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Capítulo II – A manifestação do desenho bifurcado da imigração

3. A contrapartida indocumentada

É bastante provável que a situação indocumentada de imigrantes já tivesse

precedentes na história da imigração no Brasil – uma vez que leis restritivas sempre acompanham sua contrapartida –, porém suas dimensões seriam outras na década de 1970 e nas seguintes. Mais precisamente, o seu significado histórico seria outro, pois sinalizaria a experimentação de um método de exploração da força de trabalho do imigrante proveniente de países periféricos em situação socioeconômica vulnerável e indocumentada que, como

será explicitado no próximo item, começou a se alastrar nesse período específico114.

Conforme explica Basso (2003), as políticas imigratórias e seu substrato legislativo

são sempre uma variável dependente de processos mais amplos e profundos do funcionamento do mercado mundial, em particular do mercado de trabalho. Logo, as leis restritivas da imigração, seja em regime de ditadura, seja de democracia, podem apresentar graus diferenciados de violência, mas não agem isoladamente para propagar e consolidar as dinâmicas laborais vigentes. Em suas palavras,

[falar] de variável dependente não equivale a negar a ‘dialética’ entre mercado e Estado, mas denota somente que, em sua navegação, as políticas se servem de uma bússola, cujo ponteiro é fixamente magnetizado em direção dos interesses gerais do sistema da

fornecido pelo estudo da Organização Internacional para Migrações (OIM, 2010: 18), o qual indica fluxos compostos principalmente por imigrantes de retorno, jovens e adultos em idade produtiva, a maioria homens com o nível de ensino médio: “No recorte temporal 1986-1991, a distribuição relativa dos imigrantes denota que os procedentes da Europa (23%), da América Latina e Caribe, excluídos o Paraguai e Argentina (21,4%), do Paraguai (16,2%) e dos Estados Unidos (13,9%) respondiam pelos maiores percentuais. A primeira posição ocupada pelos países da Europa passava a ser ocupada, no quinquênio 1995-2000, pelo Paraguai: 29% do fluxo imigratório eram constituídos de pessoas que residiam em terras paraguaias, 19% em território europeu, 17% dos demais países da América Latina, 14% do Japão e 11,6% dos Estados Unidos”. Para o detalhamento dos fluxos relativos às autorizações de trabalho concedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego a estrangeiros, das categorias profissionais, da composição de gênero e de nacionalidade, ver Baeninger et al. (2001).

114 Conforme explica Krein (2013a), o quadro geral de progressiva aplicação de políticas neoliberais e de

flexibilização do mercado de trabalho brasileiro tem início na década de 1980 e se intensificou na seguinte, dentro de um contexto de diminuição do assalariamento formal, aumento do desemprego e de formas variadas de subempregos. Segundo o autor, a restruturação produtiva (reorganização da produção de bens e serviços), a racionalização (enxugamento do trabalho vivo) e a superexploração (intensificação da mais valia relativa) do trabalho representam o principal substrato dessa agenda neoliberal.

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economia de mercado (do sistema das empresas), mesmo quando isso não aparece na superfície (Basso, 2003: 105).

A mesma crítica ao silêncio dos dados oficiais que apagaram da história do Brasil a

questão nebulosa da emigração115 também se aplica aos fluxos indocumentados de

imigrantes coreanos, bolivianos e de outras nacionalidades, principalmente latino- americanas, que estão presentes há muito tempo no Brasil. Isso, não obstante a existência de uma reserva expressiva de força de trabalho que caracterizou as referidas décadas de recessão e crise.

Essa modalidade de imigração, embora também muito necessária à economia

nacional, teria que arcar com os riscos de entrar de forma invisibilizada e silenciada pelas fronteiras do país. Segundo Galetti (1996), as nacionalidades sul-coreana e boliviana eram as mais representativas dessa modalidade de imigração fora dos circuitos legalizados em

grande parte direcionadas à cidade de São Paulo116. Conforme explica

[nem] as medidas restritivas impostas pelo governo brasileiro em 1972, nem as barreiras levantadas pela Coréia do Sul à emigração para a América Latina a partir de 1977, conseguiram interromper o fluxo de coreanos [...]. A grande maioria permaneceu na clandestinidade até a primeira anistia em 1980. Foi nesse período, também, que cresceu a participação dos coreanos no ramo de confecções, crescimento provocado, principalmente, pela exploração da mão de obra dos conterrâneos ilegais. Na década de 80, explode o número de coreanos clandestinos e a nova anistia é decretada em 1988 (Galetti, 1996: 136).

