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Apontamentos durante o percurso: o que interessou nos processos?

4. Metodologia

4.1. Apontamentos durante o percurso: o que interessou nos processos?

Inicialmente, a curiosidade científica estava em localizar os ex-escravos como forma de verificar as novas relações produtivas e os arranjos de poder que foram se estabelecendo após a abolição legal da escravatura. No entanto, nos maços pesquisados, a população negra ou parda era escassa frente a uma população branca formada por imigrantes de origem portuguesa, alemã e italiana, junto com outros de várias procedências. Embora raros, os episódios localizados envolvendo “negros”, “pretos” e “indiáticos” eram significativos dos conflitos a que estavam submetidos os descendentes de africanos e ameríndios no sul do Brasil.

Logo foi possível observar a participação de homens negros como agentes contratados para práticas de violência, na condição de capangas ou como participantes de contingentes militares. Esses grupos armados eram fundamentais para a garantia da posse e ampliação das terras ocupadas pelos negociantes capitalistas. Para além dessa função, visualizou-se o dia a dia da labuta rural e a condição de “jornaleiro”. Nesse caso, apareciam também mulheres negras agricultoras. Da comunidade nativa local, guaranis e caingangues, foi localizado somente um caso envolvendo uma “indiática” sexagenária vítima de assassinato. Esse processo revelou uma possibilidade de ligações entre o movimento dos monges barbudos e populações de origem indígena. Nesse percurso, mais de ausências do que de presenças, foi possível verificar que as populações nativas e os libertos não contavam com o poder de justiça

como forma de garantia de seus direitos. Ao contrário, quando a polícia e a Justiça apareciam era para lhes tornar réus.

Na escolha dos processos, tiveram preferência casos de violações de direitos civis: restrição de liberdades e as suas resistências. No aspecto coletivo, foram priorizados os conflitos étnicos, os confrontos políticos, relações de exploração do trabalho e dos recursos naturais. O tema do acesso à propriedade da terra e aos bens naturais esteve presente durante toda a investigação. Mas, uma outra questão ganhou relevância: a ditadura do Estado Novo implementada por Getúlio Vargas. Teria sido possível a permanência de alguns direitos, ou tudo foi subtraído? Existiriam direitos civis capazes de resistir a um processo ditatorial?

Foi nesse caldeirão de temas complexos que cresceu como eixo guia o aspecto apontado da participação significativa de mulheres e crianças no movimento dos monges

barbudos nos jornais da época e nos registros das autoridades locais.111 Ganhava relevância saber: quais as contradições do universo feminino capazes de influenciar a adesão dessas agricultoras a uma „nova religião‟? Seria possível dizer que esse movimento religioso, com fortes traços de defesa da natureza, teve mais empatia para com as mulheres do que as ideologias positivistas e cientificistas112, tão em voga entre os republicanos do sul do Brasil?

Em cada processo aberto brotavam casos de mulheres vitimadas: violência social e sexual, maridos e companheiros agressores, brigas entre as próprias mulheres. Ao mesmo tempo, ia sendo revelado o intenso trabalho „invisível‟ realizado por elas: nas casas, nas roças, nas costuras, nos cuidados com as crianças, nas lides com os animais e na realização de negócios. Uma função social em especial passava a ser recorrente: os trabalhos domésticos realizados por “criadas”. Elas eram meninas ou mães solteiras, podendo ser viúvas. Algumas chegavam às casas ainda pequenas, podiam vir de longe, sozinhas ou com irmãs e irmãos, eram criadas pelas famílias, mas acabavam enfrentando o acosso sexual e os abusos nas relações de trabalho. Sistematicamente, elas eram enganadas, exploradas e violentadas. Reagiam. Eram tantas e em tão diversas situações que foi necessário um capítulo para o tema, buscando responder quais eram os retratos de mulher que existiam naquele momento e quais eram as suas resistências frente à opressão masculina. As discriminações nos textos legais e a postura dos agentes de estado frente às mulheres foi um tema que cresceu ao longo da pesquisa.

111 DIÁRIO DA MANHÃ. Passo Fundo, 19 de abril de 1938.

112 Ver ORTNER, Sherry B. “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?” In ZIMBALIST, Michelle Rosaldo e LAMPHERE Louise (Coord). A mulher, a cultura e a sociedade. Paz e Terra, 1979, p. 95-120.

