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3. Abordagem teórica

3.1. Um país de origem colonial

Esta tese busca dialogar com diferentes campos de conhecimento das ciências sociais. Os aspectos trabalhados estão inseridos historicamente na passagem do século XIX ao século XX no Brasil e podem ser agrupados nas seguintes temáticas: a) as mudanças, ou as permanências, advindas com o fim da escravidão legal e a generalização do trabalho livre; b) a construção do aparelho de Estado republicano, garantindo os privilégios dos setores dominantes, e as diferentes maneiras dessas estruturas estatais afetarem a vida cotidiana das populações excluídas dos grupos de poder, especialmente através do poder judiciário; c) a resistência dos subalternos na defesa de liberdades associadas ao modo de vida e as relações com a natureza, especialmente o caso das mulheres, dos jovens, das crianças e das etnias

89 Processo criminal citado por FILATOW Fabian. Política e violência em Soledade – RS (1932-1938), 2015. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de apelação. Sobradinho, 1942, 2ª Câmara Criminal. Clarismundo de Souza e José Dionisio da Silva. Fábio Domingos dos Santos, Manoel Furtado e Roberto Vargas da Silva, apelados.

afastadas dos postos de mando; d) a análise dos movimentos sociais de cunho religioso, tidos como “fanáticos” ou como “movimentos messiânicos”. Esses quatro grandes grupos temáticos estão no percurso da pesquisa, dando a ela um caráter panorâmico.

Não se tem a intenção de realizar uma reconstrução histórica linear, nem de esgotar esses temas de forma exaustiva, tampouco realizar um estudo de âmbito teórico. Ao contrário, a proposta é a de reunir argumentos em uma determinada direção, mais do que aprofundar um único assunto, tendo por base documentos judiciais e de textos legais fundantes da nacionalidade brasileira. A proposta é a de estabelecer um olhar antropológico e sociológico para uma documentação histórica, exercitando a observação de um tempo e de um lugar não mais existentes, vistos por meio de depoimentos organizados por inspetores, delegados, oficiais de justiça, promotores e juízes, alguns com formação em Direito, outros, eram cidadãos comuns, os ad-hoc. O intuito é o de fazer antropologia histórica90 da vida cotidiana, a partir de registros judiciais, visando analisar a sociedade violenta que se forma por um conjunto infinito de detalhes e posturas rotineiras aceitas e normatizadas que vão das guerras ao estupro de meninas.

A construção da brasilidade é um processo de longa duração91 permeado por constante conflito de interesses. A inserção das terras das Américas no cenário de expansão capitalista da Europa Ocidental marcou de forma definitiva a história do continente. A parte da América do Sul que coube a Portugal, e que veio a formar um país independente somente na primeira metade do século XIX, não pode ser vista fora do contexto internacional de disputa por terras e riquezas. A exploração colonial dos recursos naturais com mão de obra escravizada são os parâmetros para o entendimento das relações humanas aqui desenvolvidas. Mesmo com a tardia independência, o Brasil continuou a atender com prioridade as demandas do mercado internacional, mantendo a concentração da propriedade privada e o trabalho escravo. Os ventos quase modernizantes da República não foram suficientes para amalgamar um outro percurso, ao contrário, os esforços foram no sentido de intensificar privilégios parcialmente ameaçados pelo fim do regime de escravização legal.

A construção da autoimagem do Brasil e dos brasileiros contou com a participação de intelectuais que atuaram no reforço de ideias estereotipadas das relações sociais estabelecidas ao longo do tempo. O antropólogo Nina Rodrigues92 (1862-1906) é um exemplo contundente

90 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra. O autor analisa a crença no poder curativos dos reis ao longo dos séculos na Europa. Para Jacques Le Goff, esse é um livro pioneiro; “que faz desse grande historiador o fundador da antropologia histórica”, p. 9. Foi publicado pela primeira vez em 1924. 91 O termo longa duração foi cunhado pelo historiador Fernand Braudel e tem larga utilização nas ciências sociais. 92 RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. Brasília: Edições do Senado Federal – Vol. 76, 2006.

do envolvimento de setores intelectuais com a elaboração e manutenção de teses de superioridade do modelo das metrópoles e da inferioridade humana e cultural dos habitantes nativos e das populações africanas reduzidas ao sistema de escravidão. Ao mesmo tempo em que o autor buscou enxergar essas populações, que estavam esfumaçadas pelo poder de origem europeia, não conseguiu escapar de um conceito hierárquico e elitista de civilização.

Foi necessária uma nova geração de pesquisadores sociais, conhecidos como os

interpretes do Brasil93, formada pelos paulistas Sérgio Buarque de Holanda, Florestan

Fernandes94 e Caio Prado Jr95, o sul-rio-grandense Raimundo Faoro e o mineiro Darcy Ribeiro, entre outros, que formularam uma ideia de país no contexto dos conflitos de classes e das grandes estruturas. Uma geração de cientistas sociais acadêmicos influenciados pelas principais correntes da moderna sociologia como o marxismo, o estruturalismo e o funcionalismo, inspirados particularmente em cientistas sociais franceses que ajudaram a fundar a Universidade de São Paulo (USP), como Claude Levi-Strauss e Fernand Braudel.

Com o fim da ditadura militar (1964-1985) e o processo de redemocratização no Brasil, foram ampliadas as pesquisas em ciências sociais oriundas das instituições de ensino superior. No contexto de abertura política, houve incremento nas traduções e publicações de autores de diversas nacionalidades. Entre os intelectuais franceses, é inegável a influência que os estudos de Michel Foucault, Michelle Perrot e Pierre Bourdieu tiveram junto aos pesquisadores nacionais. Novos temas, novos objetos, novas metodologias96 foram ganhando espaço de atenção não somente para os historiadores sensibilizados pela Escola dos Annales, mas também influenciando um conjunto de acadêmicos interessados nos setores marginalizados e excluídos, em temas como a feitiçaria, as mentalidades e a longa duração.