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A constituição do monopólio da violência física e simbólica legítima

1 O ESTADO E O PODER SIMBÓLICO

1.3 A constituição do monopólio da violência física e simbólica legítima

Já vimos, com Marx e Weber, que o Estado é uma força social concentrada e organizada, que resultou da monopolização reivindicada com sucesso dos meios para o exercício da violência física. Ademais, que o exercício da violência física é legítimo, isto é, considerado legítimo pelos indivíduos, sendo esta crença compartilhada fundadora da obediência, da ordem social. Isso quer dizer que, por um lado, determinados agentes tiveram sucesso em desapossar outros agentes dos meios de coerção, acumulando desta maneira os recursos materiais; por outro lado, que os agentes que construíram o Estado também tiveram sucesso em acumular, em concentrar, outros recursos de idêntica importância, quais sejam os recursos simbólicos, fonte do reconhecimento da legitimidade do exercício da violência estatal.

Bourdieu parte das teses de Max Weber e de Norbert Elias acerca da formação do Estado, ou seja, da ideia de que o Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital,

capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, de informação etc. (1997, p. 99), ou seja, de um processo de monopolização, principalmente da força militar e da tributação, cujo resultado, ao cabo de muitas lutas de eliminação foi a constituição do que conhecemos por Estado. Vejamos a clara definição de Elias:

A sociedade que hoje denominamos era moderna caracteriza-se, acima de tudo no Ocidente, por certo nível de monopolização. O livre emprego de armas militares é vedado ao indivíduo e reservado a uma autoridade central, qualquer que seja seu tipo, e de igual modo a tributação da propriedade ou da renda de pessoas concentra-se em suas mãos. Os meios financeiros arrecadados pela autoridade sustentam-lhe o monopólio da força militar, o que, por seu lado, mantém o monopólio da tributação (1993, p. 98). Contudo, Bourdieu centra sua análise na acumulação de recursos simbólicos, do que o autor chama de capital ou poder simbólico31, que é de fundamental importância, inclusive porque é

31 “O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital, físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor” (1997, p. 107); “por capital simbólico entendo essa forma de capital que nasce da relação entre uma espécie qualquer de capital e agentes socializados de maneira a conhecer e reconhecer essa espécie de capital” (2014, p. 259). Segundo Bourdieu, para pensar adequadamente na questão básica, como é possível que os dominados obedeçam, é preciso “reintroduzir esse paradoxo da força simbólica, do poder simbólico” (2014, p. 224), “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (2011, p. 08). O poder simbólico é “poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de

condição para a acumulação de recursos materiais: “tudo remete à concentração de um capital simbólico de autoridade reconhecida que, ignorado por todas as teorias sobre a gênese do Estado, surge como condição, ou, pelo menos, como o acompanhamento de todas as outras formas de concentração” (1997, p. 107). Tanto a monopolização da força física quanto da cobrança de tributos, e a consequente formação de toda a máquina estatal, inclusive das funções jurisdicionais, correu em paralelo e dependeu da concentração de um capital simbólico, do reconhecimento da legitimidade, do convencimento dos antigos guerreiros de que eles não podiam mais deter as armas e utilizá-las como bem entendessem, do convencimento de todos de que o cobrador de tributos não está praticando uma pilhagem, uma extorsão. Diante do que já procuramos demonstrar, de que o Estado constituiu as estruturas cognitivas segundo as quais é pensado, obtendo assim a submissão dóxica, que foi possibilitada pela acumulação de capital simbólico, o sociólogo francês considera fundamental “restituir à doxa seu caráter paradoxal” (2011c, p. 05), o que quanto ao tema em análise significa estudar geneticamente as condições em que se operou a acumulação inicial de capital simbólico (2014, p. 112). Trata-se de um antídoto contra a amnésia da gênese, “inerente a toda institucionalização exitosa”, a toda instituição que conseguiu se impor como óbvia, de maneira a fazer ressurgir “o arbitrário dos inícios” (2014, p. 166)32.

Neste caminho, encontraremos os juristas.

