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A República e o higienismo

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 78-81)

2 MOLDANDO VASOS, FABRICANDO SUJEITOS E CONSTRUINDO

2.2 Brasil: população e biopolítica

2.2.3 A República e o higienismo

Com a primeira Constituição da República - a de 1891, a instrução tem uma modificação curricular visando atender os avanços na estrutura social, política e econômica do país. Em alguns locais, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, foram criadas classes especiais e desenvolvidas metodologias para o trabalho pedagógico com estes indivíduos. Também foram aprimoradas as classificações dos

tipos de anormalidade, para facilitar uma intervenção precisa na parte deste indivíduo considerada problemática.

A capacidade de aprendizagem passa a ser medida, os exames físicos, a anatomia, os comportamentos e as condutas analisados como forma de diagnosticar as possíveis anomalias, estabelecendo assim normas de medidas e as regras de normalização. A produção de conhecimento e documentos a partir da análise destes sujeitos objetivados intensifica-se, fabricando um enorme número de anormais na sociedade. Os saberes, construídos ao longo da história, acabam por contribuir para uma intensa e sistemática produção de novas tecnologias e dispositivos, que acompanham a dinâmica da cultura e da sociedade, numa íntima relação com o poder, que acaba por se manter sempre atual nessas relações estabelecidas socialmente.

Deste processo de produção de conhecimentos, ampliam-se os campos de saberes, produzindo um aumento das categorias científicas. Surgem à pedagogia, a psicologia, a lingüística, a fonoaudiologia, a Educação Especial e tantas outras com o intuito de servirem de dispositivos e tecnologias ao poder. O esquadrinhamento dos corpos também possibilita uma atuação mais pontual do poder, que em sua ação, acaba por sujeitar o indivíduo e atuar em sua normalização.

O discurso higienista, através do Serviço de Higiene e Saúde Pública, desde o Império, também exerceu sua influência na educação do(a) deficiente. Tanto que originou a Inspeção Médico – Escolar (JANNUZZI, 2004), ampliando-se na República com a relação entre desenvolvimento econômico e ciência. Tais discursos tiveram, na figura do doutor Francisco Sodré, médico, puericultor e sociólogo, a proposição de um projeto responsável, em 1911, pela “criação das classes especiais e formação de pessoal para trabalhar com este alunado” (MELLO apud JANNUZZI, 2004, p. 34). Contribuindo, dessa forma, para a construção de um modelo de professor(a), um especialista, habilitado a atuar no processo de normalização desse sujeito. A construção da idéia do professor-referência parece, pelo visto, advir desta época. Mas isso não quer dizer que hoje essa idéia tenha sido abandonada. Há um investimento grande dos profissionais da área de educação em conhecimentos que possibilitem atender as diversas categorias de deficiência (síndrome de Down, paralisia cerebral, cegueira, surdez, surdo-cegueira, etc). O tratamento dado ainda segue a metodologia terapêutica, que chegou à escola por intermédio do discurso higienista. Lembremos dos relatos da professora Ceres ao dizer da entrada de empresas particulares no espaço escolar, com intuito de ajudar as crianças com problemas de visão e aos surdos, dando óculos,

aparelhos e exames. Além disso, citei em relatos anteriores também o investimento de algumas profissionais em congressos e especializações relacionadas a áreas específicas como surdez, contribuindo para a produção da imagem do especialista, aquele que por meio do acúmulo de saberes está autorizado a falar. Assim, a idéia da construção do professor referência e da visão terapêutica têm sua origem também nesta época, prevalecendo ainda na atualidade. Desde 1889, por intermédio da Inspeção Higiênica de Estabelecimentos Públicos e Privados da Instrução e Educação, o discurso higienista tem atuação no espaço escolar.

