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Capítulo 1 Acerca do Teatro Tradicional Popular Transmontano

2.2. A Construção Dramática

Um pouco por todo o País, as representações ligadas ao Nascimento de Cristo prosseguiram ao longo dos tempos e das épocas, atravessando sucessivas interdições ou autorizações da instituição religiosa, tal como constatamos através das referências nas Constituições Sinodais dos Bispados. Tal como Roland Barthes (1976: 172) chamou a atenção para o caso da literatura francesa, feita de censuras ao longo dos tempos, em que haveria necessidade de as inventariar, para escrever uma contra-história da literatura, também em relação à literatura portuguesa se poderia tomar a mesma posição. A chamada “literatura de

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cordel” (143

) seria um elemento de contracultura, assim como alguma literatura popular tradicional, em que se insere o teatro popular transmontano. A religiosidade popular, esboçada em grande parte no teatro da região, permaneceu na esfera da memória coletiva do povo sob a forma de quadras populares, com as suas imperfeições e com uma estrutura frásica (144) anacrónica e desmesurada, em alguns casos. O constante ajustamento das palavras e a repetição das mesmas à procura de uma constante forma perfeita permitiu a preservação desta “contracultura”. Esta forma de elaboração popular, “ausente dos textos teatrais, em que a

repetição é anual ou em períodos mais longos e em que a preocupação de preservar o texto com poucas alterações é conatural à representação” (GEFAC, 2005: 43), permitiu a criação de textos com alterações significativas.

Nesta literatura dramática, verificámos, após consulta das diversas versões e variantes do Auto da Criação do Mundo ou Princípio do Mundo ou Ramo, que o texto é claramente indissociável da forma do espetáculo que o perpetua. Após uma análise estrutural, dissemelhante de aldeia para aldeia, aferimos que o texto não se apresenta como uma estrutura fechada, não podendo, por isso, ser estudado do mesmo modo que a composição literária. Trata- se de um poema e de um espetáculo que se sintetizam numa mesma obra épica sobre a condição humana.

Conversando com alguns dos atores que tomaram parte na representação do Auto da Criação, em diferentes anos, todos eles se dispuseram a levar a cabo uma representação, que procurasse reproduzir a de 1949. Em Agosto de 2011, na aldeia de Urrós, a ela assistiram, a nosso convite, alguns dos regrantes das diversas aldeias transmontanas, onde elaborámos a

143Cf. Albino Forjaz de Sampaio, Teatro de Cordel; Miscelâneas, publicados pela Biblioteca da Universidade de

Coimbra; o Catálogo da Fundação Calouste Gulbenkian; a coleção de Francisco Palha; o espólio da sala Dr. Jorge de Faria (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), a coleção do Visconde da Trindade (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra) e também o precioso contributo de José Oliveira Barata.

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Refira-se a este propósito, que “os primeiros tipos de canções criaram-se individualmente, embora anonimamente. Depois a turba aceitou-os, modificou-os, adaptou-os ao próprio gosto, às condições da existência comum, isto de geração em geração, e portanto através de variados ambientes sociais: de modo que, passados tempos, certas canções de começo por acaso singelas ou pobres tornaram-se obras-primas.” (José Leite de Vasconcelos, Opúsculos, VII, 1938, p.765).

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investigação, e ainda alguns atores de outras representações ocorridas. Dado que todos eles haviam referido a importância da seleção de determinadas pessoas para a representação de personagens-chave, sobretudo para os papéis de Nossa Senhora, do Anjo, do Rei Herodes, ou de Caim, para a representação em Urrós foram atentamente analisadas e implementadas todas as indicações dadas pelos que em tempos participaram.

O fenómeno teatral pressupõe, por um lado, um texto dramático, uma representação literária, e, por outro, um texto teatral, uma representação espetacular. O teatro é uma arte de espaço e “espetáculo”, cuja criação poética se materializa numa estrutura global:

A arte do teatro não é a representação dos atores, nem a peça escrita pelo autor, nem a encenação nem as danças; é sim constituída pelos diversos elementos que compõem o espetáculo, o gesto que é a alma da representação, as palavras que são o corpo da peça, as linhas e as cores que são a própria existência do cenário, o ritmo que é a essência da dança (Craig 2002: 25).

No caso concreto, a cenografia que está por detrás da representação do Auto ou Ramo aproxima-se muito do texto erudito, ou não fosse o texto e a representação formas de leitura em livro aberto sempre passível de criação (GEFAC 2005: 44). No entanto, em diversas aldeias, a disposição cenográfica variava de aldeia para aldeia de acordo com a disponibilidade de meios ou da forma como o regrante disponibilizava os elementos que tinha à sua disposição.

Um elemento distintivo do chamado teatro hierático é a ausência de uma suposta ação, ou não fosse este teatro, e concretamente o teatro popular, uma reminiscência do teatro medieval, de cariz religioso no caso concreto. No presente estudo, as cenas religiosas, em que as personagens são santos, impossibilitavam que a dinâmica da intriga estivesse apenas na narração dos acontecimentos, aliás incompreensíveis na lógica terrena do entendimento humano (145). Cristo é sempre Cristo, é o exemplo e nunca o pecador. As ideias religiosas tidas como dogmas, aliadas à propagação da fé e educação do espírito cristão eram incompatíveis com as

145 Os conceitos éticos-religiosos dos gregos são diferentes e de variado conteúdo: hybrís (arrogância humana),

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contradições e ambiguidades de uma construção dramática. A passagem de um ato a outro é simples, em certos casos o término de um ato é imperfeito; descreve-se a intriga, narrando-a; ausência de personagens-tipo e indefinição de unidade de tempo e de ação. Em um curto espaço de quadras dezenas de meses ou anos sucedem-se em minutos. Dois lugares longínquos convencionam-se a alguns passos.

A melhor maneira de estudar uma peça de teatro é analisar os efeitos dela sobre os espectadores”, e, no caso do Auto da Criação do Mundo ou Ramo, o efeito comunicativo

perdurou durante longos anos, sendo a adesão do público expressiva de uma identificação cultural ligada a uma tradição ancestral que se prendia com a Adoração do Menino Jesus e respetiva atribuição de ofertas.

Fortemente arreigada em Trás-os-Montes, este modo de narrar reforçou o efeito comunicativo, porque a representação do Auto da Criação do Mundo assenta no princípio de que as pessoas conhecem profundamente o assunto abordado, seguem com atenção o prólogo do Anunciador, que lhes resume o fio condutor do enredo, identificam a disposição cénica das casas, a divisão entre Paraíso e Inferno, e compreendem a movimentação dos intervenientes. No fundo, o sucesso da representação do Auto prende-se com a literacia teatral dos seus espectadores.