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A construção histórica do sujeito em jogos de verdade sócio-culturais

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 34-39)

1 DO BARRO AO VASO ESTEREOTIPADO: A CONSTRUÇÃO DA

1.4 A construção histórica do sujeito em jogos de verdade sócio-culturais

A sociedade moderna, com seu processo de racionalização, acaba por promover uma valorização da ciência, possibilitando a essa um poder e um discurso de autoridade sobre os sujeitos, tendo em vista as influências da revolução tecnológica, iniciada com Descartes e o positivismo, cujo discurso coloca a razão como forma para se atingir a verdade. A busca por uma verdade absoluta leva o sujeito moderno a construir uma

ciência especializada no detalhe, que ainda hoje se subdivide cada vez mais. Este poder, de produzir conhecimento, de gerar saberes, atribuído ao discurso científico, assegura- lhe uma autoridade, da qual o sujeito se investe para conquistar o status de “quem está autorizado a falar”, “quando falar” e “como falar”.

A razão, como centro e único meio de se atingir a verdade absoluta na Modernidade, abalou em parte a crença no poder divino que a igreja mantinha até então. Segundo Grun e Costa (2002):

A partir de Descartes, o sujeito passa a ser a sede da certeza – todo e qualquer conhecimento deve estar fundado no sujeito. O pensamento metodicamente conduzido encontra em si mesmo os critérios que permitirão estabelecer a Verdade. Concebe-se o sujeito como uma realidade primeira e fundante, a realidade dada a um sujeito pensante é o próprio pensamento e o mundo externo deixa de funcionar como um princípio de conhecimento (p.87).

Instaura-se o antropocentrismo, e, com Galileu o mundo passa a ser uma criação da mente do cientista (GRUN e COSTA, 2002). A ciência passa a ser entendida como único meio de se atingir a verdade absoluta sobre a realidade. Isso confere ao cientista uma autoridade discursiva e um poder de manipulação ilimitado do pensamento científico: “Essa é a base sobre a qual se desenvolverá o pensamento tecnológico e manipulativo que hoje ameaça a própria vida sobre o planeta. A tarefa de conhecer e o ato de dominar os objetos do conhecimento passam a ser inseparáveis” (idem, p.88).

Desta maneira, na Modernidade, o método científico é considerado como uma lente pela qual a realidade passa a ser percebida, torna-se a única forma racional de conhecer a verdade do mundo real:

O método científico é o instrumento por excelência para explicitação da verdade. Ele jamais cria um novo conhecimento, uma vez que apenas traz à luz determinadas verdades que se encontram implícitas nele mesmo. Ao se apresentar enquanto um procedimento de correção, o método científico moderno exclui toda e qualquer possibilidade de experienciar uma verdade que já não esteja contida no próprio método (GRUN e COSTA, 2002, p. 90).

Do ponto de vista que nos interessa, esse domínio da ciência a partir da Modernidade se relaciona com esse trabalho em dois sentidos. Por um lado, a ciência vai ser fundamental para a constituição da idéia de normalidade-anormalidade. Por outro lado, ela vai influenciar as áreas de conhecimento, que em busca do status

científico vão construir mecanismos de comprovação, enquadramento e verdades. Nos dois sentidos, o que está em jogo é a construção dos sujeitos como produção discursiva.

Possivelmente, foi na busca por uma verdade que mantivesse uma maior correspondência com a realidade, que a linguagem olhou para a ciência de maneira diferenciada. Os lingüistas partiram então, para uma aproximação com a ciência, buscando o seu sentido de cientificidade.

Bebendo nessa fonte, o estruturalismo francês iniciado com o desenvolvimento da lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure, entendeu ser o sistema lingüístico formado por diferentes níveis de estrutura e com princípios estruturais comuns em cada nível. Saussure estabelece “uma ciência geral dos signos, dando ao estudo da linguagem, [...], uma firme base metodológica e promovendo a semiologia – como disse ele, o ‘estudo da vida dos signos na sociedade’ – a uma posição central nas ciências humanas” (PETERS, 2000, p. 21).