Em 1906, alguns relatórios de Oswaldo Cruz colocam a higiene social com o objetivo de atuar sobre a indisciplina de alguns(algumas) moradores(as), pelo viés da educação, pois considerava que, por meio da educação e da saúde, o país iria se regenerar, associando indisciplina à desordem, caos, a degeneração, anomalia. Assim, exigia a intervenção, para enquadrar esta fuga ao padrão de ordem estabelecido. Supõe- se que é desta maneira que, mais tarde, a indisciplina, no interior do espaço escolar, ganha status como item para se aferir o grau e o tipo de anormalidade.

Em 1911, o decreto n. 838, da Reforma de Ensino Primário, Normal e Profissional propõe a criação de subclasses especiais para crianças anormais, nas escolas modelo da capital. Em 1917, o doutor Renato Kehl, lança a campanha pró- eugenia23, originando uma comissão, em 1º de abril de 1931, denominada Comissão Brasileira de Eugenia, onde uma das principais atuações é o estudo e a divulgação das idéias de regeneração física e psíquica (JANNUZZI, 2004). O eugenismo divulga o modelo do corpo perfeito, afastando ainda mais os deficientes, de um modo geral, da regra, do modelo, da norma. Ao mesmo tempo em que promove uma maior visibilidade dos corpos desses sujeitos, considerados imperfeitos, expandindo e reforçando a idéia do grande risco social que era a deficiência.

Em 1920, Gustav Riedl, juntamente com Juliano Moreira, funda a Liga Brasileira de Higiene Mental. A deficiência passa, então, a ser relacionada diretamente ao estado de saúde do indivíduo e tais problemas, a ser considerados: “causadores de nossa degenerescência e taras, como a sífilis, tuberculose, doenças venéreas” (MAGALHÃES apud JANNUZZI, 2004, p.36).

23 Segundo Souza e Gallo (2002), eugenia é uma forma de racismo de estado onde a preservação da vida se baseia na purificação da sociedade pela eliminação do diferente (raça, sexualidade, anomalias, religião, etc.). Em outras palavras, representa um investimento constante na eliminação do outro ou na tentativa de sua proximidade à normalidade.

A anormalidade, que se constrói ao longo da história, principalmente pela associação do discurso médico–higienista e escola, exige cada vez mais um sistema de classificação, de quadriculamento do corpo desse indivíduo, para melhor intervir em seu problema. O uso do sistema classificatório ainda é muito utilizado atualmente, nomes como surdez leve, moderada, severa e profunda, são alguns dos termos que aparecem no sistema de classificação dos graus de surdez. No decorrer da pesquisa um destes termos aparece nas conversas do grupo focal que analisou a reportagem das duas lésbicas surdas que queriam ter uma criança surda, pontualmente na fala da professora Midgard quando questiona “... E se a criança nascer surda profunda? Ela não vai poder usar um aparelho. É justo escolher isso para o filho? Depois o filho poder dizer assim: eu nasci surdo porque vocês escolheram, porque você quis. É uma responsabilidade muito grande”. Assim, aprimoram-se os sistemas classificatórios, de enquadramento dos anormais e inclui-se um treinamento de pessoal, dentre eles professores, para que possam identificar tais anomalias. Neste sentido, conversando informalmente com as professoras em outros momentos fora da pesquisa elas me contaram sobre o curso de especialização a distância, com vários temas em torno da deficiência, inclusive sobre surdez, oferecido pela Universidade Aberta do Brasil, em parceria com a Secretaria de Educação, na qual duas delas estavam inscritas, tendo como tema de escolha a surdez. Interessante perceber o investimento que a própria secretaria faz nestes treinamentos. Podemos dizer que a idéia da anormalidade como risco social, valorizado de forma negativa, atinge os mais remotos e ínfimos espaços, alcançando as escolas, as famílias, enfim a sociedade como um todo. Ação do poder e de seus dispositivos e tecnologias, ao promover a produção de sujeitos, numa economia de forças.

No documento marildadepaulapedrosa (páginas 78-81)