O monopólio da violência física foi construído em meio a lutas que resultaram no desapossamento de outros detentores dos instrumentos de coerção, que ademais tinham o direito, ou melhor, a

mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (Bourdieu, 2011, p. 14).

32 “Eis por que, sem dúvida, não há instrumento de ruptura mais poderoso do que a reconstrução da gênese: ao fazer com que ressurjam os conflitos e os confrontos dos primeiros momentos e, concomitantemente, os possíveis excluídos, ela reatualiza a possibilidade de que houvesse sido (e que seja) de outro modo e, por meio dessa utopia prática, recoloca em questão o possível que se concretizou entre todos os outros” (Bourdieu, 1997, p. 98).

legitimidade para utilizá-los33. Este processo, ao cabo do qual surgiu o

poder concentrado, propriamente estatal, primeiro privado, confundido com o próprio rei, e depois tornado público, foi permeado de resistências centrífugas, descentralizadoras, antimonopolistas. Elias estudou a fundo este processo e demonstrou que, após um período de “livre concorrência” entre famílias guerreiras, o controle que era exercido sobre as pessoas que viviam nas terras dessas famílias foi transformado, “com o aumento da divisão das funções e no curso de numerosas lutas, no controle centralizado do poder militar e dos tributos e impostos regulares sobre uma área muito mais ampla”. A partir daí, “nessa área, ninguém mais podia usar armas, erigir fortificações ou recorrer à violência física de qualquer tipo sem permissão do governo central”, que significava “algo muito novo numa sociedade em que, originariamente, uma classe inteira de pessoas podia usar armas e empregar a violência física segundo seus meios e inclinações” (1993, p. 172).34 Tratando especificamente da formação do Estado francês, Elias

nos ajuda com um exemplo esclarecedor acerca das estratégias monopolistas do poder central, principalmente buscando defender-se da usurpação da coroa por parte da alta nobreza, isto é, dos familiares mais próximos do rei:

33 Conforme Foucault, na sociedade feudal “(...) há uma concentração das armas em mãos dos mais poderosos que tendem a impedir sua utilização pelos menos poderosos. Vencer alguém é privá-lo de suas armas, derivando daí uma concentração do poder armado que deu mais força, nos estados feudais, aos mais poderosos e finalmente ao mais poderoso de todos, o monarca” (2001, p. 64).

34 E. P. Thompson, em The making of the English working class, mostra que já no século XVIII, na Inglaterra, “desconfiava-se profundamente do exército permanente” e havia “grande descontentamento quanto a construção de casernas perto das cidades industriais” (2011, p. 104). Por isso, as patrulhas de recrutamento e os centros de engajamento forçado, utilizados para o recrutamento militar, eram instituições odiadas, tendo sido os centros de Holborn, Londres, Clerkenwell e Shoreditch “assaltados e destruídos por turbas, em três dias de motim no mês de agosto de 1794” (2011, p. 105). Da mesma forma, “a resistência a uma força policial efetiva se prolongou por boa parte do século XIX”, época em que ainda “qualquer força centralizada com poderes mais amplos” era vista como um sistema de tirania (2011, p. 105).

(...) certamente não foi por acaso que a assembleia dos notáveis convocada por Richelieu em 1627 exigiu antes de tudo que nenhuma fortaleza fosse deixada nas mãos dos Grandes, que todas as fortalezas não necessárias diretamente para a defesa do país fossem demolidas, que ninguém tivesse o direito de possuir ou de fabricar canhões sem a aprovação da Coroa. A partir dessa assembléia (...) aprovou-se sem nenhuma oposição a verba para um exército permanente, de aproximadamente 20.000 homens, cuja incumbência era, além de defender o país contra os inimigos externos, assegurar a ordem pública e defender a reputação do rei. Desse modo, Richelieu atacava a última posição de poder da alta nobreza” (2001, p. 200)35.

