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Capítulo I – “Braços civilizatórios” na modernização dependente do mercado de trabalho

3. Imigração, trabalho livre e futuro da nação

O discurso de Joaquim Nabuco ilustra a inseparabilidade da ordem cultural declaradamente racista que justificava a modernização dependente do mercado de trabalho brasileiro com a defesa do recrutamento em massa de imigrantes europeus no final do século XIX. Nabuco, também chamado de o “estadista do futuro”, foi uma importante figura política do Partido Liberal, representativa da posição em defesa da atração de imigrantes.

Seu livro O Abolicionismo (1875) foi escrito logo após a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871), num período marcado pela convivência da gestão dos “últimos escravos” com a passagem ao regime de trabalho livre, dentro de um quadro até então único na história do país de recrutamento, incentivo e financiamento pelo governo brasileiro da imigração em massa.

Ao contrário da abertura irrestrita das fronteiras, nas diretrizes de seu discurso fica bastante nítido como, desde sempre, foi aplicado um parâmetro “qualitativo” pelas políticas imigratórias para selecionar o imigrante ideal. Mesmo nesse período, quando a falta de

“braços”40 aparecia como sendo um dado incontestável41 da economia nacional, selecionava-

se o imigrante responsável pela construção do futuro da nação. De fato, seu ideário pró atração de imigrante segue uma lógica declaradamente seletiva. Azevedo (2012: 13 e 24) explica que, durante a segunda metade do século XIX, havia um debate muito vivo entre “intelectuais, fazendeiros e políticos”, no qual “as elites políticas não só puderam discutir o

39 Nabuco foi quatro vezes deputado pelo Partido Liberal durante o período de 1878-1889 e também o principal

teórico e publicista da causa abolicionista no Brasil. Para uma análise sistemática do pensamento de Nabuco e sua atuação política, consultar Nogueira (1984).

40 “Termo habitualmente empregado pelos fazendeiros para se referir aos trabalhadores rurais” (Azevedo, 2012:

42).

41 Para a problematização do ideário que associa a importação de força de trabalho imigrante à escassez daquela

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tipo de imigrante ideal ao país, como também o fizeram já informadas pelas teorias raciais científicas cada vez mais em voga em meados do século XIX”.

O estudo de Lourenço (2001:14) expôs criticamente o “reformismo liberal” composto

pelo que definiu como “temas recorrentes aos projetos de modernização agrícola que se autojustificam como expansão do processo civilizador”. Conforme destaca, na época, a ideia de modernização se comunicava, sobretudo, com a realidade material do trabalho no campo,

ou seja, tinha suas raízes na questão agrária do país e escondia “ambivalências”42 refletidas

na profundidade de uma “questão social” colocada para as populações pobres, em particular os escravos. Logo, “aperfeiçoar a agricultura” assumia a conotação de “desafricanizar a nação”, valendo-se, para isso, de “novos e melhores braços para os campos” (Lourenço, 2001: 136 e 146). O autor ainda destaca que

[noções] como “modernização sem mudança”, “modernização pelo alto” condensam a ambivalência de nossos intentos civilizadores. [...] [Esta] recorrente ambivalência tem sua origem numa secular privação dos direitos das classes pobres (Lourenço, 2001: 29).

Ramos (2006) também parte do “projeto civilizatório” apoiado na “fantasia

assimilacionista”de importação do imigrante ideal para demonstrar como se deu a gênese e

o desenvolvimento das políticas imigratórias no Brasil. Seu estudo é elucidativo do que chama de caráter ativo de uma empresa política do Estado brasileiro de “atração” e “gestão” de imigrantes “escolhidos” para o povoamento do território nacional.

Para o autor, o consenso que predominava na mentalidade das classes dominantes brasileiras era o de que o país não só necessitava da imigração, mas de uma determinada “qualidade” de imigração. Tratava-se, segundo ele, de uma série de “cálculos e suportes múltiplos” à “atração”, “condução”, “indução” dos imigrantes na ocupação do solo nacional que revela o caráter essencialmente intervencionista do Estado brasileiro nessa primeira fase

histórica da imigração de trabalhadores livres ao Brasil43.

