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A legitimação do poder punitivo e a violência simbólica

2 O ESTADO, O CAMPO JURÍDICO E OS JURISTAS

2.4 A legitimação do poder punitivo e a violência simbólica

No contexto destas disputas corporativas pela propriedade do crime uma infinidade de conflitos, de ações, de condições existenciais, de comportamentos, foi transformada em delito, foram formalizados, codificados em fatos típicos, ilícitos e culpáveis. E a punição, a restrição de liberdade nas prisões, o fato de prendermos “seres humanos em jaulas” (Binder, 2003, p. 04) – algo inédito, do ponto de vista histórico ou antropológico - as ações policiais repressivas que não raro resultam em assassinatos, são transformadas em jus puniendi, são justificadas em nome de argumentos utilitários ou absolutos, em nome de todo tipo de prevenção sustentada por clássicos e positivistas (em nome da “segurança pública”), mesmo que não comprovadas62, de modo que sua

violência concreta resta eufemizada pelas teorias jurídicas, pelo universo simbólico das ciências criminais, que funcionam, como já citamos, como “dóceis protetores lançados sobre a ordem institucional” (Berger;

61 Por exemplo: “el Código penal debería determinar que una tercera condena por uno de los delitos mencionados más arriba llevaría a una reclusión por tiempo indeterminado” (Lizst, 1994, p. 121).

62 “(...) las ciencias sociales nos están mostrando que el discurso jurídico-penal se elabora sobre ilusiones y alucinaciones, que estas ciencias desmienten rotundamente. Esto significa que las discusiones jurídico-penales se desarrollan sobre la base de argumentos que en el plano de la realidad social son falsos” (Zaffaroni, 1993, p. 1991).

Luckmann, 1996, p. 134). Os penalistas formulam os fundamentos jurídicos do poder punitivo, mesmo quando o criticam em nome de outro fundamento mais democrático, e assim contribuem para legitimá- lo. Os agentes do sistema penal que puxam o gatilho, que fecham as algemas, que trancam as portas das celas e que sentenciam penas estão ligados aos teóricos do direito, aos cânones, aos doutrinadores, àqueles que estão em posição de dizer o que é certo e o que é errado, “por uma cadeia de legitimidade que subtrai seus actos ao estatuto da violência arbitrária” (Bourdieu, 2011, p. 220).

Não é à toa que Joseph K. nada entende sobre o seu processo e que os clientes tradicionais do sistema penal brasileiro (a grande maioria é semiletrada, “sabe ler só para pegar o ônibus”, como costumamos ouvir) vivenciem a justiça penal como uma instituição esotérica e estejam sempre correndo atrás dos “papeis” e de advogados que possam traduzir-lhes os conceitos incompreensíveis das ciências criminais. A invenção e a utilização de um código erudito, a transformação da linguagem vulgar em linguagem jurídica, a cisão entre a visão vulgar do leigo e a visão científica do juris peritus, é o “fundamento do desapossamento” do conflito que outrora pertenceu aos envolvidos e do poder específico dos penalistas, de seu sucesso na luta pela propriedade do crime, ou seja, é constitutiva de “uma relação de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de intenções expressivas, numa palavra, duas visões de mundo” (Bourdieu, 2011, p. 226). Não por outro motivo, o fundamento central dos abolicionismos penais é a crítica da captura do conflito pela forma jurídico-penal, sobretudo por sua linguagem técnica específica63. E não

é outro o fundamento da estratégia descriminalizadora formulada por

63 “Em primeiro lugar, é preciso mudar a linguagem. Não conseguiremos superar a lógica do sistema penal, se não rejeitarmos o vocabulário que a sustenta. As palavras crime, criminoso, criminalidade, política criminal, etc... pertencem ao dialeto penal, refletindo os a priori do sistema punitivo estatal. O acontecimento qualificado como ‘crime’, desde o início separado de seu contexto, retirado da rede real de interações individuais e coletivas, pressupõe um autor culpável; o homem presumidamente ‘criminoso’, considerado como pertencente ao mundo dos “maus”, já está antecipadamente proscrito...” (Hulsman, 1982, pp. 95-96).

Alessandro Baratta, da subtração metodológica dos conceitos de criminalidade e pena64.

No contexto das disputas que resultaram na elaboração da indústria conceitual em nome da qual as prática punitivas são justificadas, emergiu um

universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física (Bourdieu, 2011, p. 211)

O penalista é o intérprete autorizado, isto é, socialmente legitimado, competente, para elaborar a lei penal e para indicar o seu correto sentido. No primeiro caso, compõem comissões técnicas que elaboram os códigos penais, um dos recursos mais potentes na construção social da realidade, na disputa simbólica pela definição do justo e do injusto. No segundo, formulam as escrituras do direito penal, os textos jurídicos publicados em manuais, artigos em revistas especializadas, anais de congressos etc., que servem de fundamento tanto à elaboração da lei penal quanto à aplicação, bem como das concepções do senso comum sobre o Estado, o crime e o criminoso.

