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Capítulo 1 Acerca do Teatro Tradicional Popular Transmontano

2.7. Entoação, Inflexão e Toada

No Auto da Criação do Mundo ou Ramo, e, em geral, em todo o teatro popular, a entoação, a inflexão e a toada dependiam grosso modo da interpretação de cada regrante, e da maior ou menor capacidade de cada ator. O regrante funcionaria como um chefe de orquestra na afinação de cada instrumento/ator, de acordo com o seu sentido de bem-fazer e de bom gosto.

No entanto, a partir da análise dos dados fornecidos pelos informantes, verificámos que a toada se adequava ao ambiente do cerimonial: mais nostálgica quando se tratava de um momento de pura beleza, como A Anunciação, mais alegre e divertida, quando se tratava do ambiente “galhofeiro” do Acto do Diabo, Inveja, pastores e pastoras, ou mais solene e severa

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entre Caim e o Diabo. Cada ator era industriado na forma como deveria lançar o tom da cena em que entrava, sempre em consonância com a gestualidade adequada à representação do papel.

No Auto da Criação do Mundo ou Ramo, observámos o uso de dois tipos de entoação, entre a “laudatória”, presente na aldeia de Urrós, e a “salmodia”, cantada silabicamente, cada

nota correspondendo a uma sílaba, ao contrário do canto melismático, presente na recitação de cantos religiosos, como o Aleluia, onde se ornamentam melodicamente sílabas específicas. Em qualquer destas entoações, entre a expressão do êxtase (laudar) e a do sofrimento (salmodiar), verificámos que, nos dois primeiros versos da quadra, também denominados por “ditos”, os

informantes insistiam que o movimento de terminação ascendente, que decorria entre o início do 1º verso e final do 2º verso, correspondesse a uma “ársis” (167

)ou tensão ascendente, a que se seguia uma “thesis” (168

) ou distensão, entre o início do 3º verso e o final do 4º verso.

O tom salmódico utilizado na recitação dos versos do Auto da Criação do Mundo ou Ramo parece estabelecer uma aproximação significativa com o canto gregoriano associado à celebração litúrgica. Julgamos, por isso, que a vocalização utilizada na representação do Auto, nas diversas aldeias, corresponde a uma versão secularizada das liturgias, a partir do momento em que as representações se deslocam para o exterior dos locais sagrados.

Em geral, as frases deveriam ser bem articuladas, silabadas, assemelhando-se essa articulação com uma melodia parolada, entre o canto e a fala, em que se acentuavam claramente as sílabas tónicas. Na narrativa religiosa, a toada de cada figura estaria de acordo com cada personagem. O Anjo, Nossa Senhora e São José, por exemplo, cantavam as suas falas de modo suave, um quase lamento.

167(Lat. Tempo fraco). Elevação Suspensão, Tensão.

168Thesis e Arsissão conceitos de tempos forte e fraco respetivamente, segundo os teóricos da música

antiga, à semelhança dos princípios naturais que regem os movimentos do corpo (tensão e repouso). (Dourado 2004:32)

163 2.8. A Música

O Auto da Criação do Mundo principiava por um cortejo das figuras, que se dirigiam ao local da representação, desfilando ao som da gaita-de-foles, instrumento típico da região. Em outros casos, na representação do Ramo, segundo as informações recolhidas, o acompanhamento musical era realizado por um conjunto de músicos, que situados numa das extremidades do palco, acompanhavam a entrada, a realização e o término da representação.

Na representação de Urrós, de 19 de Agosto de 2011, de acordo com as indicações dos antigos participantes do auto, o gaiteiro iniciou a marcha em coluna sendo acompanhado pelas figuras, por ordem de representação no Auto. Percorreram o caminho, ao longo do tabuado, junto ao público que assistia, e subiram por umas escadas colocadas na parte final do palco, junto à casa do Rei Herodes, vindo colocar-se por ordem, cada qual em frente da casa respetiva, dando início à recitação do Auto.