Uma constatação foi aparecendo logo de início. Ao estabelecer o casamento civil, a República mudou substancialmente o status das mulheres. O casamento religioso deixou de ser válido enquanto registro civil, assim as uniões realizadas somente na igreja passaram a condição de concubinato. Isso afetou enormemente as mulheres, pois elas saiam da condição de esposas indo para a de „amasias‟, mudando inclusive o status familiar e o direito de herança. Os arranjos familiares informais davam conta das mortes prematuras – por doenças e pela falta de assistência médica. A viuvez, com as crianças pequenas, exigia soluções, entre as quais, novos matrimônios com a finalidade de amanizar a dura tarefa de criar vários filhos.

A pergunta seguinte buscou enxergar o universo infantil: como eram vistas as crianças, quais eram seus direitos, que lugares ocupavam no mundo social e do trabalho? Foram fortes as evidências do labor infantil: crianças cuidando de outras crianças, trabalhando na roça, percorrendo distâncias, destinadas às lides domésticas e à rudeza persistente da rotina diária. Elas iam, em larga medida, substituindo o trabalho anteriormente feito por mão de obra escravizada. Concomitantemente, foram aparecendo casos de violência. As crianças apanhavam: dos familiares, dos vizinhos, dos „inimigos‟ dos pais. A violência sexual também era um dado da realidade infantil, surgiam aos borbotões nos documentos pesquisados. Eram casos de defloramentos de jovens noivas e namoradas ludibriadas, gravidez precoce e, especialmente, estupros de meninas e abuso sexual por parte de homens adultos.

Assim, em paralelo, foram emergindo os diversos aspectos da masculinidade sul-rio- grandense. No acervo pesquisado constam inúmeros processos crimes por brigas devido aos jogos e por motivos políticos e étnicos. As desavenças aconteciam nas festas, nos botecos e nos armazéns de beira de estrada, durante as bebedeiras. Eram brigas de honra, de desacerto pela palavra empenhada ou por ideologia. Enfrentamentos com o uso da faca e do revólver. Mas também demonstrações de força com o uso do relho. Homens empoderados montados a cavalo, dirigindo carroças, caminhões, automóveis e propriedades. Homens sem poder sofrendo violências. A alcoolização, o consumo recreativo e por vezes excessivo da cachaça e do vinho, surgiu como um tema a ser tratado, mesmo que de forma incipiente.

Como pano de fundo, a organização do poder judiciário. Foi preciso desvendar o seu funcionamento, as regras de conduta, as metodologias, as teorias nacionais e internacionais que acompanhavam as decisões das sentenças. Foi necessário observar as rotinas na condução dos processos, as fragilidades e as contradições institucionais. Assim foi sendo esmiuçado esse poder, tão pouco debatido pela cidadania, mas com longos braços, por vezes, quase invisíveis, frente aos demais poderes eleitos do Estado, como o executivo e o legislativo. Pôde ser apontado um núcleo de operadores jurídicos que ora atuavam como advogados, ora como

promotores, ora como juízes. Uma geração de operadores do direito que atuavam naquela região. Além deles, foi possível observar posturas dos agentes administrativos do processo – oficiais de justiça, escreventes e legistas ad-hoc – e constatar o protagonismo social e político desses personagens. Ficaram perceptíveis as redes de beneficiamento próprio, dos familiares e dos amigos na operação do sistema de justiça. Desde grandes benefícios envolvendo a propriedade das terras, passando por ganhos advindos de informação privilegiada e chegando a absolvição por convicção da moral dos envolvidos e não por provas documentais.

Na análise dos processos, foi possível detectar as estratégias da denúncia, as práticas da investigação policial, os „truques‟ da defesa e a regularidade das sentenças. Mas, especialmente, o debate entre os agentes do poder judiciário. Por vezes, o fato, as circunstâncias, os envolvidos – réus, vítimas e testemunhas – sumiam frente aos discursos jurídicos refinados, em francês ou em latim, com jurisprudência nacional e internacional. Foi ficando explícito que o destino dos réus dependia muito mais da atuação dos defensores do que de sua inocência. Mais do que isso. Vítimas e réus estavam irremediavelmente à mercê do posicionamento ideológico dos juízes. Foi sendo possível verificar o quanto uma sentença dependia da compreensão de mundo e das moralidades desses julgadores. O exame das sentenças foi demonstrando a coerência política de seus autores.