Com relação aos bolivianos, destaca que

[o fluxo do perfil indocumentado de imigrantes] engrossou na década de 70, com as promessas de trabalho geradas pelas grandes obras do regime militar. Mas foi nos anos 80 que se registrou o pico dos movimentos migratórios no centro de São Paulo” (Galetti, 1996: 137).

115 Estudos demográficos constataram o saldo migratório negativo na década de 1990, ou seja, o fato de que o

país “perdeu população” (Carvalho, 1996). Pela primeira vez em sua história, mesmo se em proporções bastante pequenas em relação à sua população total, o Brasil passou a ocupar o lugar de país de emigração. Em realidade, esse movimento de emigração em massa de brasileiros tem início na década de 1980, acentua-se nos anos 1990 e continua ativo no presente.

116 Conforme explica Silva (2012: 79), “[a] cidade de São Paulo comanda grande parte dos fluxos materiais e

imateriais do território nacional e também apresenta as materialidades necessárias para conectar as etapas dos diversos circuitos espaciais de produção ao mundo”.

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A resposta burocrática do Estado brasileiro a esses fluxos específicos representa mais um caso na história da criminalização da imigração que, por se tratar de um contexto de regime ditatorial, estava explicitamente estampada nas leis. O já citado decreto lei 941/1969 ilustra a violência dessa resposta – que não deixa também de ser um anúncio – à presença concreta dessa modalidade de imigração, seja de imigrantes provenientes de países periféricos, seja de solicitantes de refúgio. Não por acaso, conforme destaca as citações acima, as primeiras anistias para imigrantes irregulares foram decretadas nos anos de 1980 e 1988 no Brasil. Essa medida legislativa constitui uma prova institucional de que outra modalidade de imigração se “impunha” pela porosidade das fronteiras e passava também a constituir a realidade do fenômeno. Com o fim de destacar essas medidas restritivas, vale explicitar os próprios artigos da referida legislação, os quais explicitam:

Art. 104: Nos casos de entrada irregular de estrangeiro, se este não se retirar voluntariamente do território brasileiro no prazo determinado, a autoridade policial promoverá sua imediata deportação.

Art. 110: O estrangeiro, enquanto não se efetivar a deportação, poderá ser recolhido à prisão por ordem do Ministério da Justiça. Art. 112: Enquanto não caracterizadas as condições que justifiquem a concessão de asilo [refúgio], o estrangeiro poderá ser mantido em prisão especial [...] §único: Se as condições alegadas para o asilo [refúgio] não ficarem caracterizadas, o estrangeiro será considerado clandestino [...] (Decreto Lei 941/1969, grifo nosso).

Nessa lei, estavam explícitos igualmente a dimensão do controle policial da

imigração, a ênfase nas medidas de expulsão e deportação, os métodos de vigilância – dirigidos aos imigrantes, bem como às empresas de transporte e aos empregadores de “clandestinos”. Com o mesmo propósito de explicitar a semântica legislativa de punição da irregularidade, é válido ler os seguintes artigos:

Art. 151: Introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino: Pena: 1 (um) a 3 (três) anos de detenção.

Art. 142: Demorar-se no território nacional após esgotado o prazo legal: Pena: multa de 3% (três por cento) do maior salário mínimo vigente no Brasil por dia de excesso, e deportação caso não se retire no prazo.

Art. 147: Transportar para o Brasil estrangeiros que estejam sem documentação em ordem: Pena: multa de 5 (cinco) vezes o maior salário-mínimo vigente no Brasil, por estrangeiro.

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Art. 148: Empregar ou manter a teu serviço estrangeiro em situação irregular. Pena: multa de 2 (duas) a 5 (cinco) vezes o maior salário- mínimo vigente no Brasil (Decreto Lei 941/1969, grifo nosso).

Um quadro bastante parecido se verificava na Argentina, país que ao lado do Brasil

sempre ocupou o lugar de principal alvo de imigração na América do Sul. Segundo Domenech (2011: 45 e 47), o sentido da ilegalidade começa a adquirir um peso diferente nesse país a partir dos anos 1940, por causa da imigração de países limítrofes (Bolívia e Paraguai), destinada principalmente ao “mercado de trabalho negro” na agricultura. O autor destaca que a década de 1960 representa um marco do aumento da presença de imigrantes limítrofes e da consequente reposta ditatorial117, que colocou a ilegalidade no centro das diretrizes das políticas imigratórias.

