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O discurso científico

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 75-78)

2 MOLDANDO VASOS, FABRICANDO SUJEITOS E CONSTRUINDO

2.2 Brasil: população e biopolítica

2.2.2 O discurso científico

Em 1883, ocorreu o I Congresso de Instrução Pública, convocado pelo imperador. Neste Congresso um dos temas era justamente a sugestão de um currículo de formação de professor (a) para cegos (as) e surdos (as), (JANNUZZI, 2004). Este fato parece evidenciar outra característica da educação de surdos (as), ou mesmo do deficiente de um modo mais abrangente, a passagem do discurso religioso para o discurso médico na constituição desta educação e que será mostrado mais adiante. Tal discurso será, e, ainda hoje, o é, considerado um dos discursos autorizados a falar destes sujeitos e sobre eles produzir conhecimentos. Isto apareceu na pesquisa, quando a professora Midgard, no encontro do grupo focal que discutiu a reportagem das duas lésbicas que queriam ter o direito de escolher um doador de esperma surdo para aumentar as chances de terem um(a) filho(a) surdo(a). Entre outras questões a professora inseriu a discussão sobre o implante coclear:

[...] o uso do implante coclear já foi até proibido nos Estados Unidos, devido ao risco que é fazer a cirurgia para coloca-lo. Muitos surdos tiveram problemas sérios de adaptação, outros tiveram a área implantada comprometida. Trata-se de uma placa de metal colocada embaixo do couro cabeludo, com um aparelhinho acoplado a ela do lado de fora.

Percebam como o discurso médico aparece marcado na fala dela. Isso nos mostra a influência do discurso científico na atualidade. Porém, esse poder do discurso

22O Ato Adicional de 1834, incorporado à constituição da época, desobrigava “o governo central de cuidar das escolas primárias e secundárias, transferindo essa incumbência para os governos provinciais” [...] “legalizando a omissão do poder central” (SAVIANI, 2007, p. 129).

científico parece ter raízes na Modernidade. O século XIX evidencia um grande desenvolvimento do poder da ciência. Com o aumento da produção de conhecimentos do homem sobre si, o avanço da psicologia, pedagogia, da medicina higienista e da psiquiatria, o discurso científico foi assumindo uma grande importância no processo de normalização dos sujeitos. Assim, a interação entre o Estado e a Ciência, conferiu a esta última um discurso de autoridade, que ordena, esquadrinha, decompõe e produz uma sociedade, posicionando cada um em seu lugar. Como a Ciência se reveste deste poder de autoridade? Recordemo-nos da busca por conhecimento, feita pelas professoras, em torno da surdez, mencionadas em etapas anteriores, neste capítulo. A Ciência, assim o faz em função de sua capacidade de produção de sujeitos, por meio do poder. Ao mesmo tempo, ela é um dos dispositivos que produz e é produzida pelas relações de poder. Através da construção de campos de saberes, a Ciência contribui para a produção da normalidade e da anormalidade. Também acaba por construir as estigmatizações sociais, devido à maneira com que torna possível a sociedade olhar para estes sujeitos e a forma destes sujeitos se olharem. Isto coloca a Ciência como um dos mecanismos participantes da construção das identidades sociais da época, e que, ainda hoje, participa. Esse conhecimento, investido de uma autoridade (por ser científico com C maiúsculo, que vai produzindo saberes sobre os sujeitos, diferenciando, categorizando e distribuindo nos lugares “certos”), é que vai atingir a Educação de forma geral e a educação dos(as) surdos(as) mais particularmente.

Com a criação dos grupos escolares, em 1890, efetiva-se a separação dos(as) alunos(as) de acordo com os níveis de adiantamento e idade, criando as seriações. Isto possibilitou a criação das classes de crianças com dificuldades de aprendizagem (JANNUZZI, 2004). A inteligência efetiva-se, desta maneira, como mais uma parte do corpo, além do ouvido, dos olhos e tantas outras, a servir de critério, de norma, para medir-se o grau de normalidade do indivíduo, atrelando assim a idéia da deficiência à anormalidade, a um desajuste, a idéia de essência, concepção de que isso é da natureza, “nasce-se assim”.

O advento dos grupos escolares, de acordo com os relatos encontrados acerca da história da educação dos deficientes aqui no Brasil, pode de certa forma, ter possibilitado a entrada destes sujeitos na rede de ensino regular. Observam-se alguns registros de atendimento a estas crianças em algumas escolas desta rede de ensino: “em Manaus, no ano de 1892, há registro de atendimento para deficientes auditivos e

mentais na Unidade Educacional Euclides da Cunha, no ensino regular estadual” (JANNUZZI, 2004, p. 18).