A legitimidade conferida ao penalista para tratar de tantos e de tão importantes assuntos (definir o que será proibido ou permitido, como as pessoas serão punidas, como a violência estatal será exercida, qual o fundamento desta violência estatal, contra quem o Estado deve usar a violência etc.) possui duas dimensões. A primeira é a da legitimação

64 “Se recomienda a los actores implicados en la interpretación de los conflictos y de los problemas en la búsqueda de soluciones realizar tal experimento, prescindiendo, por cierto tiempo, del empleo de los conceptos de criminalidad y de pena, a fin de que se pueda verificar si y cómo podrían construirse no sólo los conflictos y los problemas, sino también sus respuestas desde ópticas distintas de la punitiva” (Baratta, 2004, p. 327).

científica, comum à dogmática jurídico-penal e à criminologia positivista, aos vários positivismos criminológicos pressupostos nas análises dos penalistas (as legitimações pela legalidade e pela defesa social). Os penalistas dogmáticos definem o conhecimento por eles produzido “como um conhecimento “científico” normativo, autônomo e sistemático, que encontra explicação em si mesmo através de uma postura metódica imanente, que não remete a considerações de índole moral, econômica, política ou moral” (Andrade, 2003, pp. 117-118). A criminologia positivista também compartilha da auto-imagem de neutralidade. Portanto, dois tipos de discurso que tem em comum a retórica da cientificidade, que respeitam as normas e se adéquam às representações relativas aos padrões de cientificidade, de modo a produzir o efeito de ciência, alcançando a “eficácia simbólica e os benefícios sociais associados às formas externas da ciência” (Bourdieu, 2011, b, p. 54). Em outras palavras, “o discurso que se chama de científico pode ser aquele que produz um efeito de cientificidade fundado na conformidade ao menos aparente com as normas nas quais se reconhece a ciência” (Bourdieu, 2011b, p. 54). A cientificidade socialmente reconhecida buscada pelos mestres canônicos das ciências criminais “é uma aposta tão importante porque, embora não haja uma força intrínseca da verdade, há uma força da crença na verdade, da crença que produz a aparência de verdade” e “na luta das representações, a representação socialmente reconhecida como científica, isto é, como verdadeira, contém uma força social própria” que dá ao que “a detém, ou que aparenta detê-la, o monopólio do ponto de vista legítimo” (Bourdieu, 2011b, p. 53). Tudo isso fundamenta “a crença que é tacitamente concedida à ordem jurídica” e uma das funções do trabalho jurídico é “contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia dos juristas” (Bourdieu, 2011, p. 244).

A segunda dimensão é a da legitimação moral. As ciências criminais participam “ao mesmo tempo da lógica positiva da ciência e da lógica normativa da moral” (Bourdieu, 2011, p. 212), de maneira que a competência do penalista para impor a visão dominante sobre ordem é

derivada não apenas da ciência, mas da autoridade proveniente das capacidades dos “notáveis predispostos por sua posição e suas disposições a definir o que é bom e o que está bem” (Bourdieu, 2011b, p. 81). A força do discurso dos penalistas não está apenas no seu conteúdo, mas nas condições sociais de sua produção e reprodução. Quando, digamos, um patrão diz a sua empregada doméstica, “Maria, não acha que está fazendo frio?”, a empregada irá imediatamente fechar a janela65. O ponto é saber em que condições sociais esta frase

transforma-se numa ordem, qual a relação travada por quem disse e por quem ouviu: “a força da frase está na frase, na sua sintaxe, na sua forma? Ou está também nas condições de seu exercício? É preciso indagar quem a pronuncia, quem a ouve, de acordo com quais categorias de recepção quem a ouve recebeu a mensagem” (Bourdieu, 2014, p. 227). De modo que todo o trabalho simbólico de explicitação da autoridade do penalista, as cerimônias, a etiqueta, a postura, as roupas, a gravata, a linguagem etc., são constitutivas de sua autoridade. As formalidades, “os sinais externos da autoridade estatutária” são componentes indispensáveis do “trabalho de representação e de explicitação da autoridade dos textos e de seus intérpretes que integram o próprio exercício da função, isto é, o ato de produzir o direito” (Bourdieu, 2011b, p. 97), ou seja, são fundamentais à produção da “crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (Bourdieu, 2011, p. 15). A competência moral do penalista, formada a partir da socialização familiar, escolar e jurídica, seu habitus, é representativo daquilo que “a linguagem ordinária dos dominantes designa como seriedade, gosto pela ordem, que é primeiramente uma maneira de se levar a sério e levar a sério o mundo tal como ele é, de se identificar, sem distância, com a ordem das coisas, ser aquilo que é ao mesmo tempo um dever-ser (Bourdieu, 2011b, p. 80). E disso decorre sua “autoridade e autorização para se servir de saberes mais ou menos científicos” (Bourdieu, 2011b, p. 95).