Como indicado anteriormente, no Brasil dos anos 1970 e 1980, os fluxos mais

significativos provêm de dois países periféricos (Coréia do Sul e Bolívia)118 sem tradição de

imigração no país. Essa modalidade de imigração encontraria o polo têxtil119 de São Paulo

como o principal setor de inserção laboral.

Na cidade de São Paulo, segundo Silva (2008), a sobrevivência econômica desse setor nas décadas de recessão e crise (1980 e 1990) se deve justamente ao apoio na força de trabalho do imigrante, proveniente de países periféricos e em grande parte indocumentado. Esse fator é o principal meio utilizado por essa indústria para diminuir os custos de produção. Isso porque, conforme destaca Silva (2012: 42), a despeito da modernização tecnológica e organizativa empreendida pela reestruturação do setor a partir dos anos 1980, essa indústria não conseguiu eliminar sua alta demanda pelo trabalho intensivo da costura.

Nos anos 1970, a imigração coreana era a mais representativa do padrão de inserção precária nessa indústria em São Paulo (Tavares, 2009). Segundo pesquisas realizadas sobre o tema, houve uma mobilidade da maior parte desse grupo nacional para posições de

117 O golpe militar na Argentina ocorre em 1962.

118 O fluxo de coreanos nesse período deriva inicialmente de tratados bilaterais entre os governos brasileiro e

sul-coreano, depois se propaga de forma indocumentada. Sobre os processos político-econômicos que ligavam o Brasil com a Coréia do Sul e a Bolívia nessas décadas, com influência para direcionar os fluxos migratórios desses países, ver Tavares (2009).

119 Conforme já documentado por muitos estudos (e.g. Lima, 1999), a indústria têxtil é um exemplo

emblemático da restruturação produtiva no Brasil (operada principalmente nos anos 1990), que acompanha mudanças na organização do trabalho e no sistema produtivo, em particular uma precarização intensa das relações laborais (extensão e intensidade das jornadas, baixos salários, fatores da divisão sexual do trabalho, entre outros).

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empreendedores, que foi permitida principalmente pelo emprego da força de trabalho de

bolivianos120. Nos anos 1980, a imigração boliviana passa a ocupar esse lugar precário de

inserção nesse setor, ao lado de outras nacionalidades latino-americanas, como a paraguaia e a peruana.

Logo, em São Paulo, os imigrantes passaram a representar a peça fundamental e indispensável dessa indústria, ou seja, as costureiras e os costureiros. As dinâmicas discriminatórias ligadas à nacionalidade, cor da pele, sexo e suas culturas não são um mero detalhe da sua sobrevida. Em particular, a situação indocumentada emerge nesses anos como uma importante base de apoio da edificação e do fortalecimento crescente dessa cadeia produtiva.

Se durante essas décadas, nos países centrais receptores de imigrantes, essa força de trabalho imigrante passou a simbolizar, conforme será mostrado no item seguinte, os focos de informalidade e de condições precárias de trabalho, no Brasil esses fatores já eram disseminados entre os próprios trabalhadores nacionais. Nesse período, a informalidade caracterizava o trabalho dos migrantes internos no meio urbano. Do mesmo modo, o trabalho forçado, conforme documentou o rigoroso estudo de Figueira (2004), marcava seu trabalho rural em determinadas regiões do país.

Essa migração produzida em regiões muito pobres (notadamente do Nordeste e de Minas Gerais) passou a compor majoritariamente a classe trabalhadora nos centros urbanos (São Paulo em particular), sem que a indústria conseguisse absorver totalmente essa força de trabalho, dentro de um quadro de recessão econômica, crise e significativo crescimento

demográfico. O termo trabalhador clandestino121, por exemplo, era utilizado na década de

120“A relação com o país de origem e o sistema de organização da imigração coreana permitiram um bom know-

how para os coreanos que aqui foram se estabelecendo. Os coreanos beneficiavam-se dos avanços técnicos da indústria têxtil coreana, uma vez que contam com facilidades de relacionamento com o bloco asiático, passando também a atuar como fornecedores de tecidos e máquinas importadas da Coréia. Além disso, o kye [método de financiamento de crédito interno à comunidade nacional] teve um papel relevante no fortalecimento e crescimento do grupo [...] promoveu o estabelecimento de um enorme número de coreanos, sobretudo os que não eram legalizados e não podiam acessar o crédito bancário [...]. A anistia aos migrantes em 1980 permitiu a documentação da maior parte dos coreanos [...]. Na década de 1980 [...] os bolivianos passariam a ser no Brás e no Bom Retiro ‘os miseráveis do sistema’” (Silva, 2012: 27).

