procurar por profissões mais lucrativas e, conseqüentemente, abandonaram as escolas normais. E acrescenta que os homens que persistem em permanecer na profissão são os “incapazes” ou os “pobres”, que não possuem outras alternativas.

Cabe aqui uma reflexão relacionada ao tema da minha pesquisa: – Se os poucos homens que permaneceram no magistério eram incapazes, o que dizer dos homens professores que conseguiram construir uma carreira bem-sucedida na área da educação? Parece-me que há uma generalização que reflete as representações que a sociedade possui acerca da inserção de homens na carreira docente. Acredito que essas representações atrapalham tanto aqueles que já atuam e mais ainda os que gostariam de passar a atuar neste tipo de trabalho, mas acabam escolhendo outra carreira profissional. Por isso creio que é importante evidenciar, com maior ênfase, as experiências masculinas que deram certo na carreira do magistério.

O afastamento dos homens por questões relacionadas a baixos salários pode ser evidenciado nos relatos de um professor, aquele identificado pelo nome de “Antônio” nos estudos de Demartini e Antunes (1993, p. 7): “Inútil seria dizer que justamente os bons elementos são os que deixam o magistério mais depressa. O número de professores tem

diminuído sensivelmente, enquanto que a quantidade de professoras aumenta em prejuízo do ensino.”

Outro fator histórico, econômico e social que influenciou na saída dos homens e na entrada das mulheres na área da educação diz respeito às representações sociais relativas à manutenção financeira do lar. No período em que as mulheres não trabalhavam fora de casa, os homens eram os provedores, responsáveis pelas obrigações do lar. A mulher professora, que não tinha essas obrigações, aceitava com maior facilidade um salário menor, por considerar que se tratava apenas de uma complementação com as despesas domésticas (BRUSCHINI E AMADO, 1998).

Paradoxalmente, o que podemos observar na atualidade é que muitas professoras são as provedoras das necessidades do lar, ainda que atualmente isso ocorra por fatores diversos: ou elas têm filhos e não têm marido; ou seus companheiros ganham menos ainda nas suas funções profissionais; ou simplesmente estes parceiros estão desempregados. É comum, nas conversas do cotidiano, ouvir afirmações de que a profissão de determinado sujeito é ser “marido de professora”. Apesar de não haver dados estatísticos, é possível dizer que o magistério é uma das profissões que mais conta com mulheres que se submetem a assumir os compromissos financeiros do lar, aceitando que os seus parceiros fiquem sem trabalhar.

O último fator que, segundo Hypólito (1997), facilita o processo de feminização do magistério, refere-se à possibilidade de salários iguais entre homens e mulheres. Apesar de os salários serem considerados baixos em razão da complexidade que o trabalho docente envolve, esta profissão tem sido considerada uma das poucas em que as mulheres podem ter os salários compatíveis com os dos homens. Enguita (1991) relata que a escola tem sido um dos espaços em que tem ocorrido a democratização das relações sociais e de gênero.

Retomando a idéia de magistério como profissão feminina, vejo que é oportuno refletir sobre possíveis conseqüências apontadas por alguns estudiosos desta temática. Enguita (1991) menciona três conseqüências: fazer da escola um espaço menos sexista; a relação da escola com o mundo do trabalho que altera a relação das professoras com as classes sociais; e a relação da feminização com o processo de proletarização. Enguita considera que o processo de feminização do magistério tem contribuído com a proletarização ou tem dificultado a profissionalização do trabalho docente.

Seguindo esta linha de pensamento, Novaes (1984) relaciona a condição feminina com a organização do trabalho docente, organização que é caracterizada pelo parcelamento, pela racionalização, pela hierarquização e pela divisão do trabalho. Reconhece que não é o único fator responsável pelo fracionamento do trabalho docente, mas que não se pode ignorar

que a maciça concentração de mulheres influência tanto no processo de taylorização da organização escolar quanto na desvalorização do trabalho educativo.

Para finalizar, apresento as proposições de Araújo (1990). Este, ao desenvolver um estudo sobre a feminização do magistério em Portugal, afirmou que o ensino não deveria ser majoritariamente desenvolvido por mulheres. Entende que, devido à desvalorização salarial, os homens se afastaram da profissão docente, o estatuto do professorado gradativamente foi sendo degradado, e as implicações destas mudanças se refletiram na própria qualidade do ensino.

É evidente que outros fatores também contribuíram para o afastamento dos homens do magistério. É o caso, por exemplo, dos estereótipos de gênero, estereótipos que influenciam a vida de homens e de mulheres, inclusive em relação à escolha profissional.