Sem dúvida, essa ideia assimilacionista guiava Nabuco, ao declarar que o movimento abolicionista abraçava duas funções no Brasil. Dentro do quadro de lentidão das medidas

42 “A ambivalência dos projetos de modernização, que propõem a emancipação, mas repõem a sujeição, não é

específica do reformismo agrícola, tendo sua origem própria na tradição liberal, ou mais precisamente na sociedade fundada no capital” (Lourenço, 2001: 31).

43 Segundo Ramos (2006), a classificação dos imigrantes nos órgãos de administração, nas leis sobre imigração

e nos discursos públicos separava a categoria dos “desejáveis” – referente à atração dos escolhidos (subdividida, por sua vez, em espontâneos e subsidiados) – dos “indesejáveis”.

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para a extinção do trabalho escravo, sua primeira função seria a de “advogar” pelos escravos,

defendendo o que identifica como a “verdadeira causa” da abolição: a liberdade individual44.

Além de lutar por essa causa, tendo em vista a exceção que o regime de escravidão ocupava

na conjuntura mundial da época45, identifica uma segunda função de propósitos mais amplos

e duradouros no tempo, relacionada, portanto, com o projeto do futuro da nação brasileira. Assim, defendia a necessidade de iniciativas políticas para tornar atrativa a vinda dos

imigrantes europeus e construir esse futuro através de um “povo escolhido”46 (Vainer, 1996).

É possível notar como o abolicionismo de Nabuco avalia a demora para o fim da escravidão como uma enorme perda na atração de imigrantes:

Até quando será esse o nosso renome, e teremos em nossos portos esse sinal da peste que afasta os imigrantes para os Estados que procuram competir conosco? (Nabuco, [1875] 2003: 240)

Diante da necessidade de suprir o mercado de trabalho e da possibilidade de escolha do recrutamento dos coolies – trabalhadores chineses e indianos importados, principalmente durante o século XIX , em diversos territórios dos Impérios coloniais e em países como os EUA, Canadá e Austrália dentro de um regime de trabalho sazonal – ou até mesmo de africanos na condição de cidadãos, entra em cena neste período uma empreitada política destinada à defesa da necessidade da imigração propriamente europeia, na qual se insere e ganha protagonismo seu discurso abolicionista.

44 Fernandes considera o abolicionismo “do alto” como uma “revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’:

combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém o que ela representava como anomalia, numa sociedade que extinguira o estatuto colonial, pretendia organizar-se como nação e procurava, por todos os meios, expandir internamente a economia de mercado” (Fernandes, 1975: 36).

45 Como explica Caio Prado (1977), o trabalho livre se mostrava mais vantajoso para o sistema capitalista, pois,

além de mais produtivo, gerava trabalho excedente sem adiantamento de capital ou risco. Conforme destacou Lourenço (2001: 126): “À exceção dos que possuíam escravos ocupados nas minas ou nos engenhos de açúcar, a posse de escravos representava uma forma ‘enganosa’ de riqueza, levando muitos agricultores à falência. Do ponto de vista contábil, a compra e manutenção de escravos significava um custo insuportável para uma economia tão pobre como a da capitania”. É claro que essa razão econômica não secundariza o peso determinante da luta dos próprios escravos e de outras frações de classes sociais (média-urbana) contra as relações de produção escravistas (Saes, 1985; Moura, 2014). Quanto ao papel do Partido Liberal na luta política interna em prol do abolicionismo, o desafio colocado era abolir a propriedade de escravos sem perder o apoio da elite rural e sem causar prejuízos aos cofres públicos com indenizações aos proprietários. Dessa assertiva decorre a identificação do alvo principal da propaganda abolicionista “do alto”, que não eram os próprios escravos, mas os setores com influência política e econômica que ainda se opunham à abolição: “Os problemas políticos que absorviam [os senhores] diziam respeito a indenizações e aos auxílios para amparar a ‘crise na lavoura’. A posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria política” (Fernandes, 1964: 30).

46 Trata-se, segundo Vainer (1996: 44), da razão racial, que resume a diretriz política da necessidade “eugênica,

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De fato, conforme explica Azevedo, o racismo dos “imigrantistas” explicita

[uma] verdadeira escala de pesos etnográficos, aplicada à produção material, à constituição moral do povo e à própria construção da nacionalidade [...]. Em suma, nesta balança das cores o negro é avaliado como o menos, o pior, o elo inferior da grande cadeia das raças humanas; o amarelo é um pouco mais, o menos ruim, o elo intermediário e que só se compreende na transitoriedade de sua permanência no país; e o branco é o mais, o melhor, o ponto final e ideal da tão sonhada escalada do progresso” (Azevedo, 2012:57).

