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4.2 ADOLESCÊNCIA NA ORDEM DO DISCURSO:

4.2.1 O Discurso Desenvolvimentista: a norma enredando modos de ser adolescente

4.2.1.1 Sobre os Lutos do Discurso Psicológico

“Desses lutos aí, eu discordo totalmente” (Glauber).

“A gente sente porque perde um pouco do carinho dos pais, que começam a cobrar responsabilidade e botar limite, eu acho que tem gente que sente sim” (Amanda).

“A gente escuta muito dizer que na adolescência por qualquer coisa a gente tá de luto, a gente fica triste, mas essas três coisas são exatamente tudo o que (sic) você não tem luto” (Glauber).

80 “Essa parte da perda do corpo infantil eu não concordo, mas essa parte dos pais, eu acho que sim, que acho que muda muito, porque antigamente quando minha mãe me chamava pra conversar, eu ia, agora quando ela me chama, eu fujo” (Hermione).

Estas falas foram produzidas no quarto encontro, quando apresentei alguns trechos extraídos de discursos psicológico, biológico e jurídico para que se posicionassem usando as plaquinhas concordo totalmente, concordo parcialmente, discordo e tenho dúvidas. No interior do discurso psicológico, apresentei um trecho de um resumo sobre a obra de Aberastury e Knobel (1981) no qual se tem:

Arminda Aberastury foi pioneira no estudo da psicanálise de crianças e adolescentes na América Latina. A autora dedicou grande parte do seu trabalho ao aprofundamento da problemática da adolescência. Para ela, “a adolescência é um momento crucial na vida do homem e constitui a etapa decisiva de um

processo de desprendimento. [...]”. Além das mudanças corporais que marcam

esse período, a autora destaca as mudanças psicológicas, ambas levando a uma nova relação do adolescente com os pais e com o mundo. Essa etapa é marcada por três tipos de luto: do corpo de criança, pela identidade infantil e pela relação com os pais da infância26.

O grupo dividiu-se entre as respostas concordo parcialmente e discordo. Em geral, os adolescentes reconhecem que a adolescência como luto pela vivência de perdas é um enunciado soberano, presente em várias falas, ao mesmo tempo em que sinalizaram sua dispersão. Essa dispersão é produzida em seus discursos na medida em que trouxeram sua própria adolescência à ordem do discurso. Autorizaram-se a negar o enunciado a partir de sua experiência e, em seguida, já o tornaram universal. Construíram outro enunciado – aceitando alguns lutos, resistindo a outros – e já generalizaram, como se pudessem falar de todos a partir deles. Os pais foram trazidos à fala como sujeitos e ao mesmo tempo como objetos do discurso. Ao mesmo tempo em que os adolescentes evidenciaram como os pais interferiam na elaboração de suas construções discursivas a respeito de vários aspectos, também foram objetos do seu discurso, pois também foram produzidos nesse contexto contemporâneo como alguém que, a partir da adolescência dos filhos, passa a impor mais limites, cobrar responsabilidade, e com quem a conversa passa a ser ameaçadora, como relatado por Hermione.

“Por mim, a coisa que eu mais quero é exatamente o segundo (em referência à perda da identidade infantil), o melhor é exatamente isso, que você se desprende da infância” (Glauber).

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26 Extraído do site <http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Resumo-Do-Livro-Adolesc%C3%AAncia- Normal/377195.html>. Acesso em: 05 fev. 2013.

81 “Eu acho esse discurso interessante, mas discordo dos três tipos de luto, eu e a maioria dos outros adolescentes achamos algo ótimo perder esse corpo de criança, essa identidade infantil, e quanto a terceira acho que para se ‘virar’ adolescente não é necessário a 'perca' (sic) de relação com os pais” (Glauber – postagem Facebook).

“Eu só concordo com uma coisa que tem aí: essa passagem da infância pra adolescência pra mim é difícil porque pra mim a infância é a melhor fase da vida” (Hermione).

Em suas falas, Glauber e Hermione ocupam posicionamentos opostos. O primeiro, nega o luto pela perda da identidade infantil, enquanto a segunda o legitima. Ambos assumem uma ou outra posição em seu discurso a partir de sua própria experiência. No primeiro, a base psicobiológica que sustenta o discurso é suplantada pela vivência de Glauber no contexto atual, no qual, como já discutido aqui, a adolescência é ressaltada, valorizada, destacada em relação aos outros momentos da vida por sua associação aos ícones contemporâneos, como o consumo e as tecnologias, que parecem conferir ao adolescente um passaporte para a liberdade. O segundo posicionamento, de Hermione, faz emergir um enunciado que aparece em outros momentos do grupo – o adolescente com saudade da infância. Assim como quiseram fotografar um deles com um gamepad (conforme relatado no capítulo anterior), na fala de Hermione e em outros momentos, revelaram a força de outro discurso que se opõe ao defendido por Glauber de que a infância, e não a adolescência, permite ao sujeito ser livre. O jogo de forças entre os enunciados que constituem uma adolescência e/ou uma infância com mais liberdade evidencia-se em vários momentos no grupo, sendo a liberdade associada às mais distintas experiências para justificar um ou outro posicionamento. A única coisa em comum entre os enunciados é que neles todos tomaram como referência a sua própria adolescência.

De um modo geral, era difícil para os adolescentes do grupo ampliarem seu olhar para as diversas formas de ser adolescente quando a sua forma parecia convocar tanto seu olhar. O grupo tinha uma demanda de fala, argumentava, posicionava-se, questionava, mas recorrendo em enunciados que remetiam a eles próprios. Ao serem questionados, por exemplo, sobre a forma como os diferentes adolescentes enfrentam as perdas e os lutos sobre os quais discorri acima, falaram sobre eles, seus pais, ou no máximo um colega da escola ou vizinho. Contaram as primeiras experiências ao saírem à noite sem os pais, ou de quando os pais insistiram em se fazer presentes em programas só para amigos, ou de quando os pais conheceram o(a) primeiro(a) namorado(a), sobre as diferenças entre pai e mãe com relação ao namoro. Em vários momentos me indaguei se não entendiam o que eu falava ou

82 simplesmente não conseguiam tirar o foco deles. Somente quando perguntei mais diretamente como o discurso sobre adolescência de base psicológica estava relacionado à vida do adolescente que trabalha, eles responderam:

“Eu acho que sentem diferente da gente, por eles trabalharem, não estão muito ligando pra isso, eles têm mais prioridades” (Sandra).

“Eles nem sentem que a adolescência está chegando, tem criança que começa a pedir no sinal, começa a pedir esmola muito cedo, nem sente a passagem da infância pra adolescência” (Hermione).

O discurso psicológico é, portanto, também questionado quando se refere ao adolescente menos favorecido socialmente, no entanto o que sustenta o argumento é diferente nos dois casos. É rejeitado pelos adolescentes do grupo por fazer referência a aspectos que discordam que aconteça com eles. Já o outro adolescente não poderia ser objeto desse discurso porque as experiências que ele (o discurso) engendra não lhe dizem respeito. Embora não reconheçam quais as fontes da maioria dos discursos que produzem e veiculam, os adolescentes do grupo mostraram atravessamentos, por exemplo, do discurso midiático, o qual, como discutido brevemente no início deste capítulo (e que é aprofundado adiante), constitui diferentes adolescências a partir de enfoques diferenciados. Ao adolescente pobre, em geral, é destinado o espaço do noticiário, a exibição da vida real com todos os contornos associados à pobreza.