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2.2 O DISCURSO E SUAS REGULARIDADES: QUEM DIZ O QUÊ, ONDE

2.2.2 A Construção Discursiva da Adolescência: seguindo pistas históricas

O estudo historiográfico de Foucault contribui de forma lúcida para mostrar que não há aleatoriedade na produção dos saberes, ajudando-nos a desnaturalizar os discursos e a dirigir nosso olhar para a relação entre as práticas discursivas e as diversas formas de poder que as permeiam.

Partindo dessa relação, em especial no que ela permite articular discurso e sujeito, ou modos de subjetivação, cabe agora uma breve discussão sobre como historicamente a adolescência foi circunscrita no domínio dos saberes–poderes, para que possamos entender como se constituem diferentes adolescências enquanto sujeitos e objetos dos discursos na contemporaneidade.

São muitos os discursos que constroem e definem a adolescência atualmente. Autores como Kehl (2004), Fischer (1996) e Carvalho (2008) apontam em seus estudos que a adolescência nunca esteve tão em alta, principalmente a partir da década de 60, quando se passou a valorizar tudo o que se refere a ela. A associação da juventude, aos ideais de beleza e consumo, sendo a mídia poderoso instrumento de fortalecimento dessa associação, produz um modelo no qual todos se reconhecem. Pobres e ricos constroem significados sobre o que é ser jovem a partir desse modelo e constituem-se subjetivamente atravessados pelos discursos que o sustentam.

Além disso, há uma maior quantidade de jovens vivendo nas cidades, o que se intensificou, no Brasil, com o processo de redemocratização. Esses fatores já justificariam o grande interesse em estudar a juventude. Mas são as produções de sentido atribuídas a tais fatores que estão na base desse interesse. Muitos autores como Pais (1990), Gonçalves (2005), Carvalho (2008) afirmam que o interesse em estudar e falar sobre a juventude, tanto na Europa como no Brasil, insere-se numa lógica de controle dos excessos e vícios dessa mesma juventude (GONÇALVES, 2005). Mas cabe perguntar, qual juventude? Se diferentes enunciados constroem diferentes objetos–adolescentes, qual estaria no alvo dos estudos voltados às práticas de controle? Segundo Carvalho (2008), trata-se do jovem visto como um problema social, um gerador de riscos, ou seja, não daquele associado à beleza, liberdade ou ao consumo.

Como visto, os discursos emergem em determinado contexto engendrados pelas relações de poder sustentadas pelas sociedades e se dispersam sofrendo transformações em seu interior, já que não há unidade entre seus elementos. Não há, por exemplo, fidelidade de um enunciado a determinado autor, podendo um mesmo enunciado ser proferido por autores

39 diferentes. A mudança no enunciado provoca, no entanto, a mudança no objeto. Dessa forma, não é uma mesma adolescência enunciada de diferentes formas, mas adolescências distintas.

Baseada em Foucault, Fischer (1996) empreende um estudo sobre a articulação entre adolescência e mídia, em que discute sobre a centralidade da adolescência nos mais variados campos discursivos, apresentando a mídia, como já dito, como emblema da heterogeneidade discursiva pelo atravessamento que sofre e produz de tais campos. A partir do século XX, segundo a autora, a juventude passa a ser constituída como “fenômeno” e como “problema”, objeto de estudo principalmente da psicologia e da sociologia, respectivamente. Cada campo discursivo produz enunciados que se articulam regidos por formações discursivas que determinam o que pode e o que não pode ser dito. Essas duas constituições da adolescência são discutidas em articulação com a análise do material empírico, no terceiro capítulo, Adolescentes em Construção: analisando e (des) articulando saberes sobre as várias adolescências. Aqui, trata-se de historiar brevemente como a(s) adolescência(s) entra(m) na ordem do discurso na contemporaneidade enunciada por estas duas versões.

Pinheiro (2006) compreende que a recente valorização da adolescência faz parte de um movimento que vem consolidando a concepção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. No entanto, fazendo um resgate dessa construção social, em referência ao Brasil, a autora lembra que, do período colonial até metade do século XX, predominaram outras concepções sobre a criança e o adolescente: como objetos de proteção, de controle e disciplinamento ou repressão social. Cada uma dessas concepções fez-se presente em uma época específica e esteve associada a um conjunto de práticas segregadoras que atribuíam à infância e à adolescência pobre um lugar discursivo de negatividade e, portanto, de exclusão.