Tratando do mesmo assunto, mas agora com foco na sociogênese do monopólio da tributação, Norbert Elias reconstrói e ilumina a resistência oferecida às institucionalizações de tributos permanentes, que acabaram ao final do processo tornando-se devidos pelos agora súditos. Conforme Elias, a obrigação de pagar continuamente certa parte da renda e da riqueza ao poder central era uma situação ainda pouco concebível, pois na “economia da troca daquela época, quando a moeda era relativamente rara, a exigência de pagamentos monetários por príncipes e reis (...) era considerada como algo inteiramente sem precedentes, e julgada como se fosse uma pilhagem ou o lançamento de tributos sobre uma terra conquistada” (1993, p. 172). E quando em 1292 o rei instituiu um tributo que deveria incidir sobre todas as mercadorias vendidas, um cronista da época

35 Nilo Batista, tratando do monopólio régio do cárcere, transcreveu um artigo das Ordenações Afonsinas que estatui no mesmo sentido da política de Richelieu: “Ao Rei, ou Príncipe da terra – lia-se nas Ordenações Afonsinas – pertence somente fazer e ter cárcere, que se chama Cárcere público (...) e qualquer outro, que per si faz cárcere, contradiz ao Rei ou Príncipe dessa terra e Senhorio, porque lhe usurpa a sua jurisdição” (2006, p. 295).

considerou tal ato “uma extorsão de tipo até então desconhecido no reino francês” (1993, p. 174). Comentando Elias, Bourdieu percebe que “a instituição do imposto foi o resultado de uma verdadeira guerra interna, feita pelas agentes do Estado contra as resistências dos súditos, que se descobrem como tais (...) descobrindo-se como pagadores, como contribuintes”, e que só ao cabo deste processo o imposto passou a ser visto como uma prestação adequada às necessidades do “corpo fictício que é o Estado” (1997, p. 102).

Elias também nota que paralelamente à monopolização dos instrumentos de coerção e da cobrança de tributos - numa lógica circular, a força pública é sustentada pelos tributos, cuja cobrança é garantida pela força pública - foi surgindo lentamente “uma máquina duradoura, especializada, para a administração do monopólio”, composta por agentes especializados investidos de funções oficiais, e que “só depois que surge esse complexo aparelho é que o controle sobre o exército e a tributação assume seu pleno caráter monopolista”, momento a partir do qual os “conflitos sociais não dizem mais respeito à eliminação do governo monopolista, mas apenas à questão de quem deve controlá-lo, em que meio seus quadros devem ser recrutados e como devem ser distribuídos os ônus e os benefícios do monopólio” (1993, p. 98). A concentração da força física pública significa ao mesmo tempo a proibição do exercício privado da violência e a criação de “instituições com mandato para garantir a ordem”, que vão sendo separadas do mundo social comum (Bourdieu, 1997, p. 100). Progressivamente ocorre a diferenciação entre o exército e as forças policiais, o primeiro com a função de proteger o Estado contra outros Estados, e a segunda com o objetivo de garantir a ordem interna, isto é, a dominação.

Em ambos os casos já podemos identificar a importância do poder simbólico, pois de um lado uma instância que fala em nome sociedade, do universal, do oficial, passa a ter a prerrogativa de nomear, de consagrar agentes que também passam a agir legitimados por esta instância central de nomeação; de outro, porque este corpo especializado e oficialmente autorizado a exercer a violência física deve

ser “claramente identificado no seio da sociedade”, principalmente “pelo uniforme simbólico”, que o liga simbolicamente ao fiduciário do oficial, de modo que o corpo é “capaz de obedecer como um só homem a uma ordem central que, em si mesma, não é geradora de nenhuma ordem” (Bourdieu, 2014, p. 269). O mesmo vale para o caso dos tributos. Segundo Elias, em meio ao processo de monopolização fiscal foram surgindo funções especializadas e “em 1370, já havia dois administradores supremos, um dos quais especializados em questões jurídicas e o outro em financeiras” (1993, p. 178). E para que o cobrador de impostos não fosse confundido com um mero salteador era preciso, como notou Bourdieu, citando passagens de Y. M. Bercé, que ele concentrasse “um capital simbólico de reconhecimento, de legitimidade”, que os funcionários fiscais “sejam facilmente identificados com a pessoa, a dignidade do poder”, “que os guardas usem sua libré, sejam autorizados por seus emblemas”, e que os contribuintes possam “reconhecer a libré dos guardas, os escudos de armas das guaritas”, e diferenciar “os guardas dos coletores, agentes de financistas detestados e desprezados, dos cavaleiros reais, dos arqueiros do marechalato, do Preboste do Paço ou dos Guardas de Corpos, considerados inatacáveis em razão de sua túnica com as cores da realeza” (1997, p. 103).

