• Nenhum resultado encontrado

2.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE INVESTIGAÇÃO

2.4.1 A Construção dos Instrumentos da Pesquisa

Após esse processo muito particular da história da pesquisa, no final de fevereiro e início de março, nos sentimos dispostas e “preparadas” a iniciar o trabalho de entrevistar os sujeitos da pesquisa.

No decorrer de todo esse processo de idas aos abrigos não nos descuidamos das questões teóricas que cercavam nosso objeto. Dedicamos parte do nosso tempo às leituras e busca de material teórico que, de alguma forma, nos propiciassem continente e um certo conforto para nossas angústias, dúvidas e reflexões.

Ao nos aproximar cada vez mais dessa literatura, sentimos que nosso trabalho ia ganhando substância e materialidade, e isso nos animava, nos causava prazer, gosto pelo que vinha sendo realizado. A partir desse entrelaçamento empiria-teoria, produzimos nossos instrumentos de investigação, que descrevemos a seguir:

1. No primeiro momento de nossa inserção no campo, utilizamos o diário de campo, no qual passamos a escrever nossas observações da forma participativa acerca de tudo que percebíamos, sentíamos, e que chamava nossa atenção. O diário de campo nos acompanhou em todas as etapas da pesquisa;

2. Construímos uma ficha de identificação institucional (apêndice 1), através da qual passamos a conhecer de maneira geral, o tipo da Instituição. A ficha consta dos seguintes dados: o caráter da instituição, clientela atendida, faixa etária, turno de atendimento, distância, número de atendimento, capacidade de atendimento, se a instituição atendia a adolescentes especiais, tipo de trabalho realizado pela instituição, tipo de vínculo com a instituição (permanência), equipe técnico-pedagógica;

3. Produzimos o roteiro de visita ao abrigo (apêndice 2), que tratou desde a questão histórica de construção do abrigo a observações da estrutura arquitetônica, quadro dos

recursos humanos, dinâmica do cotidiano do abrigo, relações interpessoais dos meninos com companheiros do abrigo, com técnicos, educadores e pessoal de apoio, a existência da documentação normatizada no abrigo, observações de discursos do dito e do “não dito”, focando fundamentalmente questões relativas à sexualidade dos adolescente no abrigo pesquisado;

4. Elaboramos um questionário com perguntas (apêndice 3), cuja finalidade foi traçar o perfil sócio-econômico dos adolescentes a serem investigados;

5. Produzimos o roteiro de uma entrevista semi-estruturada (apêndice 4), que foi construído de forma a nos focar principalmente nos objetivos propostos da pesquisa. O referido instrumento foi utilizado de forma dialogal, flexível, baseada na interação da observação participante e, principalmente, no sentido de mantermos uma comunicação confortável entre entrevistado e entrevistador.

De acordo com Bauer & Gaskell (2002, p.65),

a entrevista qualitativa, [...], fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos.

Seguindo essa linha de raciocínio, subdividimos a entrevista em cinco eixos temáticos, a saber: bloco I – Adolescência masculina pobre; bloco II – Percepção da sexualidade e da iniciação sexual; bloco III – Percepção da experiência de rua; bloco IV – Percepção do abrigo; bloco V – Expectativas.

Após a elaboração desses instrumentos, realizamos pré-teste com a finalidade de verificarmos, principalmente, a adequação do instrumento construído aos nossos sujeitos e a nossa comunicação com os adolescentes. Alteramos esse instrumento duas vezes, até finalmente sentirmos um clima de interação, conforto, leveza e fluidez entre nós, os adolescentes e as questões a serem investigadas.

Para isso, fez-se necessário modificar nossa postura na forma de nos comunicar com os adolescentes, utilizando uma linguagem bem próxima e, às vezes, semelhante a que eles usam no seu cotidiano. A título de exemplificar essa questão, nossa pergunta para os adolescentes seria: “acontece relação sexual aqui no abrigo?”. Dadas algumas dificuldades de compreensão, foi modificada para: “rola sexo no abrigo?”.

Tivemos dificuldades neste sentido, principalmente porque nossa comunicação, a linguagem que inicialmente estávamos utilizando, parecia provocar um certo distanciamento

entre nós e os adolescentes. Houve momentos em que pensamos que os adolescentes tinham muita dificuldade de abstração para entender nossas perguntas, mas durante o processo da nossa permanência na instituição, da convivência com eles, compreendemos que a dificuldade não era deles, mas sim nossa. Eles estavam no mundo deles, e cabia a nós, entrar na realidade deles, nos comunicar de forma satisfatória, respeitando o tempo e o ritmo deles.

Por estes e outros motivos, fomos adiando o tempo para realização das entrevistas, porque quisemos investir, amadurecer, nos sentir seguras na nossa relação com os adolescentes. As entrevistas foram gravadas e realizadas, individualmente, em um lugar reservado do sítio onde fica o abrigo.