Durante a pesquisa, frente aos manuscritos com caligrafias sofríveis, existiu um ímpeto de olhar o processo pelas páginas iniciais e finais, como síntese do conteúdo. Mas, como apontar as contradições, os ditos e os não-ditos, os recuos ou os atos de coragem, as ênfases na fala e nos gestos registrados ao acaso, os detalhes que se escondiam e que se revelavam? Não houve outra saída senão examinar o material por inteiro. Detalhadamente. Em cada despacho manuscrito poderia estar gravada uma informação surpreendente, inusitada, que mudava o rumo das investigações e das análises. Pistas ao acaso. A cada dia, foi sendo construída a convicção de que um processo criminal não se desvenda pela denúncia da promotoria ou pelo relatório policial. Ele é cauteloso, revela-se aos poucos.

O trabalho de pesquisa com documentos históricos é analítico, interpretativo e moldado pela persistência. Embora envolva um trabalho de cópia, todos os „recortes‟ são pessoais, assim como a reconstrução dos casos, exceto se a opção for divulgar todo o dossiê aos moldes do que foi feito pelo filósofo Michel Foucault113. Isso porque as boas informações podem estar na lista de testemunhas, nas contradições entre os depoimentos, nos dados das delegacias de polícia ou nas audiências de julgamento. São os apontamentos de oficiais de

113 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... Um caso de parricídio do século XIX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

justiça, as perguntas dos defensores ou o silêncio persistente da promotoria que vão revelando as presenças e as ausências. Ocultação e revelação. Verdades e mentiras. Detalhes ocasionais, por vezes “não ouvidos”. Um esforço de busca, uma relação intensa com uma realidade passada, formulada por policiais, escrivães, advogados, promotores e juízes de acordo com teses bem ou mal construídas de acusação e de defesa. Um trabalho de recuperação de uma narrativa, a partir das muitas vozes registradas nos processos, transcritas por diversos agentes, possível somente para quem aprecia o cheiro de papel velho e tem paciência com caligrafias mal desenhadas.

Na análise do material, pôde-se constatar que, inversamente do que diz o ditado popular, “a Justiça tarda, mas não falha”, o correto seria dizer: a Justiça falha, porque tarda. Os procedimentos morosos levavam à perda dos prazos resultando em rotineiras prescrições. Outro aspecto observado foi a valorização intermitente dos pacíficos, dos sem antecedentes, dos que não têm inimigos. Ao mesmo tempo em que ficava claro o repúdio aos que se defendem, aos que se exasperam, aos que gritam. No jogo jurídico, se reflete a sociedade hegemonista, que massacra os altivos, que despreza aqueles que disputam, os que não se rendem e não se entregam aos ditames dos poderes de submissão e exploração. Nesse cenário, a cidadania pacata é valorizada e dela se espera a subordinação ao status quo e aos agentes do Estado. A oposição, seja de que tipo fosse, era refutada. Evidenciou-se um círculo vicioso de benesses, de privilégios e de bons negócios, avalizados pelo Estado enquanto situação política permanente.

No exame dos documentos selecionados, foi levado em conta as questões formais atinentes à construção do processo crime em si: a organização dos documentos pelos escrivães, a tramitação célere ou morosa, o papel de cada agente envolvido na fase policial e na fase judicial. Tudo feito com linguagem particular, específica e hermética114, acessível somente para os membros do campo jurídico115 e utilizada em rituais padronizados. As distinções refletiam-se na forma de tratamento dispensado aos réus, às vítimas e às testemunhas, e aos operadores do direito entre si. Era visível o esforço republicano inicial de construção de procedimentos mais „igualitários‟ – como chamar os designados para as funções judiciais, os ad-hoc, de “cidadãos” – com a criação de formulários-padrão e levantamentos de estatísticas criminais.

114 O delito é identificado apenas pelo número do artigo do Código Penal. Para entender a acusação, o réu deve conhecer a legislação.

No entanto, os aspectos de valorização da cidadania, que se manifestaram no início da República, foram se perdendo rapidamente, como o tratamento mais informal dispensado aos agentes envolvidos com a função pública. Com a profissionalização das atividades judiciais, por meio da contratação de membros permanentes, rapidamente, foram sendo adotadas formas de tratamento nobiliárquicas a esses agentes públicos. Um „estilo bajulatório‟ substituiu a “graça de Deus”‟, da época do Império, pela “excelência” dos juízes da nascente República.