O reconhecimento do poder estatal, que é o desconhecimento de seu caráter arbitrário, constitui o poder simbólico, que permite ao Estado obter o “equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (Bourdieu, 2011, p. 14), momento a partir do qual o uso da força física resta reservado a situações extremas. Os diferentes capitais são transformados em capital simbólico por meio de um “trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização), que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força”, do que decorre o reconhecimento/desconhecimento “da violência que elas encerram objectivamente”, surgindo daí o poder simbólico, “capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia” (2011, p. 15). A constituição da “comunidade ilusória” (Marx, 2007, p. 37) dependeu de um trabalho simbólico, no qual tomaram parte diversos agentes sociais - dentre eles os juristas -, que resultou no Estado, ou seja, na

construção e monopolização de “um conjunto de recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social em conjunto, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque tem atrás de si a força do oficial” (Bourdieu, 2014, p. 66).

Refletindo sobre o simbolismo do poder, Geertz refere que a diferenciação entre a aparência externa e a substância de um governo é leviana, e que “como acontece com a massa e a energia, o que importa é a maneira pela qual uma se transforma na outra” (1997, p. 186). Segundo o autor, nas “sociedades complexamente organizadas”, sempre encontramos um centro político composto por uma elite governante e por “um conjunto de formas simbólicas que expressam o fato de que ela realmente governa”, quer dizer, estas elites “justificam sua existência e administram suas ações em termos de um conjunto de estórias, cerimônias, insígnias, formalidades e pertences que herdaram, ou, em situações mais revolucionárias, inventaram”, e são “esses símbolos - coroa, coroação, limusines e conferências – que dão ao centro a marca de centro” (1997, p. 187). Estes símbolos do poder constituem capital simbólico objetivado, que nos ajudam a perceber que estamos tratando de representações. Os agentes responsáveis pela construção do Estado inventaram-se a si mesmos inventando as noções de oficial, de universal, eles participaram do “trabalho de oficialização, que tende a constituir um ponto de vista particular como legítimo, isto é, como universal” (Bourdieu, 2014, p. 483). Neste trabalho, esse conjunto de agentes e instituições a que damos o nome de Estado, “deve teatralizar o oficial e o universal, deve dar o espetáculo do respeito público pelas verdades oficiais em que a totalidade supostamente deve se reconhecer”, e “deve dar o espetáculo do universal, aquilo sobre o que todos, em última análise, estão de acordo, aquilo sobre o que não pode haver desacordo porque está inscrito na ordem social em determinado momento do tempo” (Bourdieu, 2014, p. 61).

Observamos, portanto, uma série de monopolizações e desapossamentos em torno dos quais vai surgindo um campo burocrático, que chamamos de Estado. A partir de atos infinitesimais de

agentes concorrentes interessados no campo, e durante o próprio processo de formação do campo, formam-se as ideias-chave do poder estatal – o oficial, o público, universal – ideias que foram inventadas por agentes que tinham “interessse no desinteresse”: - isto não é particular, é universal; não é bom apenas para mim, é bom para todos36. Em meio a lutas entre reis, príncipes, papas, bispos, nobres, burgueses e plebeus, o jurista foi figura foi fundamental na produção da magia estatal, do que talvez possamos chamar espírito de Estado. Os juristas agiram como profetas, como agentes que falam em nome da sociedade, do todo, criando, inventando justificativas, legitimações para a monopolização estatal do poder, contribuindo para a acumulação estatal de poder simbólico. Dentre elas a própria noção de oficial, bem como a de officium, “função a partir da qual estamos em condições de criar o oficial”, ou seja, o “Estado é lugar de onde se diz o oficial” – quem é casado, quem é professor, quem é doutor, como as disciplinas devem se