6. Oficina de trabalho: este instrumento não estava na nossa programação inicial; ele foi construído como uma estratégia complementar, para subsidiar e colher mais elementos acerca do nosso objeto de pesquisa. De maneira geral, encontramos obstáculos na comunicação, apesar dos nossos cuidados e esforços. Explicávamos muitas vezes a mesma pergunta, de várias formas, como uma estratégia para alguns deles entenderem.

Diante disto, adveio a idéia de construirmos uma oficina na qual utilizamos a técnica do desenho e colagem como uma forma de tentarmos facilitar nosso processo de coleta de dado, seguida da interpretação deles, no sentido de falarem da produção construída em relação ao que perguntávamos como alternativas criativas para ativar e facilitar a linguagem e compreensão relativas a três questões fundamentais que elegemos em relação à busca do nosso objeto: desenhe, faça um quadro, cole figuras e/ou escreva tudo o que vem a sua mente relacionada à: sua iniciação sexual, sua primeira experiência sexual, sua primeira transa; a palavra sexo lhe lembra o que?, com quem, onde vocês aprenderam/aprendem coisas sobre sexo? Levamos todo o material necessário para o desenvolvimento dessa atividade, muitas revistas, colas, lápis para pintura, cartolinas, tesouras etc., para facilitar a construção desse material a ser produzido por eles e também melhorar nossa interação.

Seguimos os seguintes passos: reunimos os adolescentes já entrevistados em duplas aleatórias, pela disponibilidade deles, mesmo porque, alguns se encontravam na escola, outros resolvendo problemas pessoais, de saúde. Explicamos às duplas que poderiam responder as perguntas de várias formas, da maneira que se sentissem mais confortáveis, que fosse mais fácil para eles, em forma de desenho, de colagem de figuras, de construção de um quadro etc.

Fizemos as perguntas, cada uma no seu tempo. Ao terminarem de responder à primeira, passamos para segunda e, em seguida, para terceira e última. Ao final da atividade, mas agora de forma individual, pedimos que cada um dissesse o que queria expressar com

aquela produção; eles iam falando e nós íamos gravando. Um dos meninos, após fazer a leitura da sua “obra de arte”, disse: “eu posso falar uma coisa, tia?”. Ele continuou, “depois de fazer isso (dinâmica) dá vontade de sair fora atrás de garotas”.

Descobrimos que algumas palavras que falamos no nosso cotidiano, nem sempre nomeiam as coisas no mundo deles; eles têm alguns referenciais de significados diferentes, palavras diferentes para dar sentido ao mundo, ao cotidiano, à realidade vivida por eles.

Um dos adolescentes entrevistados nos perguntou: “tia, o que é aquilo que a gente sente quando tá transando..., aquela coisa... que a gente sente... é desespero, é?”.

Na ficha do perfil sócio-econômico, há uma pergunta sobre qual a religião deles. Um dos adolescentes me devolveu a pergunta: “religião, o que é isso?”, com uma cara de espanto. Refizemos muitas das perguntas, dávamos exemplos, explicávamos de outras formas e, dadas as dificuldades, utilizamos também a estratégia acima citada como uma maneira de agregar mais dados aos discursos, para que, dessa forma, eles pudessem expressar seus sentimentos, emoções, afetos, o acontecido, o vivido por eles.

Para Bauer & Gaskell (2002, p.57),

as maneiras como as pessoas se relacionam com os objetos no seu mundo vivencial, sua relação sujeito-objeto, é observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sentimentos, explicações, estereótipos, crenças, identidades, ideologias, discurso, cosmovisões, hábitos e práticas.

Percebemos dificuldades de muitos deles em lidar com o lúdico, com a brincadeira, com o desenho, imaginação, fantasia. Só para citar um exemplo: alguns queriam encontrar uma figura de mulher igual à pessoa com quem tiveram a relação sexual nas revistas, apesar de termos explicado que não precisava ser igual, mas apenas que tivesse algo que lhe fizesse lembrar, algum detalhe parecido com cenas, lembranças etc. Alguns tiveram dificuldade de se descolar da realidade, de saírem do concreto, do material para a fantasia, para o mundo da imaginação.

Talvez porque, na realidade de suas vidas, o desenho também não tenha feito parte de suas vivências infantis, momento de atividade essencial para dar lugar ao exercício da brincadeira. Provavelmente não tenham tido oportunidade para desenvolver esse lado lúdico, do brincar, do faz-de-conta, de trabalhar a fantasia e a imaginação.

Desconfiamos que a questão da sobrevivência, da luta pela vida, questões mais urgentes e práticas, tenham ocupado muito do tempo desses adolescentes e os “cuidados” para com eles não incluíam essas atividades, aprendizagens consideradas fundamentais na infância,

mas outros tipos de aprendizagens necessárias para a vida deles.