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O objeto de estudo: versões e “texto” de uma composição representativa do teatro popular e tradicional

Das várias recolhas de testemunhos orais, realizadas no âmbito da disciplina de Literatura Oral e Tradicional, orientada pelo Professor Doutor João David Pinto Correia, e entre tantos assuntos que aliciavam ao estudo da Literatura Popular, decidimos optar pelo Teatro Tradicional Português, que merece uma atenção redobrada, na medida em que convoca não só uma análise dramatúrgica textual, como uma contextualização sociológica e antropológica, reveladora do ambiente social em que amadores locais produzem um espetáculo, a que dedicam o tempo de lazer permitido pela atividade laboral. Escolhemos o Auto da Criação do Mundo ou Principio do Mundo, também denominado Auto do Ramo, ou simplesmente Ramo, por se tratar de um documento vivo de literatura tradicional na região transmontana, que aborda temas e motivos sobre a Natividade de Cristo, que foram sendo transmitidos graças à participação coletiva do povo, chegando até à primeira metade do século XX.

Dada a escassez de trabalhos específicos sobre o tema, e o interesse despertado pela novidade que representa a análise comparada deste assunto, consideramos, em primeiro lugar, que o nosso objeto de estudo aponta para um campo interdisciplinar, que relaciona os estudos literários com a antropologia, com a etnologia e com a história. Em segundo lugar,a dificuldade em conciliar todas as etapas da investigação dentro de um prazo limite, tanto pela complexidade do trabalho de campo, que a carência de documentação e de bibliografia dificultava, como pela duração da pesquisa, sua análise, ordenação e apresentação final de conclusões, demonstrou, ao longo do processo de estudo, que as circunstâncias viriam a determinar um crescente desenvolvimento pessoal na investigação e uma diferente perspetiva de prioridades. Em terceiro lugar, a referida escassez de documentação levou-nos a encarar, como absoluta necessidade, que o

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trabalho de campo fosse realizado em diversos locais de difícil acesso em Trás-os- Montes. Em Urrós, aldeia do concelho de Mogadouro, procedemos à recolha das versões manuscritas e dactiloscritas do Auto da Criação do Mundo ou Principio do Mundo, que nos conduziram à ampliação do campo de investigação a outras aldeias da região, onde o Auto do Ramo, ou simplesmente Ramo, foi representado durante as festividades relacionadas com a Adoração a Jesus Menino, na passagem do dia 24 para o 25 de Dezembro, no momento das oferendas ao Menino Deus que o povo cumpria em cada ano, ou em anos alternados, repetindo uma tradição ancestral.

Por entre monólogos extensos, os atores, em menor número, e os espetadores presentes na representação, escutavam dramatizações da Bíblia, recitando a condenação do casal primordial – “Eva, serás desterrada/ e Adão para a Sepultura” -, fruto da drástica ironia da Serpente – “Come, e serás minha amiga/olha o pomo tamanho” – a que se seguia a ostentação arrogante do poder de Caim sobre seus irmãos - “cala-te aí sandeiro / andem-me debaixo dos pés”. Para atores e espectadores, tudo isto conformava momentos de saudade de outros tempos: “Naquele tempo tudo se fazia”. Aos dramatículos do Antigo

Testamento, acrescentavam-se extensas estrofes em louvor de Nossa Senhora e do Menino Jesus, momentos áureos das antigas Embaixadas, Loas ou Ramos, que o povo ofertava durante o ciclo do Natal. Segundo os mais entendidos, na aldeia de Urrós, todos estes momentos se sintetizavam na representação do Auto da Criação do Mundo ou Princípio do Mundo, cuja recuperação do texto dramático e da sua montagem constituiu a dissertação de Mestrado que apresentámos à Faculdade de Letras de Lisboa, em Setembro de 2008. Porém, em contacto com outras aldeias transmontanas, verificámos que o mesmo conteúdo tinha sido foi dramatizado em outros locais, reunindo o presente trabalho um total de dezoito versões, e para o qual se traçaram os respetivos percursos possibilitando, assim, o seu estudo.

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Em quarto lugar, na sequência de fatores polémicos que o presente estudo levanta, sublinhamos a procura de uma sistematização científica do objeto estudado, dado o carácter controverso de que se revestem os estudos da Literatura Tradicional e Popular, que até há relativamente poucos anos eram encarados com certo ceticismo, ainda que contemplados com estudos metodológicos de grande interesse, como os de Leite de Vasconcellos, Teófilo Braga, Carolina Michaelis, Firmino Martins, Azinhal Abelho ou o dos professores Jorge Dias, Lindley Cintra, Viegas Guerreiro, António José Saraiva, João David Pinto Correia, Pedro Ferré, Machado Guerreiro, e Aliete Galhoz, entre outros.

Tal como a Literatura Popular, estas estrofes não resultam de atos isolados. Conscientes disso, resolvemos assumir o presente estudo, pelo prazer estimulante de um risco que aceitamos com tranquilidade, já que o objetivo e utilidade do empreendimento nos justificam, e a outros que connosco partilham a mesma opinião, na procura da razão de ser de tradições culturais, que sobreviveram ao curso do tempo e que perduraram na terra que as viu nascer.

O trabalho de análise representa a cúpula do trabalho científico. Da fase “gráfica” da recolha passa-se à fase “lógica” e comparativa” (Bernardi 1974:147-148). Daí que tenhamos passado da fase técnica ligada à entrevista e à observação, em trabalho de campo, para a fase principal, de explicação e descrição do (s) objeto (s), que acabou por basear-se numa análise comparativa multidimensional:

[La] méthode comparative oblige le chercheur à se décentrer et à abandonner un point de vue subjectif particulier, à adapter ses exigences normatives à un système de référence multiples. Ce sont les objets eux mêmes, en quelques sorte, qui se situent les uns par rapport aux autres. (Bruyne 1974:218).

Com o trabalho de comparação textual das dezoito versões recolhidas do Auto da Criação do Mundo ou Principio do Mundo ou Ramo, pretendeu-se compreender de que

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maneira cada regrante, em cada aldeia, organizou estes dramatículos em espetáculo, e revelar aproximações textuais que podem surgir das diferentes versões do texto. Pretende- se também expor a dimensão da variabilidade do texto, de versão para versão, ao longo da sua transmissão oral, e proceder à sua fixação por escrito. Esta metodologia pareceu-nos passível de poder revelar algumas aproximações, de maneira a estabelecer um possível percurso de cada texto. O nosso objetivo final traduz-se então na apresentação de uma edição crítica do Auto da Criação do Mundo ou Principio do Mundo ou Ramo, ou, se pretendermos, na edição impressa de dramatículos, cuja organização espetacular na forma de colagem, deu origem a uma extensa versão épica, a partir das referências bíblicas, sobre a queda da primeira geração humana e a sua redenção em Cristo.