Na perspectiva estruturalista o texto torna-se um objeto a ser desvendado. O que interessa é a estrutura do texto, o que o organiza, e não o sujeito. Tem-se a impressão que a verdade da realidade está contida no interior do sujeito e só será exteriorizada por meio da linguagem. Desta maneira, o texto teria um significado único que o sujeito apenas o decifraria, utilizando a cultura hegemônica.

O movimento antifundacional10, originado em meados do século XX, vem opor- se a esta concepção moderna ou estruturalista. Este movimento não busca a verdade unitária ou absoluta, mas sim as múltiplas verdades que podem estar contidas numa observação de ângulos diferenciados da realidade. Este movimento, perspectiva pela qual esta pesquisa pretende posicionar-se,

não está preocupado em dominar objetos, em manipular realidades, em obter ou adquirir conhecimento. [...] Ao desafiar os conceitos iluministas de verdade e racionalidade, que asseguram a legitimidade do conhecimento na era moderna e ao defender uma definição plural de Verdade, esses autores11 são protagonistas da crise de autoridade cultural que acomete as metanarrativas iluministas [...] suas teorias empreendem uma reversão radical no discurso intelectual contemporâneo [...] Assim, o movimento antifundacional é o locus privilegiado onde o conceito de interpretação pode ser redefinido (GRUN e COSTA, 2002, p. 92).

10 O termo antifundacional aqui empregado refere-se ao movimento de oposição às idéias do sujeito como sede da certeza, onde todo conhecimento deverá estar fundado no sujeito; ao pensamento metodicamente conduzido, que encontra em si mesmo critérios de estabelecer a Verdade (GRUN e COSTA, 2002). 11 Os autores referidos na citação são Gadamer, Foucault e Derrida. Eles são citados no livro a que recorri, em uma parte anterior a citação.

Deste movimento, mais tarde designado por pós-estruturalismo12, um dos representantes que muito contribuiu para um deslocamento panorâmico do olhar sobre a noção de verdade foi Foucault, ao se interessar pelo “poder enquanto elemento capaz de explicar como se produzem os saberes e como nos constituímos na articulação de ambos. [...], para desconstruir o operador diático poder-saber que compõe a ontologia histórica de nós mesmos nas relações de poder que nos constituem como sujeitos atuando sobre os demais” (VEIGA-NETO, 2005, p. 66).

Segundo Veiga-Neto (2005), Foucault trabalha com a história, mas valendo-se da idéia de genealogia. Mas a genealogia como tecnologia política que

Aborda o poder no seu exercício, ao nível dos seus meios e dos seus instrumentos. [...] No seu atelier, ela não descobre senão máquinas ou maquinarias, aparelhos de madeira ou de ferro, aquitecturas, pedaços de papel, fichas e escritas, livros de ciência, tratados de conhecimento e todas as espécies de linguagem, nunca, nada a não ser materialidades. Ela vê o poder inteiramente ocupado a combiná- las em direcção a destinos imprevistos, a fabricar-lhes o espaço e o tempo, a jogá-los segundo as leis da óptica e da mecânica. [...] A genealogia é física e microfísica do poder, ela vê-o sempre aplicar-se sobre outros corpos. Sobre que poderia agir um corpo a não ser sobre um outro corpo? A genealogia adopta o ponto de vista do corpo, o do corpo supliciado, domesticado, marcado, mutilado, decomposto, obrigado, sujeitado, o dos corpos que são repartidos, organizados, separados e reunidos (EWALD, 2000, p. 28).

Ou seja, uma genealogia, uma história que tenta descrever a gênese do tempo, não no sentido de origem como “o lugar da verdade”, mas na procura de uma origem que tenta compreender o processo de construção de uma identidade primeira, pois a genealogia tem como compromisso um “a priori” histórico, onde “as regras de formação discursivas são internas ao discurso, e que, em vez de se alojar em supostas estruturas transcendentais da mente, [... se] enraíza na história tumultuada das coisas que são ditas” (VEIGA-NETO, 2005, p. 67).

