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4.1 PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO DE ADOLESCENTES MASCULINOS

5.1.4 Sexualidade e Abrigo

O tema da relação sexual no abrigo teve como objetivo principal procurar saber como os adolescentes deste abrigo lidavam com questões relativas à proibição, no sentido de perceber como eles resistiam e/ou se conformavam diante do conflito entre lei e desejo no campo da sexualidade. Explicando melhor, a proibição do sexo no abrigo é uma das normas comunicadas aos adolescentes pelos profissionais da instituição. No entanto, como veremos através dos discursos dos adolescentes, apesar da proibição e do risco, o contrato é transgredido por alguns adolescentes que se colocam a serviço do desejo deles.

Para Foucault (1985, p.12):

Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura.

Tadeu afirmou que acontece relação homossexual no abrigo: “alguns meninos sim, rola, menino com menino”. Dário também afirmou: “acontece. Menino com menino”. Paulo disse: “rola, já vi sexo no abrigo”. Robson tratou primeiro de se defender, para depois afirmar: “comigo não, comenta-se, existe sim, existe”.

Mauro falou da ocorrência de sexo no abrigo desta forma: “só tinha um viado, aí ele tinha que coisar54 com um menino que já saiu. Os meninos fica só fazendo hora com a cara dele, não sei... rolava só com o viado, mas ele já saiu, está na rua de novo”. A relação homossexual é apontada tendo como protagonista principal o “viado”, que, de certa forma, é motivo de brincadeira, gozação e preconceito por parte de alguns adolescentes.

Fernando apontou o fato e a possibilidade da ocorrência da relação sexual no abrigo, chamando a atenção de que só poderia ser relação homossexual, já que o abrigo é exclusivamente masculino: “só se for dos outros meninos com esses homossexual aí, acho que rola, dos meninos porque mulher não entra aqui”.

A ocorrência da relação sexual no abrigo foi afirmada por alguns adolescentes; um adolescente apresentou dúvidas; outro adolescente respondeu que não, mas que já escutou falar, e outros adolescentes a negaram.

Para Foucault (1985), a sexualidade constitui-se como um dispositivo histórico de poder atuando na sociedade nos três últimos séculos, normalizando nossa sexualidade. O

poder, para ele, age de forma circular, não está localizado num único ponto, e sim disperso em toda a sociedade.

Assim, a sexualidade do adolescente se encontra também submetida a essa ordem de construção social e política. É interessante observar que todas as dificuldades e facilidades enfrentadas pelos adolescentes estão situadas numa teia onde se dão as relações de produção poder-saber.

Os adolescentes que responderam não existir relação sexual no abrigo se basearam no fato de não terem visto, não saberem, como é o caso de Cláudio e Edu; Romário justificou sua resposta também no fato de não haver mulher no abrigo, e levantou em mim a suspeita de que guarda, um certo segredo com relação ao que escuta. O sexo é apresentado com algo que não pode ser dito, contado, o traço do inconfessável:

Não, nunca vi, não sei (Cláudio).

Não, nunca vi não, aqui não tem nenhuma mulher, já escutei um bocado de vez mais nunca falei prá ninguém não (Romário).

Não, eu não ando pastorando o quarto de ninguém, não escuto falar, eu não sei, não pode entrar no quarto dos outros e os meninos não contam nada não (Edu).

Percebemos que, apesar da proibição do contrato institucional, do medo de talvez falar sobre isso, de confessar o que ocorre na realidade no abrigo, a sexualidade escapa, foge do controle, explode, desobedece, arrisca-se, transgride a lei e encontra espaço, hora, lugar e cumplicidade para acontecer. Esta afirmação do desejo de alguns adolescentes, aqueles que resistem ao que é regulado, normativo, instituído pelo poder disciplinador inclusive no contrato, sugere que não há separação entre o que está fora (rua e outros espaços extra-muros do abrigo) e o dentro (o abrigo).

Foucault (1985, p.30) nos ilumina, na forma de pensar essas questões trazidas através dos discursos dos adolescentes:

O próprio mutismo, aquilo que se recusa dizer ou que se proíbe mencionar, a discrição exigida entre certos locutores não constitui propriamente o limite absoluto do discurso, ou seja, a outra face que estaria além de uma fronteira rigorosa, mas, sobretudo, os elementos que funcionam ao lado de (com e em relação a) coisas ditas nas estratégias de conjunto. Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que eu não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que podem e o que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros.

Apresentaremos idéias, sugestões, fruto de indicações apresentadas pelos adolescentes do abrigo em relação ao que eles sugerem que deve ser trabalhado no abrigo em relação à questões ligadas à sexualidade.

Segundo Foucault (1985, p.27):

Deve-se falar de sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção (é para mostrá-lo que servem essas declarações solenes e liminares); cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos. No século XVIII o sexo se torna questão de política.