Os instrumentos legais utilizados – como os relatórios policiais, a denúncia da promotoria, a defesa escrita dos advogados e as sentenças dos juízes – tinham finalidade pragmática, mas também poderiam servir para demonstrar erudição e alguma sofisticação intelectual. Isso se verifica mais na fase judicial do que na fase policial, sempre mais objetiva, mas nem por isso, menos engajada em uma das partes do litígio. Pôde-se “assistir” ao debate desses agentes, alguns com aporte na jurisprudência. Fazia parte da boa acusação, de uma respeitável defesa ou de uma sentença consistente, a demonstração de que o agente tinha preparo no universo da língua culta e nas formalidades institucionais, que cresciam com o novo regime. Mesmo no universo aqui manipulado, onde a maior parte dos documentos utilizados são de processos criminais julgados por juízes distritais, municipais ou da comarca, observa-se essa busca de distinção por intermédio da linguagem jurídica.

Em várias oportunidades, detectou-se que os depoimentos policiais eram mais detalhados, „melhores‟ do ponto de vista da pesquisa. Na Justiça, os inquiridos expressavam mais introspecção, superficialidade ou confusão no registro das falas. No pior dos casos, o depoente calava-se entregando ao defensor o arrazoado da defesa. As testemunhas presenciais constituíam-se em elementos quase „extraordinários‟ desses processos. Quando estavam na cena do delito, podiam ser desqualificadas pela idade ou pela proximidade familiar com os envolvidos; quando “nada viram”, eram chamadas a dizer o que “ouviram falar” ou sobre os antecedentes das partes. Elas ajudavam a compor o cenário de que mais importava o agente do delito do que a ação a ser julgada. A gravidade do fato variava conforme a condição social do réu ou da vítima. Mesmo com as mudanças nos marcos legais, as práticas jurídicas pareciam atender mais à tradição do que ao novo texto da lei.116

Afora as questões atinentes ao processo em si – o ato delituoso, o processo penal, os ritos policiais e jurídicos –, os documentos analisados são exuberantes em aspectos da vida cotidiana. Por isso, o interesse pela violência do dia a dia e não somente o extremo do homicídio ou das maiores crueldades. A observação esteve nos procedimentos habituais e

116 O jurista Lênio Streck é especialista na analisa do tema da adesão, ou não, do poder judiciário frente às novas leis, mesmo em processos constituintes que obrigam a atualização legal.

rotineiros que, em determinado momento, extrapolavam o aceitável e recebiam a denúncia pública de um agente do Estado, fosse ele policial ou promotor de justiça, contava com a disponibilidade de escrivães ou de juízes em fazer existir, ou sumir, o processo e suas sentenças.

Assim, foi possível observar as distâncias percorridas a pé ou a cavalo, as enchentes que transbordavam os rios e riachos, as boiadas percorrendo as estradas embarradas. Nas linhas e entrelinhas, visualizavam-se a condição social das mulheres, das crianças, dos ladrões, dos desviantes, dos desvalidos, dos subalternos. Pode-se dizer que existe certa “magia” nesse conhecimento que se revela lentamente, marcado pelas descontinuidades. Os processos criminais são sempre surpreendentes. Quando parece que tudo foi resolvido, surge o inesperado, os detalhes que desorganizam as versões, que põem abaixo os álibis, que promovem as reviravoltas. Um universo nebuloso capaz de tornar vítimas clamando por justiça em réus próximos da condenação. Informações preciosas, que passam despercebidas.

Por vezes, são aspectos mais banais que inviabilizam a aproximação com os „rastros‟ do passado117. Uma letra ruim pode ser capaz de pôr por terra todo o esforço de pesquisa. Os manuscritos exigem aproximação para que a ortografia118 e a caligrafia possam ser entendidas no quadro de expressões da época. São aqueles que fazem os registros – os escrivães, os delegados de polícia, os promotores de justiça, os juízes e advogados – com garranchos ou grafias bem desenhadas, que definem se será ou não possível desvendar os acontecimentos mediados por essa escrita. Uma situação específica desafiou a capacidade de persistência no trabalho com as fontes: no processo criminal movido contra o juiz distrital Júlio Telles, o depoimento de André Ferreira França, a única manifestação do curandeiro do movimento dos

barbudos localizada até este momento, estava propositadamente mais difícil de ler do que

todos os demais registros feitos pelo escrivão. Por isso, pode-se afirmar a intencionalidade desse agente em dificultar a leitura ou simplesmente sua forma peculiar de menosprezar o depoente.

117 Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e história. São Paulo: Editora Schwarcz, 1989.

118 Nas citações dos processos, houve atualização ortográfica, como medida de facilitação da leitura e foram corrigidos os casos de pontuação obrigatória. Alguns nomes próprios foram atualizados no decorrer do próprio processo, deu-se preferência a grafia da assinatura. As dúvidas ficaram entre colchetes.