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4.2 ADOLESCÊNCIA NA ORDEM DO DISCURSO:

4.2.3 O Discurso Sociológico: risco e individualismo como faces da mesma moeda

4.2.3.3 Filantropia e Outras Exclusões

Miranda (2009) lembra os procedimentos de exclusão definidos por Foucault como intrínsecos aos discursos, sejam internos ou externos a eles, direcionando sua análise para os discursos produzidos e veiculados nas produções televisivas. Os enunciados produzidos no grupo são atravessados em vários momentos por exclusões internas a partir dos desnivelamentos que os adolescentes operam entre os discursos. Principalmente por meio de seus comentários, fizeram com que uns fossem elevados ao estatuto de verdade e outros, rarefeitos. Tais comentários, em geral, como já dito, tinham como referência a sua própria experiência adolescente.

Um dos momentos em que a exclusão apareceu de forma mais nítida e ao mesmo tempo sutil em suas falas apoia-se num discurso filantrópico, que é amplamente exaltado como regime de verdade, sobremaneira pela mídia. De caráter camufladamente segregador, como a fala da adolescente no grupo, a filantropia é uma bandeira levantada sob a égide do princípio “só eu tenho para lhe dar”. Para minha surpresa, levando em conta ser um produto da mídia já atravessada por outros campos discursivos (aspecto que é mais bem discutido no tópico seguinte) este foi um enunciado que pouco apareceu no grupo. Imaginei que iria emergir nos debates sobre o ECA ou com respeito aos vídeos que analisamos, mas ficou circunscrito à fala de uma das garotas, exatamente a que tem contato com adolescentes menos favorecidos socialmente. Em alguns momentos, Hermione referiu-se ao adolescente de sua

105 idade que o pai ajuda, produzindo falas que giraram em torno da afirmação: “Quando a gente chega lá, é a maior alegria. Eu acho que se você souber conviver, é a melhor coisa”. Evidenciou uma nítida separação entre as duas experiências, colocando-se no lugar de quem só dá, não ganha com essa troca, como se a convivência fosse uma concessão que depende dela e da qual só o outro se beneficiaria. Mais um enunciado que só acentua as diferenças, as exclusões, no entanto revestido de boas maneiras.

Outro momento em que a exclusão da experiência do outro apareceu foi na discussão sobre a polêmica categoria “Pipi de Galinha”, materializada no vídeo ficcional, como discutido em capítulo anterior. No primeiro dia, quando sugeri que fotografassem ou pesquisassem imagens de adolescentes, ao discorrer sobre os critérios usados em sua seleção das imagens, explicaram:“Eu coloquei na internet ‘adolescência’ e apareceu muita coisa, então fui procurando vários gêneros, como adolescente e tecnologia” (Hermione). Outros ratificaram essa fala, confirmando que buscaram registros que tinham a ver com “uma adolescência mais atual”, ou com a “minha adolescência”. Um ou outro membro do grupo ampliou essa busca, levando também imagens de adolescentes de antigamente.

Como já dito anteriormente, no segundo encontro, na sequência da discussão sobre adolescência para o agrupamento das imagens, o grupo criou uma categoria denominada “Pipi de Galinha”. Inicialmente foi alvo de questionamentos por uns, ignorada por outros, mas, ao final, acabaram introduzindo imagens dentro dela. Mesmo com minha orientação de que podiam sobrar imagens e/ou categorias, justificaram inicialmente que a imagens agrupadas ali foram as que “sobraram”. São fotos de jovens negros sorrindo como se estivessem numa festa, outros trabalhando, um garoto mostrando a língua com um piercing, um grupo de meninas com símbolos do cantor teen Justin Bieber, dois jovens rapazes sorrindo bem próximos um ao outro, um recorte que mostra quatro braços com a mão no bolso usando pulseiras coloridas e uma jovem que lembra os registros da Idade Moderna (Anexo C). Quando indagados, não souberam responder por que a foto do grupo de jovens sorrindo não estava na categoria da diversão e a dos jovens trabalhando na da responsabilidade, conseguindo justificar, mesmo com argumentos pobres e bem pessoais (como exemplo “não gosto de Justin Bieber”) com relação à presença das outras imagens. Pareceram surpresos com minha pergunta, alguns disseram nem ter percebido que os jovens estavam trabalhando.

“É porque tem pessoas de classe pobre que precisam trabalhar mais cedo” (Hermione). Responderam que são adolescentes também, mas que, como têm que trabalhar, adquirem uma maturidade maior do que a deles. Mais uma vez, consideraram que a constituição subjetiva do adolescente pobre é tecida no solo de sua experiência social, ao

106 mesmo tempo em que naturalizaram o fato de não vivenciarem a moratória a que os adolescentes (ou pelo menos alguns) têm direito, como apresentado aqui teoricamente. Quando perguntei se a foto estava naquele grupo como excluída porque não dizia repeito à realidade deles, Hermione respondeu que sim.

Embora outros tenham se posicionado como Hermione ratificando o lugar da exclusão da categoria, nesse e em outros momentos, ao longo dos encontros, oscilaram quanto a considerar que o “Pipi de Galinha” representava aspectos e vivências excluídos da adolescência por não pertencerem ao seu universo de experiências. Em muitos momentos foi tomado apenas como um emblema da “avacalhação”, do deboche, sendo, pelo mesmo motivo, rechaçado pelo grupo dos “responsáveis”. De um modo geral, portanto, o grupo produziu dois enunciados sempre em relação: o da exclusão e o da “avacalhação”, nos quais trouxeram – principalmente atravessados pelo “Pipi de Galinha” – elementos das várias adolescências.

Ao tentar relacionar os dois objetos constituídos ali, perguntei se a “avacalhação” também faz parte da vida do adolescente que trabalha, o que gerou diferentes posicionamentos. Uns disseram que sim, outros que não da mesma forma, traduzido nas palavras de Laura: “É diferente porque o adolescente que trabalha tem menos tempo pra avacalhação”. Embora tenham universalizado a “avacalhação” em momento anterior, nesse registro, também enunciaram o adolescente pobre como aquele que compartilha as experiências da adolescência apenas parcialmente, sendo excluído de boa parte delas. Assim como o “Pipi de Galinha”, o adolescente pobre foi localizado em suas falas entre a “avacalhação” e a exclusão.