Tadeu apontou o que gostaria que fosse trabalhado no abrigo em relação à sexualidade: “palestra, falar bastante sobre doenças venéreas porque muitos meninos aqui que já passaram pela rua fazem sexo com as meninas pelas ruas. Vão prá casa, não procuram se prevenir. Sobre doenças venéreas”. Trabalhar questões ligadas à sexualidade, para Tadeu, parece ser falar de doença, de adoecimento. Apresentou a idéia e a necessidade de serem trabalhadas medidas de prevenção das doenças venéreas. Como podemos perceber, o modelo de sexualidade presente no discurso de Tadeu relaciona-se com o modelo biomédico, fruto de suas aprendizagens. Ele apresentou, de forma recorrente, uma preocupação expressa com os outros meninos do abrigo (os que “teimam”) que fazem sexo com meninas na rua, ou quando vão para casa, sem a devida prevenção.

Paulo apontou as seguintes sugestões: “falar sobre o sexo, sobre as doenças que nós pode pegar, sobre assim se proteger se prevenir”. Percebemos que questões relativas à sexualidade foram apresentadas a partir de palavras que associam sexo a doenças, proteção e prevenção. Levantamos o seguinte questionamento: será que há influência da repetição do discurso dos educadores do abrigo com relação à escolha do tema e da associação do modelo biológico de sexualidade, sendo este enfatizado, reforçado, decorado, aprendido e dito através do discurso de Paulo?

Dário gostaria que sexualidade fosse trabalhada no abrigo: “fazer um grupo de pessoas que entendam mais disso e falem como se prevenir, como se prevenir de gravidez, de doenças e mostrar prá pessoas que nem a BEMFAM55”. A sexualidade se mostra investida de palavras

5555Bem Estar Familiar no Brasil (BEMFAM), instituição que trabalha com questões relativas ao planejamento

familiar no Brasil. De acordo com informações que recebemos de profissionais do abrigo, há uma parceria entre o abrigo e a BEMFAM. Profissionais desta instituição são convidados para ministrarem palestras sobre planejamento familiar, DST’s, AIDS e a mesma fornece preservativos para o abrigo.

como prevenção de doenças e de gravidez. O discurso de Dário apresenta elementos que se referem a planejamento familiar, prevenção, relativos ao que parece ter sido assimilado por ele através do discurso da BEMFAM.

Desta forma, a sexualidade é apresentada através do modelo biomédico, associada à saúde-doença; prevenção-adoecimento; prevenção-gravidez. O corpo deve ser educado a partir de uma normalização do que devemos fazer (o certo) e do que não devemos fazer (o errado). Enfim, deve haver o controle deste corpo, para que ele venha a ser produtivo e útil. Essa pedagogia parece sutil, mas atua na vida e principalmente no campo da sexualidade de forma eficiente

Mauro, no seu discurso, apontou: “alguém ensinar, tem muitos meninos aqui que quando vai ter relação com as meninas não usa preservativo, aí devia ensinar, algumas pessoas ensinar igual a da BEMFAM”. A sexualidade é associada à prevenção de doenças e essa referência é atribuída aos ensinamentos da BEMFAM.

A sugestão para ser trabalhada com relação à sexualidade para Robson passou pela leitura e pesquisa em livros numa visão de associar a sexualidade à doença, à prevenção, ao cuidado em não adoecer, às conseqüências ligadas à prática sexual. Apresentou preocupação como os colegas que não tomam cuidado consigo, em relação ao exercício da sexualidade:

questão prá gente se aperfeiçoar mais, assim, lendo, fazendo pesquisa de livro sobre essas doenças aqui. Sobre o que elas trazem com relação à sexualidade prá galera. Observar mais e ter mais cuidado porque ainda tem alguns caras aqui que nem liga muito prá usar preservativo, então eu acho que deveria estas coisas assim que dá as conseqüências de transar sem camisinha e tal.

Paulo concordou com Tadeu, Dário, Mauro e Robson, e afirmou sua vontade de querer saber sobre a associação sexo-prevenção de doenças: “falar sobre o sexo, sobre as doenças que nós pode pegar, sobre assim, se proteger se prevenir”. Tadeu, Mauro e Robson apresentaram preocupação com os companheiros do abrigo que transam sem usar preservativo que não ligam para as orientações da BEMFAM, dos educadores e profissionais do abrigo. Para nós, os discursos apresentados no sentido de orientação, conselho, informação não alcançaram, não atingiram a alguns adolescentes do abrigo. Desta forma, acreditamos que há algo de particular, de singular, na forma de expressão da sexualidade de alguns desses adolescentes, que escapa, foge, que, de alguma maneira, resiste em relação ao modelo de sexualidade apresentado no abrigo.

Fernando disse que queria falar “coisas novas que eu não sei” sobre sexo, apesar de

também apresentar a preocupação com a prevenção e proteção de doenças. Ele apontou para outros aspectos da sexualidade, que não haviam aparecido no discurso predominante dos outros adolescentes, pensamos que ele, de alguma forma, estava se referindo às práticas sexuais. Apresentou a idéia de trabalhar a sexualidade através do que ele chamou de “oficina sobre sexo”: “falar sobre sexo, como é que, coisas novas que eu não sei, falar, ensinar, oficina sobre sexo, eu não sei muito explicar, ensinar sobre sexo, falar sobre sexo seguro, coisas que não sei”.