Os “falsos dados do sistema jurídico” (Miaille, 2005, p. 111), os “dados sociais falsos” que servem de alicerces ao direito penal (Zaffaroni; Batista, 2003, p. 66) são transubstanciados em verdades socialmente reconhecidas por meio do trabalho profético dos penalistas, que atuam como autênticos mitômanos. Demonstrar a sua falsidade não é a tarefa mais penosa, denunciar o descompasso entre as promessas contidas nos discursos dos penalistas e a realidade do sistema penal é tarefa que um bom jornalista pode cumprir por meio de um dedicado trabalho de reportagem66. Cremos que o mais importante é compreender

o conteúdo destes dados sociais falsos, reproduzidos principalmente por meio do ensino jurídico, sobretudo porque tais dados são considerados verdadeiros e, portanto, são socialmente eficientes. A “ciência” herdou da religião a autoridade de formular as teodiceias justificadoras da ordem social. Conforme Jessé Souza, “as concepções dos intelectuais (...) são centrais para a forma como uma sociedade escolhe e leva a cabo seus projetos coletivos” (2011, p. 53), pois contribuem para a formulação dos mitos, do imaginário social em torno dos quais a experiência histórica coletiva é elaborada e vivenciada (2011, p. 30), de modo a “legitimar o mundo tal como ele existe” (Souza, 2011, p. 49), por meio da produção de um consenso social e de uma cegueira acerca da dominação e da injustiça.

Segundo Bourdieu,

a violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta ser vista como natural (2011c, p. 47).

66 Este tipo de abordagem poderia ser enquadrado naquela perspectiva que Cirino dos Santos nominou “criminologia da denúncia” (2008, p. 25).

Os juristas e especificamente os penalistas são detentores de um capital de palavras e de conceitos que servem de instrumentos potentes de construção social da realidade, pois os juristas, como “mestres do discurso”, “tem esse trunfo formidável de poder fazer crer no que eles dizem (...), têm a capacidade, primeiro de dizer, e de dizer com autoridade” (Bourdieu, 2014, p. 356). Este poder simbólico de construção social da realidade é um poder político de imposição da visão correta, justa, sobre a ordem social. Dotados de um discurso “intrinsecamente poderoso e provido dos meios físicos com que se faz respeitar”, capaz de passar, “com o tempo, do estado de ortodoxia, crença correcta explicitamente enunciada como dever-ser, ao estado de doxa, adesão imediata ao que é evidente, ao normal (Bourdieu, 2011, p. 249), os penalistas contribuem para a consagração da ordem estabelecida. Ao tratarem de diversos tipos de problemas sociais a partir do “código crime-pena” (Andrade, 2003b, p. 126), promovem um amplo consenso social sobre o que é certo e o que é errado, o permitido e o proibido, o justo e o injusto. E é assim que o injustiçado brasileiro, que pertence à classe fundamentalmente furtada de nossa sociedade, vê a si mesmo como ladrão ao se apropriar de um pão, de uma margarina ou de um gadget qualquer; é assim que mesmo que nunca teve nada consagra e santifica a propriedade67; que o menino pobre morador das periferias,

vê a si mesmo como traficante68; ao mesmo tempo em que o

latifundiário, o grande proprietário urbano que lucra com a especulação

67 Em pesquisa sobre usuários de crack/moradores de rua, cujas entrevistas foram realizadas durante os meses de abril e maio de 2014, na cidade de Porto Alegre, Mariana Garcia notou que uma das falas mais comuns dos despossuídos, sujeitos que, literalmente, nada possuíam, em termos materiais, era: “nunca roubei”. O texto que resultou do trabalho de campo, intitulado O crack e a rua, está no prelo.

68 Certamente que permanecem vivas as concepções populares glorificadoras do bandido, analisadas por Eric Hobsbawn, na obra Bandidos (2010). Aliás, Foucault (2005, p. 71) mostrou que um dos objetivos da racionalização da justiça penal foi a de desconstruir ideologicamente a ampla aceitação social de que gozava certas ilegalidades praticadas pelos despossuídos na passagem à modernidade. A obra de Rubem Fonseca, sobretudo os contos O cobrador e Feliz ano-novo, trabalha justamente nesta dimensão da inversão dos padrões de sensibilidade relativas à justiça e à injustiça formuladas no marco das concepções jurídico-penais.

imobiliária e os acionistas e os executivos da Ambev e da indústria farmacêutica se vêm e são vistos como cidadãos de bem69. É deste modo que a crítica da injustiça, da violência estrutural, é relegada ao segundo plano, e nos telejornais o tema principal são os meninos descalços que promovem arrastões na beira da praia e não a brutalidade da desigualdade social; ao invés de tratarmos da desigual distribuição da propriedade, falamos em furtos de celulares; em outros tempos, falávamos sobre qual seria a pena adequada aos escravos que cometessem crimes, ao invés de falarmos na brutalidade da escravidão. A realidade social é construída, com o auxílio das ciências criminais, de acordo com os interesses dos dominantes. Os dominados, cujas categorias de percepção foram constituídas pelas visões dos dominantes, prestam anuência à própria dominação, isto é, suportam a violência simbólica.