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3. Abordagem teórica

3.2. A construção do entendimento

A perspectiva de análise dessa tese considera as peculiaridades geográficas e históricas da região em estudo. As terras que formaram os municípios de Soledade (1875) e Sobradinho (1927) foram incorporadas tardiamente ao sistema colonial português no Atlântico Sul. Pelas

93 Ver http://www.interpretesdobrasil.org/sitePage/63.av.

94 FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 3ª ed. RJ: Zahar editores, 1975. O capitalismo agrário brasileiro: “Contudo há uma diferença óbvia entre as economias centrais e hegemônicas e as economias periféricas e heteronômicas. Essa diferença consiste em que as segundas são caudatárias das primeiras e se organizam para beneficiar, de uma forma ou de outra, o seu desenvolvimento. Por isso, os vínculos colonial, neocolonial ou de dependência indireta traduzem-se, na prática, por uma inversão da realidade (como se a economia central se reproduzisse na economia periférica ao revés, para alimentar não o seu desenvolvimento, mas o desenvolvimento da economia dominante).” p, 181.

95 https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27635/000649265.pdf?sequence=1 96 LE GOFF, Jacques. A História Nova. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

características originais de opulência de recursos da floresta subtropical existente na Escarpa do Planalto Meridional e nos Campos de Cima da Serra, na margem esquerda do grande Rio Jacuí, no sentido da nascente no Norte rumo à região central, a ocupação humana foi limitada pela condição da espessa cobertura vegetal. Essa região fazia parte do sistema missioneiro, vinculado ao Império colonial espanhol, que explorava os ervais nativos e os pinhões das araucárias.

No século XIX e início do século XX, intensificou-se a diversidade étnica na região. Aos ocupantes tradicionais ameríndios, guaranis e caingangues, e aos já estabelecidos de origem europeia, como os espanhóis e os portugueses, além dos africanos, levados de forma compulsória pelo sistema de escravidão, somaram-se outras etnias pelo processo de colonização. Nas „terras públicas‟ florestais e em grandes áreas privatizadas, foram implementados importantes projetos de assentamento de colonos de diversas procedências, vindos diretamente da Europa, como ocorrera no século XIX, ou imigrantes de 2ª geração, especialmente os descendentes de alemães e italianos97. Eram as denominadas “colônias mistas”.

A intensificação da comercialização da madeira de lei, do tabaco, dos cereais e da banha suína trouxe novos desafios para a economia tradicional baseada na criação de gado e na exploração de erva-mate. O modelo „herdado‟ da organização missioneira, agora sem a incômoda presença da Companhia de Jesus98, sob a liderança de militares latifundiários, preservou a biodiversidade florestal e conciliou, de certa forma, a atividade econômica com o trabalho das populações indígenas e dos caboclos posseiros, que ocupavam as florestas e trabalhavam no manejo dos ervais nativos, detentores que eram da técnica da produção da erva-mate. No novo modelo de produção – caracterizado pelo abate florestal, pelo incremento das serrarias para a comercialização de madeira, e pelo posterior cultivo para a exportação de fumo e de grãos, como o milho e o feijão – as populações nativas „não eram mais necessárias‟ ao projeto agrícola e foram ignoradas nos processos de privatização de terras, especialmente das grandes áreas públicas. Com certeza, essa foi a grande anomia99 perturbadora da ordem centenária de exploração florestal sustentável perdida, irremediavelmente, frente ao abate das madeiras com finalidade comercial e da abertura de lavouras para a exportação.

97 Embora nascidos no Brasil, os descendentes de imigrantes continuaram a ser identificados com a nacionalidade de origem. 98 KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.

99 ZALUAR, Alba. “Os movimentos „messiânicos‟ brasileiros: uma leitura”. Resenha publicada no BIB n. 6, Rio de Janeiro, [1979]. A autora se refere aos processos de anomia que desorganizam as sociedades e que geram novas articulações sociais, p. 148.

No Brasil, na década de 1930, estava-se a pouco mais de quatro décadas da instalação do regime republicano, que garantiu uma nação com relativa independência, mas sempre associada aos grandes interesses econômicos e políticos globais. No cenário internacional, o país era alvo de cobiça entre as potências europeias clássicas, Inglaterra e França, e as emergentes, Alemanha, Itália, Japão e EUA, fosse como local de destino para imigrantes, ou como produtor de matérias primas. Era um momento de crise econômica, de acirramento de opiniões e de radicalidades com o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial. O movimento religioso dos monges barbudos contestou diversas situações de opressão, entre elas, a relação com os comerciantes, intermediários na venda das lucrativas safras agrícolas, especialmente para a próspera e internacionalizada indústria fumageira.

Frente a um aparato institucional opressor, distanciado dos conceitos de cidadania e de direitos universais, em discussão desde o século XVIII, limitador do direito de organização e de reivindicação por parte dos despossuídos, quais eram as alternativas para as classes populares? As inúmeras situações de „injustiças terrenas‟ poderiam ser resolvidas pela perspectiva de uma “justiça divina”, que garantisse aos despossuídos alguma vantagem na disputa desigual?

Os movimentos religiosos no Brasil, especialmente depois do massacre de Canudos, dos muckers e da Guerra do Contestado foram tratados como “comunidades anormais”, tendo como referência as elaborações de Nina Rodrigues. Mesmo a sociologia crítica dos anos 1950, 1960 e 1970, que enquadrou essas situações como “movimentos messiânicos”, não conseguiu romper de forma radical com o conteúdo ideológico opressivo da concepção de fanatismo religioso.

As análises do episódio dos monges barbudos de Soledade e Sobradinho, conforme apontado no Capítulo 2 desta tese, também foram influenciadas por essa matriz do pensamento conservador brasileiro, que sequer cogita aceitar a autoria e o protagonismo das classes subalternas. Assim, em diversos estudos sobre esses movimentos, existiram esforços para identificar os “profetas” populares ou os personagens místicos, vistos como lideranças externas a influenciar a tomada de posição dos oprimidos, enquanto que as situações conflitivas locais, imediatas ou de maior duração, acabaram não tendo a profundidade que seria necessária para um entendimento mais abrangente.

Não resta dúvida de que o enfrentamento coletivo popular às violências e às relações de poder, através de movimentos religiosos, é instigante e recorrente no Brasil. Dessa forma, é necessária a construção de instrumental teórico específico para a análise dessas mobilizações sociais, que supere o modelo de messianismo e que consiga apontar os protagonismos e as

peculiaridades dessas articulações sociais religiosas. Essa já é uma tendência na sociologia brasileira.100 Para além da resistência coletiva, esses movimentos sociais de caráter religioso implicam ainda na adesão individual e em sistemas hierárquicos de pouca amplitude. Um olhar de gênero e etário pode ser incorporado às análises.

Por fim, é preciso que se examine o contraste desses arranjos de solidariedade social e religiosa com outras matrizes do pensamento racional, cientificista e da ética competitiva capitalista. A negativa reiterada do estado brasileiro em reconhecer o direito a um modo de vida autônomo tem sido constantemente imposta contra anseios de setores populares, que persistem na alternativa de construção de vínculos e redes de sobrevivência. A resistência mestiça dos subalternos deparou-se, nos anos 1930, com um texto legal que justificativa a intervenção estatal repressora, a Constituição de 1891. Mesmo com a modificação e a atualização dos instrumentos do direito ao longo da história brasileira, o „espírito‟ inquisitorial101 permaneceu na prática de opressão das demandas populares. Em vários casos, é o poder judiciário que estabelece o enquadramento da legítima contestação social como rebeldia política ou religiosa e, portanto, na perspectiva criminal.