121 “Após a legislação trabalhista no campo, e a posterior perda dos direitos trabalhistas pelo trabalhador rural,

o termo foi sendo substituído, especialmente nos locais onde houve um processo mais intenso de sindicalização rural, pelo de ‘trabalhador clandestino’, ou seja, aquele que além da condição de cassaco [trabalhador dos engenhos de cana de açúcar] (desprovido da lavoura de subsistência na propriedade), passa a trabalhar sem vínculo empregatício direto com a propriedade e portanto sem carteira assinada, sendo comumente contratado através da intermediação do empreiteiro” (Suarez, 1977: 18, grifo nosso).

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1970 para descrever a informalidade que marcava o processo de proletarização dos migrantes internos nordestinos nos centros urbanos.

Esses migrantes também foram alvo histórico de preconceito e de discriminação com base na “origem regional e rural”. Com relação ao Segundo Pós Guerra, o estudo de Braga (2012) fornece uma visão ampla das problemáticas tratadas pela sociologia do trabalho ao considerar a inserção desses migrantes nas indústrias do Sudeste. Conforme esclarece, nem o saber sociológico sobre o tema era isento de preconceito para explicar as diferentes dimensões, em particular a política, da passagem de “lavradores rurais nordestinos” a

“trabalhadores fordistas não qualificados” (Braga, 2012: 67)122.

Essa complexidade característica do mercado de trabalho na periferia deve, portanto,

ser considerada para se entender a particularidade da inserção do imigrante internacional. Pelo momento, importa ressaltar a manifestação de uma mudança significativa na relação entre imigração e trabalho a partir de 1970. É nesse período que começa a se manifestar a divisão do trabalho sustentada em grupos específicos de imigrantes provenientes de países periféricos, espelhando como tendência as mesmas “linhas não expressas da especialização racial”, explicadas por Florestan Fernandes para comprovar a atuação do racismo no mercado de trabalho assalariado brasileiro (ao descrever o movimento de rebaixamento ao qual estavam submetidos os negros).

Se utilizado essa noção de racismo para analisar algumas tendências, é possível

afirmar que, a partir dessas décadas de 1970 e 1980, o movimento de rebaixamento e de exploração no mercado de trabalho brasileiro, além do negro e do migrante interno, também incorpora a realidade social “periférica” da imigração internacional. A partir desse período, esse movimento de rebaixamento começa a se manifestar, agora em desfavor da parcela mais

122 A partir da análise das pesquisas empíricas de estudos focalizados na caracterização da nova identidade da

condição operária nas indústrias da cidade de São Paulo, Braga (2012: 72) mostra que a construção do saber sociológico sobre o operariado migrante se fundamentava na ideia do peso excessivo do “arcaico” em relação ao que era considerado “moderno”, desembocando na concepção de que “os laços tradicionais, e não os impulsos classistas prevaleciam no interior do país”. Segundo argumenta, essa ideia constrói a falsa imagem de migrantes despolitizados, sem nenhuma visão de organização política, quanto menos de consciência de classe, logo, que podiam ser direcionados por interesses alheios, seja dos sindicatos desvinculados da base, seja por um líder político carismático. O autor chama atenção às diferentes mensagens implicadas nessa interpretação, desde aquela explicativa do apoio por parte desses migrantes a um modelo político populista – porque traria “reminiscências de um paternalismo tardio no âmbito das relações de produção” – àquela do “bloqueio da consciência de classe e do atraso da ação sindical” (op. cit.: 59). Não há dúvida de que o eco desse preconceito está ativo até hoje na sociedade brasileira. Para uma análise etnográfica da ação dos migrantes nordestinos e sua abrangência política durante essas primeiras décadas de migração interna, ver Fontes (2008).

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significativa da imigração, embora continuasse a favor da modernização dependente e subordinada.

Todavia, esse padrão bifurcado da imigração que se manifesta, conforme demonstrado, principalmente após a década de 1970, não representa um particularidade brasileira, mas tem um significado mais geral. Com o fim de fornecer o entendimento dessa assertiva, será necessário considerar as transformações em curso nos países centrais após o Segundo Pós Guerra, em particular as características assumidas pelas políticas imigratórias no contexto neoliberal.