36 Contra o economicismo, é preciso reconhecer que cada campo possui uma lógica específica, que nem sempre é a mesma lógica utilitária típica da economia. Os campos religioso, artístico, jurídico e burocrático possuem em comum uma forma específica de interesse, de sentido do jogo, de razão para o engajamento, de ilusio, que é o interesse pelo desinteresse, a disposição desinteressada. Em todos estes campos, a legalidade própria é fundada na negação do interesse puramente econômico. No caso do campo artístico é a ideia de “arte pela arte”, podendo o sucesso comercial ser menos recompensado do que o fracasso, por exemplo. Nos campos jurídico e burocrático, as ideias de público, de universal constituem o “interesse pelo desinteresse”, a representação que estes campos pretendem dar de si mesmos, isto é, “a imagem de um universo cuja lei fundamental é o serviço público (...), no qual os agentes sociais não têm interesse pessoal e sacrificam seus próprios interesses ao público, ao serviço público, ao universal” (Bourdieu, 1997, p. 149). Aqueles que jogam neste campo incorporam, na socialização, a estrutura do campo, de modo que o interesse pelo desinteresse inscreve-se nos seus habitus: “se o desinteresse é sociologicamente possível, isso só ocorre por meio do encontro entre habitus predispostos ao desinteresse e universos nos quais o desinteresse é recompensado” (Bourdieu, 1997, p. 153). O interesse no desinteresse não deve ser visto como uma simples manobra para ocultar o verdadeiro interesse: “não estamos em presença de um mentiroso cínico, (...) mas de uma defasagem entre a verdade objetiva, antes recalcada do que ignorada, e a verdade vivida das práticas e que essa verdade vivida, que oculta, para os próprios agentes, a verdade exibida pela análise, faz parte da verdade das práticas em sua definição completa” (Bourdieu, 1997, p. 185).

dividir, que dia é hoje, o hino, a bandeira, o horário de Brasília, quem é culpado, quem é criminoso, quem é juiz etc. E com a invenção ex officio do oficial, os agentes estatais passam a estar “investidos de funções que chamamos de oficiais, isto é, do acesso oficial à palavra oficial, esta que circula nas instâncias oficiais e no Estado” (Bourdieu, 2014, p. 128). Trata-se de uma “feitiçaria evocatória pela qual um agente oficial encena o referente imaginário (a nação, o Estado etc.), em nome do qual ele fala e que ele produz falando, mas de acordo com as formas” (2014, p. 484).37

Por meio da acumulação destes recursos simbólicos, processo que tem a ver com a criação de filosofias políticas, da ideia de nação (das fronteiras, da língua, dos mapas, dos arquivos, das estatísticas, dos heróis, do mito nacional etc.), de uma linguagem específica (a retórica do oficial, a retórica jurídica etc.) e da ritualística do exercício do poder (os símbolos do poder, o cerimonial, a etiqueta), triunfa o Estado, que consegue produzir um “efeito de divinização”, consegue fazer crer que seu ponto de vista é universal, comum, interessa a todos. Isto é, que não tem ponto de vista, que “é um ponto de vista sem ponto de vista” (Bourdieu, 2014, p. 61), que está acima das contingências e dos interesses:

37 “Definitivamente, a nomeação é um ato misterioso, que obedece a uma lógica semelhante à da magia, tal como a descreve Marcel Mauss. Assim como o feiticeiro mobiliza todo o capital de crença acumulado pelo funcionamento do universo mágico, o presidente da república que assina um decreto de nomeação ou o médico que assina um atestado (de doença, de invalidez etc) mobilizam um capital simbólico acumulado em toda a rede de relações de reconhecimento, constitutiva do universo burocrático. Quem atesta a validade do atestado? Aquele que assinou o título que licencia para atestar. Mas quem deu licença a este? Somos levados a uma regressão ao infinito, ao final do qual ‘é preciso