Segundo Ariès (1981), até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância, pois se encontrava no mesmo patamar de dependência, enquanto a juventude, considerada a idade média, era associada à ideia de força. As transformações biológicas da puberdade não representavam nenhuma alteração nesse status, tanto que, na língua francesa, não existiam termos para distinguir as duas fases da vida. Ambas eram tratadas como enfant (criança). Também não havia vocábulos que designassem idades diferentes dentro da infância. Foi apenas no século XIX, quando o francês tomou emprestado do Inglês a palavra baby (nenê), que surgiu e se ampliou um vocabulário da primeira infância. No entanto, subsistia a ambiguidade entre a infância e a adolescência, de um lado, e a juventude, de outro (ARIÈS, 1981).

Até o final do século XIX, as crianças eram incorporadas ao trabalho e poucas estudavam. Com a Revolução Industrial, o estudo adquiriu importância, o Estado tomou a

40 educação para si, tornando a escolarização obrigatória e aumentando o tempo que os filhos das classes médias e altas passavam na escola. Esta iniciativa marca a separação entre seres adultos e seres em formação. Ocorre o que Peralva (1997) denomina processo de “cristalização social das idades da vida” (p. 16), ou seja, o momento em que a representação natural das idades da vida (ARIÈS, 1981) ascende como representação social na consciência moderna. Mudanças também são operadas no seio da família burguesa. Há uma redefinição do lugar da criança a partir da maior valorização dos vínculos afetivos e do nascimento do sentimento de família propriamente dito.

Embasada no trabalho de Ariès, Peralva (1997) explica que foi, portanto, a noção do aprendizado voluntário, em substituição à mera socialização da Idade Média, que marcou a diferenciação entre a criança e o jovem com relação ao adulto. Assegurada pelo Estado, a educação transforma-se num dispositivo intrínseco à racionalidade moderna. As técnicas disciplinares amplamente utilizadas nas escolas, aliadas à razão e ao saber científico – que ao desvelar a infância e a puberdade, chegam à sexualidade infantil e juvenil – constituem dispositivos voltados ao ordenamento dos costumes e comportamentos (FOUCAULT, 1987). À ciência (como a psicologia emergente ou a sociologia) cabia prevenir os desvios da juventude.

No contexto da sociedade disciplinar, portanto, são produzidos os discursos que serviram como sustentáculos das práticas institucionais de controle produtivo e vigilância dos corpos, sejam no interior das famílias, igrejas, escola, bem como, posteriormente, das práticas da biopolítica como formas de regulação das populações.

Assim, as teias discursivas engendradas no interior das disciplinas, que foram balizando cientificamente o surgimento de loucos e sãos, ricos e pobres, morais e amorais, no contexto da sociedade disciplinar, como postulado por Foucault, não deixaram a juventude de fora. Traçou-se a linha divisória entre os que estavam aptos e os não aptos à formação (estudos, trabalho) e até à convivência social.

Na França, Inglaterra e Alemanha, no século XIX, os jovens abastados eram tratados como sujeitos em preparação. Só os privilegiados podiam ir além do aprendizado básico da vida social e ficavam recolhidos em instituições escolares para ocupar lugares chaves nas sociedades burguesas (PAIS, 1990).

A mesma segregação aconteceu no Brasil. Respaldados nos discursos médico, pedagógico e jurídico, os movimentos eugênico e higienista do início do século XX penetraram em toda a sociedade, disseminando entre a elite a missão de construir uma “nação moderna” a partir do “saneamento moral” do país (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003, p. 23). Os jovens pobres estiveram reclusos nos espaços privados da escola e do lar de forma que fosse

41 assegurada a reprodução das famílias e dos lugares sociais na estrutura societária. Os que não contavam com esse amparo familiar se transformaram em problema social (PAIS, 1990). No caso destes, o Estado passa a intervir, dividindo com a família o ônus de sua preparação para que futuramente possam fortalecer o próprio Estado. As práticas de escolarização e profissionalização destes jovens buscavam formar uma mão de obra subalterna, apta para funções as quais se exigia baixa qualificação. Ao mesmo tempo em que se constituía essa mão de obra submissa aos interesses do país, evitava-se que os jovens, não ociosos, voltassem-se para os atos de delinquência, principalmente nas grandes cidades, onde cresciam os índices de criminalidade (PINHEIRO, 2006).

