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Homens rudes, mulheres assoberbadas, crianças trabalhadoras e

No Capítulo 4, são analisados processos criminais envolvendo a condição feminina na década de 1930, nas áreas rurais de Soledade e Sobradinho. As disputas por direitos estão influenciadas pelo momento sócio-político do fim do regime de escravidão legal no Brasil, do início do regime republicano e do estado de exceção criado por Getúlio Vargas, o Estado Novo (1937-1945). Os casos analisados envolvem mulheres e crianças que criaram resistência não organizada, frente ao poder de uma elite masculina branca, proprietária e, indisfarçavelmente, violenta. Com a amostra escolhida, pode-se observar atitudes corajosas na defesa de direitos básicos de moradia, de reconhecimento do trabalho e da liberdade de ir e vir. As protagonistas revelaram traços de insubordinação às convenções sociais da época. Os processos examinados retratam episódios cotidianos de questionamento do poder

133 LANGENDONCK, Madame van. Uma colônia no Brasil: narrativa de viagem ao Rio Grande do Sul em 1862. Florianópolis: Ed. Mulheres, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2002.

androcêntrico134, mesmo sem um discurso político articulado, expressam contestação e, por isso, acabaram em contendas judiciais. Não raras vezes, a humilhação das vítimas significou uma penalidade extralegal pela insubordinação feminina.

O ponto de partida que orientou a pesquisa foi a significativa participação de jovens, mulheres e crianças no movimento dos monges barbudos (1935-1938) e o fato de estarem “em comum”135

com os homens nas reuniões promovidas por Anastácio Fiúza, conforme apontado pelos vizinhos que não aderiram à „nova religião‟. Pela impossibilidade de se verificar uma condição de „igualdade‟ entre homens e mulheres participantes, nos marcos atuais em que se encontram as pesquisas sobre esse grupo social, percorre-se o caminho inverso, o da desigualdade de gênero e de faixa etária. Assim são abordadas situações corriqueiras onde se evidencia as „minúcias‟ da dominação masculina, como apontado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu136.

As marcas da masculinidade violenta podem ser observadas nos maus-tratos nas relações de trabalho, que refletem os diversos tipos de prevalecimento da condição de inferioridade social das mulheres. As meninas entram em cena como trabalhadoras e vítimas de abusos, inclusive sexuais. Com esses processos criminais verifica-se a situação das “criadinhas”, meninas afastadas do ambiente familiar, algumas percorrendo grande distância, para realizarem serviço doméstico, a troco de casa e comida, quase sempre sem remuneração. Alguns desses casos tiveram sentenças exaradas pelo juiz Aristides Dutra Boeira. Esse magistrado absolveu os matadores do curandeiro André Ferreira França em 1938. Nos casos selecionados, o juiz da comarca deixou evidente sua forma peculiar de julgar: estava interessado em condenar ou absolver o agente do delito, influenciado por supostas intencionalidades, e não pela gravidade do fato criminoso em si, ou pelas provas apontadas nos processos.

A perseguição aos curandeiros pôde ser acompanhada no caso do espancamento da família de José Alves de Oliveira, pai de cinco crianças que apanharam brutalmente de um estrangeiro interessado em cobrar arrendamento das terras. A testemunha acabou acusada de “baixo espiritismo”, em uma reversão ocorrida no desenrolar do processo. A família teve que se colocar em fuga. Em outro caso, houve a invasão à casa de Margarida Pereira Fortes, um

134 O debate sobre as minúcias da dominação masculina tem como referência Pierre Bourdieu.

135 Conforme informações do oficial Rodrigues. Ver RIO GRANDE DO SUL. Brigada Militar. Relatório sobre os

acontecimentos ocorridos nos municípios de Soledade e Sobradinho com o surto de fanatismo religioso praticado por elementos que se tornaram conhecidos por „monges barbudos‟. Do major José Rodrigues da Silva para o comandante

geral da Brigada Militar. Porto Alegre, 12 de julho de 1938. Essa autoridade da BM inicia as investigações como capitão e logo vira major.

136 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. A condição feminina e a violência simbólica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2017.

casebre isolado no meio do mato. Como álibi, os agressores acusaram a reunião de “fanáticos”. O resultado foi a expulsão dos pobres posseiros da floresta.

O capítulo encerra com um levantamento da condição das mulheres na legislação republicana. Alguns trechos de instrumentos legais foram analisados, são eles: a) a Constituição de 1824, do Brasil independente sob a monarquia dos Bragança; b) a Constituição Republicana de 1891; c) o Código Criminal de 1830 e d) o Código Penal de 1890. Esses documentos contribuem para o debate porque registram as tensões da época, marcada por profundas mudanças sociais advindas do final do regime escravista e pelo ingresso maciço de imigrantes de origem europeia e asiática no Brasil, além de terem servido como marco político de ruptura com a monarquia. De modo geral, esses instrumentos, que definem a construção da brasilidade, são mais analisados por especialistas do direito do que por cientistas sociais. Na análise dos textos institucionais, verifica-se os avanços e os recuos na perspectiva do estabelecimento de direitos. Na legislação criminal, pôde-se observar que houve retrocessos no Código Penal republicano com relação ao Código Criminal de D. Pedro I.

Em resumo, o capítulo discute cinco aspectos principais: 1) as desigualdades e as violências no cotidiano das mulheres na sociedade sul-rio-grandense no final do século XIX e início do século XX; 2) as relações de trabalho e os cuidados com as crianças e os afazeres domésticos das mulheres; 3) a ação do poder público, policial e judicial, legitimando ou contestando as desigualdades; 4) a legislação como possibilidade de conciliação ou de acirramento da situação de desigualdade social das mulheres; 5) o movimento religioso dos

monges barbudos visto como alternativa para os jovens que eram atraídos para práticas

violentas.