2.9. O Público

O público, segundo a tradição propagada pela memória coletiva e pelos próprios ensaios a que assistia, seguia a representação com muito interesse, e com grande devoção. O Auto da Criação do Mundo ou Ramo representava um acontecimento de grande relevo nas aldeias que o acolhiam, por sua vez visitadas pelas famílias de outras localidades que o haviam acolhido também na representação. Esta era motivo de congregação de gentes que partilhavam a mesma fé, e de orgulho local na realização do espetáculo. As pessoas faziam-se acompanhar de farnel e água, porque sabiam da extensão das representações, conforme referiu Amadeu Ferreira, na comunicação que fez em Urrós, a 18 de Agosto de 2011, no âmbito do Colóquio sobre o Auto:

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Las repersentaçones teatrales éran momientos grandiosos de fiesta, para que éran cumbidados todos ls pobos alredror i bien sabemos cumo era mala la crítica i la caçuada an relaçon a aqueilhes que ‘nun sabien falar’, quier dezir, als que falában mirandês (169

).

Alguns relatos que conseguimos apurar referem que numerosas pessoas faziam-se transportar em jumentos, modo típico da época e da condição social, dada a longa distância que tinham de percorrer para assistir aos autos. Dadas as dificuldades da época, em alguns casos, como em Urrós, em 1949, havia sempre alguém com um “cântaro” e de uma “concha” pelo

público a vender água. Dado que as representações ocorriam na praça principal da aldeia ou nas Eiras, muitas pessoas transportavam um “mocho ou tajola” (170

), espécie de banco de dimensões reduzidas, para melhor assistirem ao auto, que durava cerca de sete horas.

Alguns informantes relembram os elevados níveis exigidos pelo Regrante, ou Ensaiador, a cada ator. Alguns deles, como Fernando Alves, da aldeia de Urrós, referem que o Regrante estava constantemente a chamar a atenção para a solenidade do género: “muito respeito pelo que vamos fazer; se não tivermos amor ao que vamos representar, então é melhor não irmos”.

Indicações também dirigidas ao público, no início da representação, quando o Anunciador se lhe dirigia, e recitava os seus versos exortando à atenção e ao respeito devidos à representação.

Em algumas aldeias transmontanas, o público participava ativamente no desenrolar da ação, conforme registado por Sousa Costa, a propósito da representação do Ramo de Fora, na

169 Conferência proferida pelo Dr. Amadeu Ferreira intitulada “Reberto do Diaboquemédia repersentada an

Sendin (Miranda de l Douro), an maio de 1944”[Anterbençon feita por Amadeu Ferreira, an Ruolos – Mogadouro, por oucasion de la repersentaçon de la quemédia de Auto da Criação do Mundo](Casimiro 2012: 318-334).

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”L die de la repersentaçon, l Sagrado staba cheno. La gente benie destas redondas todas i até de Lisboua. Habie uas cuordas para pegar de la giente, mas eilha era tanta... quien ye que pegaba deilha! Las pessonas lebában cada un ls sous sentalhos de casa. Inda nun habie Guarda Republicana an Sendin, que solo bieno uns trés ou quatro anhos alantre de you me casar [1945]. La repersentaçon ampeçou apuis de missa, inda a la purmanhana, i yá acabou mui tarde, quaije cun de nuite. Scolhie-se l més de maio porque ls dies yá éran grandes. Nun parábamos sequiera para quemer. Nas casas teniemos doces i cousas assi i íbamos quemiscando.» Conferência proferida pelo Dr. Amadeu Ferreira intitulada “REBERTO DO DIABO” [Anterbençon feita por Amadeu Ferreira, an Ruolos – Mogadouro, por oucasion de la repersentaçon de la quemédia de Auto da Criação do Mundo]. (Casimiro 2012: 318-334).

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freguesia de Vila do Conde, concelho de Chaves, em que, no decorrer do Acto de Abel, Seth e Caim:

O público reproduzia num choro verdadeiro o grito das Almas no Purgatório aquando do arrastamento de Caim pelo Diabo para o Purgatório – homens e mulheres, de olhos cerrados, a castigarem no seu peito, a flagelarem no seu rostro o pecado de Caim, pecado da Espécie por mercê da herança forçada. (Sousa Costa 1934: 37).

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Capítulo 3 - Uma tradição etnográfica: O Auto da Criação do Mundo ou Princípio do