Tais práticas de profissionalização dos jovens como medida de combate à delinquência, das quais trata Pinheiro (2006), no entanto, não deram conta do crescimento populacional das grandes cidades no início do século XX, sendo necessária ao Estado a criação de outros dispositivos. Surgem, então, como descreve a autora, as práticas sociais institucionais, de cunho disciplinar e segregador, como a elaboração do primeiro Código de Menores da América Latina, em 1927, e a criação do SAM, em 1940, para o atendimento de menores de 18 anos abandonados e delinquentes, em nível nacional. A esse respeito, discorre César (2008):

Táticas como essa, utilizadas para disciplinar e segregar jovens e crianças perigosos ou em perigo, foram comumente observadas nas metrópoles que se reestruturavam por meio de uma engenharia de guerra para o combate às recentes ‘patologias’ sociais, reconhecidas e delineadas pelas ciências médicas e biológicas (p. 118). Assim, com o respaldo da ciência médica e legitimadas pelo Estado, as práticas assistencialistas ajudam a transformar a pobreza em patologia, vítimas do risco social, em geradores de risco em potencial16.

Por outro lado, na sociedade americana do pós-guerra, quando os jovens combatentes se opuseram às velhas gerações da retaguarda e um sentimento de decepção com relação aos adultos começa a se disseminar entre os mais novos, a juventude aparece como “depositária de valores novos, capazes de reavivar uma sociedade velha e esclerosada” (ARIÈS, 1981, p. 14). Como define Kehl (2004), “uma geração vista como problemática, mas, também, como espelho refletor da sociedade americana do pós-guerra” (p. 92). “Assim, passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo” (ARIÈS, 1981, p. 15).

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16 A discussão sobre estes dispositivos e a constituição da noção de risco na contemporaneidade são aprofundada no terceiro capítulo.

42 Compreende-se, portanto, que os discursos que constroem significados sobre a adolescência como problema ou, ao contrário, como “solução”, têm suas raízes na própria história e estiveram a serviço das práticas sociais, práticas de poder. Segundo Fischer (1996), por exemplo, o prolongamento da adolescência hoje, ou o que chama de “juvenescimento” (p. 18), em referência à prorrogação da entrada no mundo adulto, fenômeno recente, tem a ver com os problemas sociais associados à falta de emprego, o que sustenta o enunciado da adolescência como moratória ou como individualista, ao mesmo tempo em que ela passa a ser vista como problema social (PAIS, 1990). Da mesma forma, o confinamento da infância e da adolescência nos séculos VVIII e XIX, segundo Fischer (1990), está ligado à constituição dessa população como problema ou “naturalmente incapaz” (p. 18), terreno propício para que uma rede de saberes (e poderes) sobre a sexualidade infantil lançasse sobre ela o olhar da vigilância e do controle.

Levando em conta os vários sentidos atribuídos historicamente à adolescência e a compreensão de que tais sentidos estão arraigados em práticas de saber–poder, instituídas social e historicamente, nesse estudo buscou-se problematizar como os adolescentes mais favorecidos socialmente, estudantes de escola particular, posicionam-se nessa teia discursiva. Se a contemporaneidade modifica a forma como os adolescentes se relacionam consigo mesmos e com os outros pelos elementos que agrega à experiência desses sujeitos, tais como o consumo, as tecnologias, os cerceamentos no espaço urbano, conforme destacado por Castro (1999), como constroem significados sobre ser adolescente, estando inseridos no contexto dessa experiência e atravessados pelos vários discursos que dizem sobre a adolescência hoje? Reconhecem-se, por exemplo, nos enunciados sobre o adolescente como um problema? Entendem que a construção discursiva da adolescência como um protelamento da idade adulta, no contexto do “juvenescimento” anunciado por Kehl (2004), pode ser atribuída a todos os adolescentes? E os enunciados que associam a adolescência às práticas de consumo e às tecnologias constituem discursivamente quais sujeitos? Questões como estas balizaram as discussões no grupo da pesquisa, permitindo que os adolescentes se posicionassem no interior de tais discursos, seja legitimando-os, seja refutando-os ou negociando-os. O posicionamento esteve articulado às cenas enunciativas, ou seja, aos contextos discursivos que permitiam a mim e ao grupo analisar quem eram os adolescentes que “cabiam” em sua fala, se somente eles, ou também os outros. Estas questões ficam mais claras nos capítulos seguintes.

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3 CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA TEÓRICO-METODOLÓGICA: ESTRADA ONDE

ATRAVESSAM SUJEITOS E DISCURSOS