12 Ao utilizar o termo pós-estruturalismo, refiro-me a uma resposta filosófica específica as pretensões científicas do estruturalismo. Motivado por Nietzsche e Heidegger, este movimento buscou e busca descentrar as estruturas, o que Foucault denomina epistemes – conjunto de discursos que corresponde a uma época histórica. Os pressupostos e preconceitos (inconscientes) que organizam e delimitam o pensamento de uma determinada época, ao mesmo tempo em que tenta preservar a crítica que o estruturalismo fazia ao sujeito humanista, promovendo assim uma renovação do discurso filosófico. Desta forma podemos dizer que o pós-estruturalismo é um movimento de pensamento, uma complexa rede de pensamento, que corporifica diferentes formas de prática crítica, que advoga o descentramento (da essência, da existência, do sujeito) através da crítica dos conceitos de ser, de verdade, consciência, sujeito e auto-identidade.

Segundo Revel (2005), há um deslocamento de lugar em relação às discussões de verdade. As análises de Foucault buscaram mostrar as características de nossos próprios regimes de verdade, regimes estes, centrados nos discursos científicos e nas instituições que o produzem. Para Foucault, o importante é interrogar os jogos de verdade, presentes nesses regimes, as relações que permitem ao sujeito constituir suas identidades ao longo da história. Então:

Embora a filosofia moderna, desde Descartes, tenha sido sempre ligada ao problema do conhecimento, isto é, à questão da verdade, Foucault desloca esse lugar: “Depois de Nietzsche, essa questão se transformou. Não é mais: qual é o caminho mais certo da verdade? Mas qual foi o caminho fortuito da verdade?”. Trata-se, conseqüentemente, de reconstituir uma verdade produzida pela história e isenta de relações com o poder, identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, na medida em que cada sociedade possui seu próprio regime de verdade, isto é, “os tipos de discursos que elas acolhem e fazem funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de dizer aquilo que funciona como verdadeiro” (REVEL, 2005, p.86-87).

Desta forma, é possível pensar que para Foucault cada época histórica constrói, cultural e socialmente, seus “regimes de verdades”, e que é baseando-se nestes jogos de verdades, contextuais de cada fase, que o sujeito se constituía discursivamente em meio às relações de poder. Assim, os discursos podem ser considerados como designações de:

Um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas regras não são somente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um certo número de cisões historicamente determinadas (por exemplo, a grande separação entre razão / desrazão): a “ordem do discurso” própria a um período particular possui, portanto, uma função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, estratégias e de práticas (REVEL, 2005, p. 37).

Assim, o pós-estruturalismo talvez possa ser considerado um outro modo de pensamento, que defende a pluralidade da interpretação, onde o significado é uma construção ativa, dependente do contexto, levando ao questionamento das verdades, que passam a ser vista como produto de regimes discursivos, permitido uma maneira diferenciada de ver e entender o mundo. Nesta perspectiva o sujeito é corporificado,

generificado13, um ser do seu tempo e lugar, visto como uma invenção cultural, social e histórica. Busca-se uma desconstrução da visão essencialista, produzida na modernidade (PETERS, 2000).

Ao lançarmos mão da perspectiva genealógica, buscamos o estudo da “emergência de um objeto – conceito, prática, idéia ou valor” (VEIGA-NETO, 2005, p. 72) procedendo “à análise histórica das condições políticas de possibilidades dos discursos que instituíram e “alojam” tal objeto. Não se trata de onde ele veio, mas como/ de que maneira e em que ponto ele surge” (idem, p. 72).

Um olhar sob a perspectiva genealógica, nos permite desnaturalizar, desconstruir, desessencializar enunciados que se repetem como se fossem descobertas. Promover questionamentos que nos possibilitem conhecer os regimes de verdades, seus jogos, e suas influências na construção identitária dos sujeitos. Construir uma maneira de olhar que não é, e nem pretende ser, única, uma forma de analisar os mecanismos e processos que tornaram possível tal construção ao longo da história, e que matem, ainda hoje, suas ramificações. Neste sentido, faz-se necessário pensar a vinculação dessas transformações e a construção dos sujeitos.

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 34-39)