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4.2 ADOLESCÊNCIA NA ORDEM DO DISCURSO:

4.2.3 O Discurso Sociológico: risco e individualismo como faces da mesma moeda

4.2.3.2 O Outro Ameaça, mas Também Seduz

Segundo Diógenes (2011), há outro significado para a prática de excessos, transgressões e outras formas de visibilidade exercitadas pelo jovem, além de uma reação à violência que sofre e ao enfrentamento da diferença. Traduz a autora:

A aparição do segmento juventude, tão alardeada pela mídia, tão exaltada através das campanhas publicitárias, desloca da cena pública a figura emblemática do adulto, trabalhador, protagonista das decisões políticas e elemento central no âmbito das relações públicas e privadas. O adulto representa o corpo docilizado (FOUCAULT, 1977), pressupondo-se já ter sido alcançado nessa fase da vida o controle das funções corporais e terem sido traçados os contornos do individualismo” (pp. 219–220).

Seguindo a lógica desse enunciado da autora, poderia se pensar na juventude, portanto, como resistência? Resistência às diversas formas de exclusão que, especialmente a juventude pobre, sofre nas grandes cidades? Resistência aos discursos que ignoram sua condição de sujeito e o subjugam ao lugar de espera, de moratória, de quem ainda vai ter sua vez de falar? Resistência à razão adulta, tratada como legitimada para falar do jovem, mas que nem sempre o inclui, de fato, em seu discurso?

A busca pela visibilidade por meio da transgressão no contexto da adolescência de classe média, segundo Oliveira (2006), tem relação com a busca de sentido para sua existência no contexto atual. A autora chama de indiferença a falta de interesse e cuidado com o outro. Segundo ela, o cenário contemporâneo de competitividade e o avanço tecnológico desestabilizam o indivíduo, enfraquecem os laços, de forma que ele se volta para si mesmo, o que lhe provoca sofrimento e necessidade de dar visibilidade a esse sofrimento. Nas palavras da autora:

O número crescente de atos violentos praticados por esse segmento, ou mesmo o envolvimento com drogas, acenam para a necessidade de nos voltarmos também para esses jovens com a perspectiva de um olhar que possa dar visibilidade ao seu sofrimento. Sofrimento encoberto pela fachada de uma atitude de “que tudo podem”, quando o que mais temem é a falta de perspectiva, vivendo o agora, como se nada tivessem a perder. Talvez sejam esses jovens os filhos dos workaholic, dos que têm condições de competir no mercado de trabalho, das mães lipoaspiradas, e também dos lares vazios preenchidos com a automação dos aparelhos tecnológicos (pp. 11–12).

Relacionando essa falta de sentido vivenciada na contemporaneidade com as questões do consumo, Oliveira (2006) propõe uma reflexão com relação aos dois segmentos socioeconômicos de jovens. Ambos são convocados, como afirmara Kehl (2004), a aderir aos apelos do consumo, mas o convite fracassa em ambos os casos. Os jovens mais favorecidos socialmente colocam-se na relação de consumo de forma transitória, pois a velocidade com que os produtos são lançados

102 (e consequentemente substituídos) no mercado não lhes permite alcançar o sossego do reconhecimento duradouro. O reconhecimento é efêmero e a busca, portanto, insaciável. Os jovens menos favorecidos, por sua vez, fracassam em sua busca pela impossibilidade econômica do acesso aos bens. Portanto, a inserção como consumidor insere esses jovens numa “cultura do imediato, de renovação e de morte constante” (OLIVEIRA, 2006, p. 4), enquanto seguem carecendo do suporte de um mundo estável. O sofrimento produzido pelo fracasso das experiências de consumo, segundo a autora, leva à disseminação da indiferença, ou seja, da crença de que não somos necessários ao outro. Nesse sentido, ela clama por uma atenção para o lugar que está sendo construído para (e por) jovens de classe média e média alta, pois, embora privilegiados socialmente, revelam no seu encontro com o diferente a fragilidade de seus laços. O individualismo traduzido como hostilidade e indiferença passa a ser reconhecido como solidão e sofrimento.

A busca por visibilidade é tratada então como uma resistência aos apelos da contemporaneidade ao mesmo tempo em que denuncia o sofrimento e a fragilidade dos laços com o outro real (não virtual), o que leva o jovem à posição de sujeito e objeto do individualismo. Embora a transgressão relatada como praticada pelos jovens do grupo não tenha extrapolado, por exemplo, as paredes de uma loja de departamentos, apareceu de outra forma e atravessou o discurso que eles construíram a respeito do adolescente menos favorecido socialmente. Foi o caso, por exemplo, no discurso da “avacalhação”, em que tentaram dar visibilidade ao quanto sua experiência é interessante (“para além da diversão”, como dito por Glauber), tanto que dificilmente conseguem sair dela, ou incluir o outro nela. O sofrimento ou a solidão não despontou como objeto de seus relatos e nem se tratou de investigar se os relatos são verdadeiros ou escondem outras verdades por trás, mas de tentar analisar, através das pistas em seus próprios discursos, como esses elementos os subjetivam e, associados à rede de poderes e saberes que o discurso como um dispositivo engendra, como reconhecem o outro no contexto das experiências adolescentes.