O cruzamento de brancos e negros, característico da formação populacional do Brasil – nação composta, em sua opinião, prevalentemente por um “povo europeu”, porém obrigada a conviver com a “herança de berço” da escravidão – não significaria “o abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas a gradual elevação da última” (Nabuco, [1875] 2003: 175). Já declarando o insucesso da ideia de branqueamento da população brasileira, tão defendida à época – “a imigração europeia não bastará para manter o predomínio perpétuo de uma espécie de homens à qual o sol e o clima são infensos” (op. cit.: 173) –, Nabuco reconhece, no entanto, seu tão desejado poder de penetração na sociedade brasileira enquanto fator de civilização.

No discurso do autor, o negro vem substituído como fator de desenvolvimento econômico do Império pelo imigrante como fator de civilização e modernização do futuro da nação. A figura do imigrante, ao contrário de ser objeto de assimilação, aparece como vetor e instrumento do progresso, do desenvolvimento, ou seja, o elemento que possibilita e dá credibilidade ao esforço assimilacionista da política brasileira de importar um modelo “superior” de civilização e de se desvincular dos vícios da ordem escravista. Quando expõe um balanço das principais causas que justificam a urgência da abolição, é possível verificar como a imigração é colocada em primeiro lugar:

Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração [...] (Nabuco, [1875] 2003: 152, grifo nosso).

O objetivo de Nabuco era agir para convencer a elite agrária e a opinião pública de que a extinção do tráfico não significava um “colapso produtivo” da grande lavoura. Os Estados Unidos, a Austrália, o Chile e a Argentina eram invocados por eles como mais avançados

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que o Brasil, em função justamente dos êxitos com a imigração branca europeia. E o pilar

desse sucesso teria sido, sem dúvida, a escola implícita ao sistema de trabalho livre47, mais

produtivo, ético, moral; instrumento inclusive apto a acalmar os conflitos de raça de uma população não homogênea como a brasileira. É esse elemento “civilizador” o único a poder se contrapor aos vícios – tanto morais, quanto materiais – da escravidão.

O trabalho livre, dissipando os últimos vestígios da escravidão, abrirá o nosso país à imigração Europeia; será o anúncio de uma transformação viril, e far-nos-á entrar no caminho do crescimento orgânico e, portanto, homogêneo. O antagonismo latente das raças – a que a escravidão é uma provocação constante, e que ela não deixa morrer, por mais que isso lhe convenha –, desaparecerá de todo (Nabuco, [1875] 2003: 237).

E ainda:

Não há dúvida de que o trabalho livre é mais econômico, mais inteligente, mais útil à terra, benéfico ao distrito onde ele está encravado, mais propício a gerar indústrias, civilizar o país, elevar o nível de todo o povo (Nabuco, [1875] 2003: 232).

O plano material e moral da imigração se entrelaçam no discurso de Nabuco para a construção da figura do imigrante ideal, responsável pelo futuro da nação. Resultado implícito da abolição – e de sua outra face, a imigração –, seria, portanto, a reversão de tudo que derivava da “negação absoluta” do “senso moral”, característico da relação servil como valor organizacional da sociedade brasileira: “[a] escravidão atrofiou entre nós o espírito de iniciativa e a confiança em contratos de trabalho” (Nabuco, [1875] 2003: 93).

Logo, fica bastante evidente como sua posição em defesa do projeto imigratório não se

apresentava como uma simples empreitada de importação de “braços” para salvar a produção cafeeira no Brasil, mas também como instrumento privilegiado de incorporação de uma cultura mais “civilizada”, em particular propulsora da ética do trabalho livre: “o principal dever para uma nação não é acumular sacas de café, mas levantar o nível moral das populações” (Nabuco, [1879]1950: 529).

O trabalho livre e seu agente, o imigrante, foram eleitos, portanto, para espelhar a

47 Como mostrou Azevedo, esse esforço para construção da subjetividade do trabalhador livre se manifestava

no imaginário abolicionista do período (Azevedo, 1987).

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imagem de um novo modelo de sociedade. Todavia, esse projeto imigratório não era aberto a qualquer tipo de imigrante, conforme será tratado a seguir.