Como o Brasil era considerado predominantemente agrário neste período, as tentativas educacionais para as classes populares visavam o aprendizado de profissões manuais rudimentares. A educação dos(as) deficientes segue então este padrão, ensinar atividades simples, manuais para que este indivíduo comece a dar conta de sua subsistência e com isso auxiliar a família. Desta maneira o INSM, no Rio de Janeiro, começa a investir no ensino profissionalizante, juntamente com o literário. Em 1874 implantam-se oficinas de encadernação, sapateiros e outras. Em 1932 as oficinas de corte e costura (JANNUZZI, 2004), momento em que o INSM retorna com meninas. A distribuição dos ofícios nesse período parece mostrar que as atividades mais simples, como as manuais, eram destinadas a aqueles(as) que não tinham condições de prosseguir ou freqüentar as escolas, como as camadas populares, pois não dispunham de recursos abastados para tal. Em contrapartida, os(as) surdos(as) possivelmente foram colocados nessa mesma categoria em função da construção de sujeito limitado, dependente, incapaz e com grandes dificuldades. Esse modelo parece sobreviver ainda hoje, como Klein (1999) argumenta:

Lane (1997) apresenta, em diferentes momentos de seu livro, uma preocupação em relação às baixas expectativas quanto às possibilidades profissionais dos surdos. Segundo esse autor, as representações sociais que os educadores têm sobre os surdos e a surdez acabam infligindo ao sujeito surdo essas limitações. Outro fator, apresentado por esse autor como contribuinte para esse quadro, seriam as relações de dependência existentes na educação de surdos, que fazem com que os surdos encontrem dificuldades em atingir um determinado nível profissional. (p.34)

Embora não tenha constatado isso claramente na pesquisa, recordo-me de quando eu atuava nessa escola com alunos(as) surdos(as) que, em conselhos de classe, muitos(as) professores(as) voltavam sua preocupação em garantir que o sujeito surdo, ou deficiente, conseguisse seu diploma de ensino médio por acreditar que eles não passariam disso. E ainda falavam “... pelo menos ele terá condições de conseguir um emprego melhor”.

Supõe-se que tais medidas visavam tornar estes indivíduos economicamente úteis e posicionados socialmente, de modo a independer-se da necessidade de

intervenção do Estado, sem tornar-se um grande perigo social. Nota-se a construção de um sujeito com poucas habilidades para a erudição, onde sua capacidade limita-se as habilidades meramente manuais, mecânicas. Quais os efeitos desse tipo de pensamento para as escolas de hoje? Seria a manutenção de uma representação que já vem sendo produzida há muito tempo, (re)construindo e posicionando esses sujeitos na categoria de risco?

Em minha prática escolar, percebo discursos produzidos e reproduzidos nos conselhos de classe, de modo naturalizado, onde a surdez é associada à dificuldade de aprendizagem, a incapacidade de compreender, uma constante comparação surdo- ouvinte, surpresas com o progresso do(a) surdo(a), a intervenção de alguns(algumas) professores(as) no decorrer das avaliações quase que direcionando os(as) alunos(as) surdos(as) às respostas corretas. E falas como: “eu sei que eles não vão conseguir fazer a prova sozinhos, então, eu os ajudo”;“ele chegou ao seu limite, agora o que importa é dar a ele o diploma para que consiga um bom emprego”; “meu sonho é vê-lo ouvindo e se desenvolvendo igual ao ouvinte”, e tantas outras já ouvidas em meio escolar. A relação entre educação e trabalho, é destacada por Klein (1999):

O sentido da aprendizagem dos ofícios [...] era possibilitar ao aluno surdo uma atividade que evitasse que ele fosse, no futuro, uma carga para a família, para a comunidade ou para associações de caridade. Isto, não era, porém, objetivo privilegiado apenas pelas escolas de surdos (p. 29).

Assim, ainda hoje, essa imagem do(a) surdo(a) como peso, incapaz e limitado continuam a circular no espaço escolar. Nota-se, também, que nada escapa ao poder, a docilização dos corpos, isso se torna uma das funções da escola, no intuito de produzir sujeitos úteis e flexíveis à ação dos dispositivos e tecnologias do poder.

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 75-78)