Num jogo interdiscursivo no qual se entrelaçaram enunciados de uma adolescência entre a exclusão e a “avacalhação”, o grupo chegou à figura do “pirangueiro” que acabou sendo constituída também como emblema da transgressão. O disparador desse debate foi a gravação em que explicaram os tipos adolescentes do vídeo ficcional. Como já dito na discussão sobre identidade, diferenciaram os playboys dos pirangueiros, partindo do critério socioeconômico. Além de diferenciarem, engrenaram várias falas sobre o pirangueiro, atribuindo-lhe muitos sentidos no contexto da exclusão e da “avacalhação”.

103 “É o que mora na favela, gosta de funk e forró. Usam roupas de marcas de surf populares” (Eduardo).

“O pirangueiro é o pilantra... usa short de veludo, camisa Cearamor32, Tuf, óculos

espelhados e brinco” (Glauber).

“É aquele que o meu pai vê na rua e diz que é bandido” (Eduardo).

Quando indagados sobre onde encontram os pirangueiros, referiram-se aos terminais (de ônibus), estádio de futebol e ao colégio X 33. Ao questionar como sabiam que os alunos de tal colégio são pirangueiros, perguntei se os conhecem. Disseram que não, mas a referência à tribo foi assinalada por Glauber. “Uma vez eu passei e iam me assaltando”. Nesse momento, questionei se a figura do pirangueiro está associada à bandidagem, marginalidade, como já havia sido dito por Eduardo com relação ao seu pai e eles confirmaram que sim. Igor explicou: “todos os pirangueiros que eu vi até agora são de classe média baixa”, mais uma vez trazendo à tona a associação entre pobreza e risco. Nesse momento, ilustraram sua fala com os adolescentes que aparecem em um dos vídeos que analisaram, circulando em um terminal de ônibus e pedindo dinheiro aos transeuntes34. Mesmo quando lembrei que estes não usavam short de veludo, óculos ou brinco, continuaram posicionando-os como objeto desse discurso, respondendo que são pirangueiros “pelo jeito de falar, pelo estereótipo” (Glauber). “Eles cortam o cabelo como o do Neymar. Aliás, o Neymar é o pai dos pirangueiros. Ele saiu da pirangueiragem, mas a pirangueiragem não saiu dele” (Eduardo).

A forma como discorreram sobre o pirangueiro é no mínimo curiosa. Praticamente criaram uma formação discursiva definindo as regras do que pode ser dito, como e quem está autorizado a falar e ser falado nesse discurso. A discussão foi calorosa e envolveu muitos do grupo, que dialogaram livremente e com propriedade sobre o assunto, embora tenham se esforçado para deixar claro que não fazem parte dessa tribo. No entanto, a não proximidade com ele e ao mesmo tempo a enunciação do pirangueiro como ameaçador, ou transgressor, não pareceu indicar que sentem medo dele. Apesar de todas as diferenças que fazem questão de mostrar num discurso depreciativo sobre o estilo, atitudes, ou objetos de consumo do pirangueiro, pareceram se reconhecer nessa tribo. Seja pela afinidade com a “avacalhação” e a irreverência ou pela tentativa de diferenciar-se dele, acabam transmitindo em seu discurso certa admiração à autenticidade do pirangueiro.

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32 Torcidas organizadas dos times de futebol de campo Ceará e Fortaleza, respectivamente. 33 Fazem referência a uma escola de médio porte, que fica na mesma rua de sua escola. 34 O vídeo em questão é discutido no tópico seguinte.

104 Segundo Kehl (2004), o adolescente contemporâneo perde a admiração pelos adultos como referências de futuro quando estes passam a se identificar e se incluir nas vivências adolescentes, já que é esse o status valorizado. Assim, buscam outros modelos para esse reconhecimento. Um dos caminhos possíveis para os adolescentes, segundo a autora, é a identificação com os marginalizados, com a “cultura hip-hop: rap, skate, grafite, bombeta e moletom” (p. 102). Tomando como base sua experiência clínica com adolescentes de classe média urbana, sobretudo de São Paulo, ela aponta algumas hipóteses para tal identificação: proteção, saída para a falta de sentido da vida pautada pelo consumo, desejo de desbravar o mundo, apresentando-se como perigosos, e busca de visibilidade. Independente dos motivos que levam o adolescente a tomar o outro marginalizado como referência cultural, penso que esta realidade apresentada por Kehl (2004) revela outras possibilidades de enfrentamento da diferença, que não apenas o estranhamento, destacad o por Castro (2000, 2001, et al., 2006).